Em vésperas de mais um Barreiro Rocks, o 15º, trocámos palavras com um dos fundadores, Nick Nicotine, para, aproveitando a deixa do documentário realizado por Eduardo Morais, dar a conhecer a história por trás deste festival tão carismático e o que se pode esperar este ano e no futuro do Barreiro Rocks. E o festival arranca já hoje – a programação completa, aqui.
Ruído Sonoro: Muitos tentam organizar pequenos concertos e festivais nas suas cidades e à porta de casa, começando um pouco como vocês fizeram, com o Pachuco Fest. E muitos são os projectos que acabam por desaparecer. Qual o “segredo”, se é que assim se pode dizer, para a longevidade do Barreiro Rocks?
Nick Nicotine: Há sempre um pouco de sorte nisto tudo. Há também opções e posturas que optamos seguir, inclusive na vida pessoal, que permitem continuar a ceder tempo para este projecto. Penso que a maior dificuldade que este tipo de eventos sentem – e nós sentimos isso ano após ano – tem a ver com o facto de não serem financeiramente viáveis, a não ser que a estrutura ofereça o seu trabalho pro bono. Ora, tudo isto é muito engraçado até que chega a hora em que se tem que pagar contas. Agora é hora de desfrutar esta edição, 15 anos, mas sentimos que chegámos ao fim de um ciclo. Não quero dizer com isto que o festival irá acabar mas terá, certamente que arranjar maneira de crescer ao ponto de poder suportar a sua estrutura. Até agora, acho que podemos afirmar que o grande segredo para a longevidade do Barreiro Rocks tem sido o seu público, os muitos fãs deste evento que, nas piores alturas, nos fazem pensar duas vezes antes de desistir. A culpa é desses sacanas.
RS: Apesar de algumas mudanças ao longo dos anos, ao nível do número de dias e dos locais de concertos, por exemplo, o festival apresenta uma visível coerência musical, no tipo de bandas em cartaz. Muitas delas estreiam-se em Portugal no Barreiro e outras acabam até por regressar. Sempre souberam o que queriam fazer ou foram construindo este conceito?
Nick: Sempre soubemos que tipo de bandas queremos por cá e não é fácil explicar. Sei que é essa coerência estética que atraiu o núcleo dos nossos mais fiéis espectadores inicialmente e não lhes queremos falhar. No entanto também gostamos de provocar, aqui e ali, brincar um pouco com esse conceito que muitas vezes parece estanque, o conceito do “rock and roll”, até porque essa atitude provocatória está na génese da história deste género de música, ou de postura perante a vida.
RS: Mas, “nem tudo são rosas”. Qual é para ti a maior dificuldade ao organizar um festival deste tipo?
Nick: Dificuldades financeiras, muitas, sempre e cada vez mais. O dinheiro de que dispomos para realizar todo o festival, e repara que acontecem muitas coisas para além destes 3 dias, é risível.
RS: Como foi recapitular os 15 anos do festival para o documentário de Eduardo Morais?
Nick: Foi óptimo. Nunca pensámos durar tanto tempo, de certa forma fomos surpreendidos. De repente passam 15 anos e olhar para trás – éramos putos – sabe bem. O processo de realizar o documentário teve muito disso, de contemplar e lembrar uma série de acontecimentos e aventuras. Todos os anos vem uma série de gente ao Barreiro passar estes dias connosco mas, para nós, isto é a nossa vida, o nosso dia-a-dia. Nem dás conta que o tempo passa.
RS: Andaram a mostrar o documentário pelo país, em jeito de antecipação. Que tal tem sido a recepção geral? E o feedback dos barreirenses?
Nick: Penso que qualquer barreirense, mesmo que nunca tenha vindo ao festival, que não goste daquela música, que não goste de música, sei lá, qualquer um deve ter ficado orgulhoso de ver a sua cidade a ser retratada, por um outsider, de forma tão positiva e em torno de um evento que emana boa onda. O resto das pessoas acaba sempre por afirmar que quer vir conhecer o Barreiro. Missão cumprida!
RS: Durante o documentário falaram também da vez em que quase trouxeram os The White Stripes ao Barreiro. Hoje, com o crescimento do festival e com a criação de campanhas de crowdfunding, por exemplo, este seria um problema mais fácil de resolver?
Nick: Não seria. Naquela altura os White Stripes eram apenas mais uma banda para a maior parte das pessoas. Ninguém os conhecia. Seria o equivalente a fazer neste momento um crowdfunding para trazer cá os Estetisisters, uma banda de soul e unhas de gel que acabei de inventar.
RS: Uma das particularidades do Barreiro Rocks é também o bem-disposto anfitrião, Crooner Vieira. Como começou esta relação e o que significa ter o Crooner na “equipa” do festival?
Nick: O Crooner é meu amigo, daqueles que convido para a minha festa de anos. Conheci o Crooner em meados dos anos 90 quando eu era o pianista da orquestra ligeira do Barreiro. Ele foi convidado a cantar dois temas com a dita orquestra e ficámos amigos. Entretanto é, também, amigo do Tony dos Act-Ups e acho que foi dele que partiu a ideia de trazer o Crooner ao festival como apresentador. O Crooner está com 87 anos, mas isso pouco lhe importa, porque continua a cantar e a entreter, no melhor sentido que o verbo “entreter” possa ter – por vezes o entretenimento é subvalorizado. Importa-nos mais a nós a sua idade do que a ele. Não quero pensar no que será um Barreiro Rocks sem o Crooner e, se calhar, é melhor não pensar nisso, até porque com o vigor que o homem tem ainda há-de cá estar durante muitos e muitos anos.
RS: Qual a melhor recordação, se é que podes escolher uma, que guardas destes 15 anos?
Nick: Não consigo. Raramente consigo ver um concerto inteiro, por exemplo. Acho que a primeira vez que isso aconteceu foi no ano passado, porque estive a segurar as baias de segurança durante o concerto do King Khan & BBQ, mais o meu amigo e produtor do festival Miguel Afonso. O final do festival é sempre um momento que lembro, todos os anos. Há um abraço especial entre mim e o John Intense, co-mentor do festival e companheiro desde o início desta viagem. É um momento de grande intensidade porque há um peso que sai de cima dos ombros, por vezes literalmente.
RS: Têm vindo a figurar enquanto nomeados em alguns prémios ao nível da organização de festivais. O que significa ter esta distinção?
Nick: A maior nomeação é sentir o nosso público a ficar excitado quando faltam semanas para o festival. Saber que somos o melhor festival do mundo para algumas pessoas é o nosso maior prémio. Sei que soa a cliché mas não há maneira diferente de dizer isto, é o que sentimos. No entanto, para quem não nos conhece, é mais uma forma de chegarmos a essas pessoas.
RS: Pelo documentário dá para perceber também que a desvirtuação do conceito do Barreiro Rocks é uma preocupação que, ainda que afastada, é tida em conta. E que até já começa a afectar alguns festivais maiores. O crescimento, ainda que desejável no início, pode ser uma praga?
Nick: É uma preocupação desde o início e cada vez mais pelo motivo que já referi: o nosso público. Não o queremos perder e não queremos perder o Barreiro Rocks. Não queremos deixar de nos encontrar para encontrar uma equipa de produção contratada, seguranças privados que não percebam o que é este festival, perdermos a nossa identidade no meio de trinta logótipos, ganhar uma dimensão que assenta estritamente no facto de que se tem dinheiro para gastar. Podes comprar um festival, não podes comprar boa onda, portanto, há que ter cuidado. O mundo das marcas, do marketing está cheio de miúdos que acabaram o curso e tentam aplicar a chapa cinco em todos os eventos. É ridículo e qualquer promotor que ame a sua ideia, o seu evento, tem que ter muito cuidado com a pirite, com o ouro dos tolos. Não é por acaso que te falo nas dificuldades financeiras. Por vezes a dificuldade não está em conseguir o dinheiro, mas sim no custo que esse dinheiro terá, de que forma afecta o teu evento.
RS: Relativamente à edição deste ano, quais os destaques do cartaz?
Nick: Tudo, claro. Estamos bastante entusiasmados por ter os Jay Vons a tocar por cá, tal como estamos ansiosos por ver os Baron Four e os Routes. O facto de estarmos em 3 locais diferentes também é factor de destaque e pedimos a todos que consultem os horários na página do festival e venham a horas.
RS: Há também uma espécie de militância no festival, em que, quem vai, mesmo não vivendo no Barreiro, acaba por voltar. Como explicas isto?
Nick: Boa onda, é um festival que acolhe muito bem quem nos visita. Penso que tem a ver com os barreirenses em geral, essa atitude de nos excitarmos por recebermos pessoal que vem de fora. Não é estranho ver um qualquer espectador barreirense a dar boleia a um estranho para lhe mostrar onde há um bom restaurante, ou algo similar. É um festival que fomenta muito essa partilha e onde é fácil fazer novos amigos.
RS: Para quem nunca foi ao festival, o que é que andam a perder?
Nick: Vida, andam a perder vida.
RS: Têm também o programa “Jovens Músicos” que este ano vai levar uma banda a subir ao palco do Barreiro Rocks, os Postcards from Wonderland. É importante deixar este legado para o futuro?
Nick: Obviamente. É fechar um ciclo tal como esperámos no início do programa. Formar bandas, dar-lhes oportunidade para ensaiarem sem custos e, se possível, metê-los a tocar ao vivo. Espero ter muitas mais bandas a tocar neste e noutros festivais, provenientes do programa.
RS: Além do Jon Spencer, referido por muitos dos entrevistados no âmbito do documentário, há algum nome que vos falte trazer ao Barreiro Rocks?
Nick: Jonathan Richman, pedido especial feito por mim. Mas ele não deve vir. Os Reigning Sound, os Gories, os Dirtbombs, os Thee Oh Sees, os Almighty Defenders… e estes são apenas alguns dos históricos. Não se preocupem: haveria bandas para fazer mais 15 anos.
Entrevista: Rita Bernardo