Numa entrevista dada ao Big Ears Festival no início de Março uma citação veio ao de cima. “O que imaginares na tua mente nunca poderá ser verdadeiramente criado na realidade. Então o processo criativo assume-se o mais próximo possível disso, mas sem nunca o conseguires alcançar”, disse uma vez Steven Wilson e assim concordou Faith Coloccia sobre a sua nova criação enquanto Mamiffer, The World Unseen. Já a outra metade, Aaron Turner, subscreveu e acrescentou que os “álbuns estão destinados a ser declarações definitivas da visão dos artistas”. The World Unseen joga entre os espaços da ausência e do inconsciente, até para quem esteve no seu comando.
A multi-disciplina recíproca de Faith e Aaron parece ter sempre funcionado. Se prevaleceu algum porte antagonista entre as composições orientadas a piano da primeira com a violência vibrante das cordas do segundo, tais indícios nunca foram descobertos. Turner revelou-se o veículo perfeito para o leme de Coloccia, que tinha em Mamiffer um projecto a solo erguido das cinzas de Everlovely Lightningheart. Esse casamento já havia sido anunciado no experimentalismo resultante numa fase tardia de House of Low Culture, projecto de ambos, numa altura em que Turner estava prestes a colocar um ponto final nos seus ISIS e antes de ressuscitar Old Man Gloom e aventurar-se com SUMAC. É claro como a água que Faith Coloccia toma a posição do lado frágil do mundo apaziguado, tal como já havia feito em colaboração com Pyramids, e que Aaron Turner entra em cena como senhor do mundo negro, tal mestre do post-metal, tão influente e disposto a deixar a sua chancela em Mamiffer. Mas gostamos de ser enganados e mais ainda gostamos de admiti-lo. Não é mentira nenhuma que encontramos na fúria de um riff de Converge a mais imaculada e sublime melodia e que presenciamos na neoclássica colaboração de Mono & World’s End Girlfriend um dos discos introvertidos mais violentos. É algures nesse cosmos desobediente e inexplicável que caem as repetições espirituais das teclas e do perene mas diminuto ruído que preenche a atmosfera de cada um dos discos de Mamiffer. Assim se completaram e se ergueram boas obras como Mare Decendrii (2011) e, especialmente, Statu Nascendi (2013), para além das colaborações recentes com Locrian, Circle e Daniel Menche.
“Este álbum em muitos aspectos foi sobre deambular no escuro e a falta de uma visão clara, e por isso um processo muito desconfortável”, confessou Aaron. Não há forma de traduzir para os outros algo que os próprios não conseguem traduzir para si, fazendo de The World Unseen uma plataforma inacabada de percepções de um mundo que, de facto, não se pode conhecer. Depois de se conformar com a constante presença da ausência, como escrever a branco em folha branca, e de remisturar o álbum por duas vezes, Faith abraçou esses locais inabitados do processo criativo. É aí que se justifica “Domestication of the Ewe”, cujas três partes perfazem mais de metade do álbum. Antes disso, o clarão inaugural, divino e tangível, vemo-lo resignar-se ao oculto incessantemente. Marcado o encontro com o mais breu dos mundos, um em que nenhum dos cinco sentidos que não a audição são válidos, a restituição inconsciente da luz só parece chegar em “Parthenogenesis”, ainda de que de uma forma pendente.
The World Unseen cumpre no que se propõe. Nunca poderemos afirmar que nos sentimos tão desconfortáveis como Faith e Aaron se sentiram na hora de o terminar. Essa imperfeição, esse desfasamento, estará sempre por ocupar no mundo que compreendemos. Nesse mesmo mundo são reconhecidos objectos e formas em vez de presenças disformes, acções em vez de ordens naturais e texturas audiovisuais em vez de estática, ruído e todas as restantes formas abstractas. À Exclaim, Coloccia afirmou que o álbum “tem no seu coração uma incompletude, um sossego que contém a presença da ausência e da perda”. Quão completa pode ser uma obra incompleta?
Autor: Nuno Bernardo