Rio Tinto é uma cidade bem abastecida de capelas, mas são os 800 Gondomar que a erguem a um estatuto sagrado. O trio esteve fora do palco durante cinco anos, mas continua com o motor bem oleado. Quem os vê ao vivo agora, não diria que estiveram ausentes durante meia década, porque, no fundo, «as coisas só cessam de existir enquanto entidades físicas».
Foi num sábado à tarde, através de videochamada, que falámos sobre o regresso da banda e acerca do novo disco São Gunão, lançado em Março deste ano.
Na entrevista que deram há pouco tempo para o site World of Metal, dizem que o vosso regresso foi inesperado, ou seja, não foi calculado. Por isso, iam encarando este período como uma pausa ou mesmo como uma conclusão?
Rui: Hmm… engraçado… já estamos a ser confrontados com as nossas palavras do mês anterior (risos)… Meu deus, a vida passa a correr. Acho que era sempre uma pausa, porque, acima de tudo, e sem querer filosofar em demasia, as coisas só cessam de existir enquanto entidades físicas. E, como nas nossas vidas pessoais sempre fomos intrinsecamente ligados ao que fazíamos musicalmente e a este projecto, seria um bocado naive dizer que não continuou em transformação a maneira como víamos a nossa obra; e também como as pessoas a viam. Continuávamos sempre a receber feedback, propostas novas e a criar novas propostas. Até que um dia, essas propostas acabaram por se juntar numa proposta muito aliciante, e decidimos voltar a pegar.
Lembram-se quando e como foi o momento específico – se é que houve – em que vocês os três se aperceberam que o autocarro ainda tinha combustível para andar?
Rui: Acho que não houve um momento mesmo específico… Pois não, pessoal?
Fred: Não…
Alô: Não, acho que foi uma conjunção de várias coisas… de estarmos todos novamente a viver perto uns dos outros. Foi um bocado a vida a trazer-nos outra vez de volta.
Ainda na mesma entrevista vocês afirmam que têm perfeita noção que ninguém ficou à vossa espera. Mas nos concertos que têm dado ultimamente, por exemplo, na ZDB e no Black Bass, estava lá muita malta à vossa espera. Tem sido surpreendente para vocês a reacção do público ao vosso regresso, ou já estavam meio que à espera que fosse assim?
Rui: Eu acho que não estávamos à espera que fosse assim, e acho que também ainda estamos um bocadinho a tentar perceber o que é que realmente é. Porque, para todos os efeitos, desde que lançámos uma faixa nova [“Ax Gti“] até ao dia de hoje, só demos cinco concertos. É muito fácil que esta primeira vaga seja um bocadinho enganadora… No sentido em que reencontramos velhos amigos, e encontramos também pessoal que, se calhar, nunca nos tinha visto, e que pelos cânones mitológicos da cena acabava por ir lá parar. Obviamente que a recepção foi espetacular e foram festas lindas. Só que também ainda estamos assim um bocadinho a tentar perceber o que é que as coisas realmente são. Acho que agora, quando começarmos a tocar faixas que são novas para toda a gente, incluindo para nós, é que vamos realmente perceber a motivação que as pessoas têm para nos deixar errar e nos deixar ser coisas diferentes. Que é uma coisa que se calhar… pelo menos eu, a nível pessoal, estou um bocadinho assustado.
Até agora, nestes cinco concertos nós correspondemos a expectativas. Agora, se calhar, já não o vamos fazer; não por movimento de revolta, mas porque simplesmente estamos a apresentar coisas novas.
Em alguns dos vossos concertos, enquanto tocam a “Preguiça”, há ali um momento que pode ser considerado para maiores de 18 anos. E longe de mim estar a questionar performance e entrega! Mas eu gostava de saber de onde vem essa coragem e desembaraço?
Rui: Não sei…Pessoal, o que é que acham em relação a isso? Protejam-me…
Alô: Não sei, nós tocámos a “Preguiça” no nosso penúltimo…
Fred: Antepenúltimo.
Alô: …Concerto antes de terminar, acho eu, que foi no NOS Alive… talvez?! Antes de fazermos a pausa… Sempre foi um momento que, na altura, sentíamos que tinha uma cena performativa bué fixe. E, depois, quando estivemos a fazer uma tour na Grécia e na Macedónia, decidimos explorar esse tema e esse lado mais de performance, e corria sempre bem, apesar das diferenças linguísticas e tudo mais. Não sei, acho que para nós é mesmo importante criar esse momento de amor e de partilha mais directa, no meio de um concerto que muitas vezes é um concerto punk, outra vezes é só um concerto de garage… Ou seja, no meio do mosh e no meio dessa festa toda, ter um momento mais intimista para nós é importante.
Rui: Acho que ela está a falar das cenas que aconteceram em Évora, não é?
Fred: Está a falar do momento em que vocês os dois se comeram…
Não! Refiro-me ao momento em que uma pessoa – um de vocês – se despe totalmente durante o concerto.
Rui: Acho que a resposta mais sincera que se pode dar a isso é que, infelizmente, não conseguimos planear ou coreografar muito bem os nossos espectáculos, porque literalmente não temos skill para isso. Se calhar, num passado mesmo remoto, tentámos um bocadinho mais guiar-nos por certas performatividades, só que achamos que é muito mais benéfico, tanto para nós como para os outros, agora só tentar ter os sentidos todos abertos e fazer uma coisa que vá ao encontro do retorno que se está a ter da sala. Por isso, nada disto foi planeado. Esse momento da “Preguiça” acho que foi um momento que acabou por ter uma metamorfose espectacular nestes últimos concertos em que, de repente, toda a gente conseguiu com que o pessoal começasse a aderir em massa a um momento completamente inesperado e que subvertia muito o que estava a acontecer durante o resto do concerto. Eu acho que aí, se calhar, naturalmente a nossa preocupação é quando há momentos que se tornam um bocadinho previsíveis, ou quando já encontram dinâmicas bué semelhantes, independentemente de onde estiveres a tocar. Aí, se calhar, já é altura de subverter e tentar carregar mais, e tentar acrescentar mais coisas que às vezes podem correr, outras vezes podem não correr tão bem. Por acaso, nessa noite de Évora, foi isso que aconteceu.
Mas acho sempre bué piada a essa questão de… Pelo menos nesse momento, em que as pessoas já estão a abraçar os corpos umas das outras, em que se viram para vários focos de atenção em vez de haver só aquela relação banda-audiência… Ou seja, em vez de ser uma cena unilateral passa a ser multilateral, e aí tu pores elementos de subversão através da exposição corporal ou com elementos coreográficos mesmo muito carregados, muito pesados e muito rápidos, que também contrastam com o que está a acontecer na música. Não sei… é uma experimentação constante. Por acaso, aí aconteceu assim e ’tá-se bem! Não sei se volta a acontecer…
Têm também afirmado, em algumas entrevistas, que ainda é cedo para conseguirem entender a vossa nova condição e que o objectivo é perceber o que são agora. Se não são o mesmo que eram antes, o que é que para vocês mudou justifybanda, e até mesmo enquanto vocês próprios?
Rui: A nível pessoal eu acho que estamos todos com uma maturidade bué diferente. Se calhar não é maior nem melhor, mas está aplicada a outras coisas da vida. Relativizamos tanto a música como tantas outras coisas, de maneira diferente. Esta colecção de músicas que apresentamos agora é o resultado directo disso. Quanto à nossa condição enquanto banda, estamos um bocadinho dependentes de perceber o que é que vai ser agora, com base na recepção do público, acho eu.
E as coisas que vos motivam a tocar e a compor agora são as mesmas que vos motivavam antes?
Fred: Na verdade nós vamos sempre falar, cantar e tocar sobre coisas que vivemos e experienciamos, e nunca vamos estar a falar de situações hipotéticas. Por isso acho que vamos manter sempre a mesma linha, falar do nosso espaço, das nossas inseguranças, das nossas seguranças… um bocado por aí.
Alô: Acho que sim, acho que nem faz sentido ser de outra maneira… A banda sempre viveu muito dessa autenticidade e isso mantém-se.
Qual foi a canção mais desafiante do São Gunão? E, já agora, porquê?
Alô: As mais difíceis foram, provavelmente, aquelas que acabaram por não entrar no álbum. Houve algumas músicas que tínhamos e que não conseguimos pô-las no álbum, por haver algum elemento ou alguma coisa que ainda não estava bem para aquilo que nós queríamos. Talvez aquelas em que a sonoridade foge um bocadinho daquilo a que estávamos habituados a fazer. Nós temos duas músicas em que temos dois artistas convidados [gaita de foles por Inês Tartaruga Água e acordeão por Ruca Bourbon], e isso também foi uma coisa nova para nós, esse trabalho com outros músicos num álbum nosso. E, tanto uma [“Não Há Mal“] como a outra [“Sexta-À-Noite Com O Monstro“], foram músicas desafiantes para conseguir conciliar a nossa sensibilidade com a sensibilidade de outras pessoas que estão fora do projecto e com quem queríamos colaborar.
Fred: A “Balada [do Cancelado]” acaba por seguir também um bocado a cena de estar fora do nosso registo normal, e de ter elementos novos e ter que haver essa elasticidade toda.
Rui: Acho que, se calhar, a grande questão aqui é que tivemos que aprender um bocadinho a ser mais incisivos com as nossas emoções, a criar paisagens e espaços de que não nos arrependêssemos num futuro próximo… Sítios para os quais não olhássemos em retrospectiva com vergonha do quão ressabiados estávamos naquele momento, e da fúria com que escrevemos certos sentimentos, e que agora “olha para nós” seis meses depois e já nada daquilo tem significado. Essas músicas com uma componente emocional mais carregada, em que abertamente se esmiúçam mais aqueles sentimentos de vergonha e de desconsolo… Se calhar, essas foram as mais complicadas, para sempre tentar dosear bem as coisas. É sempre aquele fio da navalha de tentar não preencher demasiado, mas também não deixar nada por dizer. E, acima de tudo, ser bué sincero, tanto com as tuas falhas como com as tuas virtudes.
Alô: Eu sinto sempre que o mais desafiante nem é tanto uma música em específico, é mais conseguires fazer um álbum que todo ele faça sentido, que as diferentes músicas falem umas com as outras e criem uma obra única. Única no sentido de não ir para demasiados sítios. Isso é sempre o mais desafiante.
E para alguém que não conheça 800 Gondomar, se tivessem que escolher um tema do São Gunão para essas pessoas ouvirem, qual seria?
Rui: Depende da pessoa. Acho que há músicas aqui que são cartões de visita bastante directos, ou que costumam ser entendidas enquanto sendo o som da banda. Tanto os singles [“Ax Gti” e “Mataram o Fábio“], como mais duas ou três, acho que oferecem boas cenas às pessoas. Mas, se fosse à minha mãe, mostrava-lhe primeiro uma das músicas calminhas, para ela ficar mais orgulhosa do que eu ando a dizer.
E como é que tem sido a reação da vossa família e amigos sobre este regresso?
Alô: Tem sido positiva. Pelo menos a minha família apoia-me sempre. Por isso, para eles ‘tá fixe.
Fred: É aquela palmada nas costas, “boa”.
Rui: Tem sido positivo… mais vale deixar por aí, não quero chorar agora (risos).
Uma das músicas do disco chama-se “Balada do Cancelado”. A minha pergunta é: qual de vocês seria mais provável de ser cancelado?
Rui: Todos ao mesmo tempo.
Alô: Ya, enquanto banda.
Rui: Se um for cancelado, vão ser todos.
E os próximos concertos, quando e onde acontecem?
Alô: Dia 5 de Abril vamos tocar no Maus Hábitos [Porto].
Fred: 24 de Abril em Braga, no Mavy.
Rui: Temos Gondomar, vamos tocar para uma plateia sentada pela primeira vez no Auditório Municipal de Gondomar. Vamos estar um bocadinho por todo o lado, desde Castelo Branco a Portalegre, Lisboa, Barreiro – finalmente, outra vez, yes!
Fred: Coimbra, Leiria…
Rui: Uns festivais já…
Fred: Basqueiral…
Rui: Esta primeira fornada de datas, até meio do Verão, vai ser assim um bocadinho… não vou dizer o “circuito comum”, mas também não há assim nada que seja verdadeiramente fora da caixa. É bué importante que nós voltemos a circular pelas terras todas. Temos essa data no Auditório Municipal de Gondomar que, não só por ser no Auditório Municipal – o que é espectacular -, é para uma plateia sentada. É a primeira vez que tocamos em Gondomar legalmente. E depois vamos ter umas datas fixes, que vão sendo anunciadas nos nossos canais e redes.
Se é a primeira vez que tocam em Gondomar legalmente, quando é que tocaram ilegalmente?
Fred: Foi o nosso último concerto, antes do hiato.
Rui: Foi o concerto de despedida.
Ah! Aquele numa casa! Eu acho que há um vídeo disso no YouTube…
Rui: Foi na minha garagem. Acho que os vizinhos não curtiram muito da cena, mas também não podiam dizer muita coisa…
Fred: Não tinham por onde fugir.
Rui: Estou há vinte anos a ouvi-los dar tiros quando o Porto ganha os jogos, por isso que se foda. Foi fixe, foi divertido.
(Rui mostra a vista que tem da janela, incluindo o pátio de casa onde foi o concerto de despedida antes do hiato)
Rui: Welcome to Rio Tinto! Ali (a apontar) estava o palco… aqui estavam os meus avós a fazer headbang… e depois aquilo ficou uma zona assim de after, e aqueles gajos daquele prédio não curtiram absolutamente nada. Os do Solinca [ginásio] aproveitaram e ainda se excercitaram com mais vigor. Por isso, na verdade, foi um bom exercício cultural.
Com os concertos que se avizinham, a probabilidade de encontrarem os 800 Gondomar na estrada é alta. E, se por acaso tiverem essa sorte, é só entrar, correr os vidros e passear.
Texto e entrevista: Filipa da Silva Pina