«When you lookin’ at me, tell me what do you see?», remata Kendrick no refrão do single de avanço para este disco, ‘i’. Uma pergunta retórica de quem se auto-retrata com uma capacidade de narração perfeita e de quem assume vários «eus» ao longo de um disco tão abrangente. “To Pimp A Butterfly“… bem, por onde começar? Logo pelo título, um claro jogo de palavras com “To Kill A Mockingbird” de Harper Lee, romance que conta a história de um negro perseguido por um crime que não cometeu. Tal como um mockingbird, também as borboletas são inofensivas. Kendrick Lamar é esta borboleta, outrora uma lagarta em Compton, que atingiu o sucesso e que está a ser espremido pela indústria musical – e que tal como no romance, é errado aproveitar-se deste rapaz da mesma forma que é errado matar o dito pássaro, que apenas canta para os seus.
Ao colocar Kendrick debaixo das luzes da ribalta, este encontrou respostas sobre si próprio que nunca pensou procurar. É então para o seu público, numa retrospectiva pró-negra, que se dirige “To Pimp A Butterfly“. É uma obra extensa sobre o capitalismo do entretenimento e a América capitalista, sobre a influência do racismo durante este processo, sobre a riqueza espontânea com o irrepreensível antecessor “good kid, m.A.A.d. city” e também sobre toda uma outra linhagem de reflexões próprias e contextos históricos, como a escravidão dos negros e a libertação de preconceitos. Para além disso, K-Dot adopta o seu hip-hop para uma sonoridade mais funky, de forma a capturar a essência da «Funk Season», período de maior criminalidade entre negros nos meses quentes da Costa Oeste.
Abra-se o disco à discussão. «Every nigger is a star» são as primeiras palavras do disco, fantasiando-se do Tio Sam que o capitaliza, numa clara alusão à fraude na fuga aos impostos de Wesley Snipes. ‘For Free?’ é um interlúdio de jazz, enaltecendo o período em que os negros actuavam gratuitamente para clubes de ricos, como quem vende a alma ao Diabo. Em ‘King Kunta’ há uma alusão a Kunta Kinte, escravo negro que lutou pela libertação até lhe ser amputado um dos pés. O título da faixa apresenta um contraste entre a baixa e a alta sociedade que Kendrick atravessou com a música, questionando a lealdade dos seus amigos de Compton com vaidade, crescendo de «um camponês a um príncipe a um rei» («From a peasant to a prince to a motherfuckin’ king»). Esta vaidade é transformada em vícios, especialmente em mulheres e dinheiro, e dissecada nos temas que se seguem – ‘Institutionalized’ e ‘These Walls’ – onde Kendrick representa uma lagarta presa no seu casulo, caindo em depressão e em reflexões suicidas.
Consumido pelo poder do capitalismo e por «Lucy», que se acredita ser uma alusão a Lucifer, ‘u’ é uma narrativa profunda, pouco sóbria, arrancada do mais negro pensamento deste período de três anos que separam “To Pimp A Butterfly” de “good kid, m.A.A.d. city“. Procurando respostas em Deus e na sua própria fé em ‘Alright’, Kendrick faz nova meditação sobre a direcção musical e a entrega da sua alma ao capitalismo em ‘For Sale?’, uma abordagem à forma como a maioria da indústria musical oculta a verdadeira mensagem e apresenta dinheiro fácil – algo demasiado recorrente nos dias que correm, especialmente no universo do hip-hop. «Lucy gone fill your pockets / Lucy gone move your mama out of Compton / Inside the gi-gantic mansion like I promised», e é aqui que Lamar abre a primeira brecha do casulo com a sua sabedoria, relembrando-se de quem era antes da fama com ‘Momma’, representativa de uma viagem a África do Sul onde se esqueceu do que é viver nos guetos, e ‘Hood Politics’, dando um breve olhar sobre a sua infância e adolescência onde a política de bairro era tudo o que sabia.
Consciente de que é uma guerra com dois lados sem argumentos que se justifique, entre os discriminados e os discriminantes, Kendrick reflecte sobre o valor monetário para as diferentes partes em ‘How Much A Dollar Cost’, apela à paz entre raças em ‘Complexion (Zulu Love)’ e coloca o dedo na ferida sobre a imagem transmitida pelos guetos na criminalidade com ‘The Blacker The Berry’, utilizando o caso recente de Trayvon Martin para relembrar que os casos inversos são tão ou mais recorrentes, reclamando a hipocrisia de muitos. Esta manifestação e consciencialização de como quem se senta no purgatório para obrigar o céu e o inferno fazerem as pazes revelam um Kendrick sábio, lutador. Surge então de forma propositada a versão ao vivo de ‘i’ em vez da já conhecida de estúdio, com «this is for the kids bro» na interrupção que faz à música para chamar à consciência as próximas gerações por um novo futuro.
Kendrick Lamar é então uma borboleta mensageira, ou pelo menos luta para lá chegar, da mesma forma que Nelson Mandela, Malcolm X ou Martin Luther King Jr. erguiam os punhos pela igualdade nesta jornada. Mas a mensagem tem um intermediário. Em ‘Mortal Man’ Kendrick expõe as suas perspectivas, emoções e tudo aquilo que aprendeu neste exercício.
«A war that was based on apartheid and discrimination / Made me wanna go back to the city and tell the homies what I learned / The word was respect / Just because you wore a different gang colour than mine’s / Doesn’t mean I can’t respect you as a black man / Forgetting all the pain and hurt we caused each other in these streets / If I respect you, we unify and stop the enemy from killing us / But I don’t know, I’m no mortal man, maybe I’m just another nigga».
Esta mensagem é dirigida a 2Pac, o último grande profeta desta luta, numa entrevista forjada nesta faixa que encerra o disco. É um diálogo entre gerações, entre um sábio falecido a passar o testemunho e a coroa a um novo mensageiro. Kendrick Lamar sabe o que tem nas mãos, mas deixa uma pergunta a 2Pac que, impossibilitado de responder, obriga-se a procurar as suas próprias respostas para enfrentar os problemas.
“To Pimp A Butterfly” trata-se de um trabalho extenso e complexo sobre a unificação das raças pela luta unilateral num mundo pressionado pelo capitalismo e pela permeabilidade dos princípios. Kendrick não se deixou elevar pelas oportunidades e manteve os pés bem assentes para edificar a perseverança entre as gerações futuras, da mesma forma que “The Wall“, de Pink Floyd, alertou para a disputa da liberdade e auto-percepção. Não é um disco apenas baseado na musicalidade ou na linearidade lírica, mas sim uma obra que cogita a urgência destes juízos com metáforas e personificações e que pode ser interpretado como um filme, um poema ou um sermão, resultando numa das maiores efígies da expressão humana.
Autor: Nuno Bernardo
Álbum. Top Dawg, Aftermath, Interscope Records. 15 Março 2015
Classificação
9.5
"To Pimp A Butterfly" trata-se de um trabalho extenso e complexo sobre a unificação das raças pela luta unilateral num mundo pressionado pelo capitalismo e pela permeabilidade dos princípios.