Para se perceber esta dinâmica “mutante” é preciso olhar para os dois álbuns anteriores da banda. Nada mais nada menos que Worship Him e Blood Ritual de 1991 e 1992, respectivamente. Não estamos perante dois trabalhos vulgares. Numa altura em que uma verdadeira revolução se dava a uns bons milhares de quilómetros do território suíço (na Noruega, claro), estes dois trabalhos tornaram-se verdadeiros clássicos do que mais tarde se viria a chamar Segunda Vaga de Black Metal. Expandindo o que os conterrâneos Hellhammer e Celtic Frost (entre outros, claro) haviam feito nos anos 80, os dois primeiros álbuns de Samael tornaram-se verdadeiros clássicos do Black Metal moderno. O mais surpreendente (uma vez que são álbuns habitualmente prezados de forma mais ou menos igualitária) é que são dois trabalhos que em si já encerram algumas diferenças: Worship Him tem bastantes variações entre os tempos rápidos (seja nos riffs, seja na bateria) e algumas passagens mais atmosféricas enquanto que Blood Ritual acentua a toada lenta sem nunca perder o som poderoso e ritualístico da banda. Atendendo a este historial é possível antever mais uma mudança em Samael ainda que sempre dentro do prisma do Black Metal (isto falando apenas o que foi feito imediatamente a seguir com Ceremony Of Opposites, entenda-se).
Na verdade, Ceremony Of Opposites é porventura o último trabalho da banda associado ao que se pode de alguma forma chamar Black Metal “tradicional”. Seguindo as pisadas de constante mudança sonora de outra (já mencionada) banda suíça, os seminais Celtic Frost (embora por caminhos totalmente diferentes dos seguidos pela banda de Tom G. Warrior), os Samael enveredaram, após Ceremony Of Opposites, por caminhos mais ligados ao som Industrial (direcção que de alguma forma pode ser vislumbrada neste trabalho de 1994) e maximizaram ainda mais o carácter experimental e ecléctico da banda.
Este facto (ser o último trabalho mais ligado ao BM de Samael) não é por si só razão suficiente para uma atenção especial ao álbum (essas serão descritas na análise ao álbum) mas do ponto de vista do exame evolutivo de uma das bandas pioneiras da Segunda Vaga de Black Metal (ainda antes de alguns dos grandes lançamentos da cena norueguesa) torna-se essencial compreender este trabalho da banda em toda a sua plenitude.
Alinhamento
01 – Black Trip
02 – Celebration Of The Fourth
03 – Son Of Earth
04 – ‘Till We Meet Again
05 – Mask Of The Red Death
06 – Baphomet’s Throne
07 – Flagellation
08 – Crown
09 – To Our Martyrs
10 – Ceremony Of Opposites
Ano 1994
Editora Century Media
Faixa Favorita 04 – ‘Till We Meet Again
Género Black Metal
País Suiça
Banda
Masmiseim – Baixo
Rodolphe H. – Teclado
Vorphalack – Guitarra, Voz
Xytras (Christophe Mermod) – Bateria
Penso que isto pode ser explicado por diversos factores mas em termos gerais percebe-se uma aproximação a alguns géneros fora do Black Metal como seja o Industrial. Obviamente que isto não quer dizer que estejamos perante um trabalho de Industrial Black, longe disso. Fazer tal observação seria incorrer num erro de observação (ou de audição se assim for preferido) por exagero. O que se nota é a utilização subtil de alguns elementos que lhe dão uma roupagem diferente dentro do BM mas que não o afastam da linha condutora do género. Em momento algum se ouve algo que não seja BM em Ceremony Of Opposites.
Refiro-me sobretudo à forma como a bateria e os teclados (que muitas vezes utilizam samples) estão misturados e produzidos ou a forma como um dos elementos mais fortes do álbum (os riffs e todo o trabalho de guitarra em geral) é executado, não recorrendo ao habitual tremolo picking mas sim a riffs arrastados e não raras vezes lentos. Por último, em relação a este aspecto do trabalho isto há que destacar também a produção que confere um efeito maquinal e “industrializado” às músicas.
Para sintetizar o porquê deste efeito de estranheza pode-se dizer que a banda arranjou uma maneira interessante e eficaz de integrar diferentes influências sem no entanto por em causa a essência que, por exemplo, Worship Him e Blood Ritual encerram.
Referi a bateria como um dos motores da forma peculiar como o álbum se movimenta dentro do BM mas é muito mais que isso. A forma infernal como Xytras (enorme baterista) se apresenta é um dos grandes destaques do álbum. O poder que emana da percussão do álbum é enorme e por si só digno de registo mas o mais fantástico é a maneira como a bateria soa grandiosa e energética mesmo sendo maioritariamente executada em tempos médios.
Num dos clássicos saídos deste álbum – Baphomet’s Throne – a intensidade e energia que são imensas mas o tempo nunca acelera muito. No entanto, a bateria (juntamente com os teclados) dá uma grandiosidade e acutilância que fazem a faixa sobressair.
Além de eficaz e poderoso, o trabalho de Xytras caracteriza-se pela sua complexidade e variação. Os tempos são geralmente lentos (sobretudo se comparados com algumas propostas dentro do Black Metal) mas existem momentos mais rápidos como nalgumas secções de Flagellation e no geral o trabalho é sempre bastante variado. Desde os ocasionais (ainda que raros) blast beats, até aos tempos mais lentos (que acompanham os riffs igualmente menos acelerados como superiormente demonstrado em ‘Till We Meet Again) passando pelas introduções em jeito de marcha imperial (como na faixa-título), o trabalho é simplesmente perfeito para criar uma atmosfera quase épica mas acima de tudo muito poderosa e… cerimonial.
A complementar na perfeição o que é criado pela bateria estão os teclados. Neste departamento há uma combinação inteligente entre o uso de teclados sombrios e as samples que durante todo o trabalho se vão ouvindo com alguma frequência. Seja a enfatizar a vibração misteriosa criada pela execução relativamente lenta dos outros instrumentos ou simplesmente a adicionar novas atmosferas aos temas, os teclados têm um papel bastante evidente e importante na condução das músicas.
Não são usados com enorme frequência (até porque um exagero ou um mau uso deste elemento pode tornar-se fatal para um álbum de BM como já foi muitas vezes provado) mas aparecem quase sempre em cada faixa. A incursão já referida por caminhos mais virados para o Industrial tem a sua consubstanciação nos teclados e sobretudo no uso de samples. Faixas como Flagellation perderiam todo o seu ambiente mecanizado se os teclados estivessem ausentes ou porventura usados doutra maneira. Da mesma forma, o uso de samples insere subtilmente (aliás, os teclados resultam bem precisamente porque são usados cirurgicamente) outras texturas a momentos mais atmosféricos como é o caso da última faixa Ceremony Of Opposites.
Um ponto comum a todo o álbum, mas que em relação ao uso dos teclados se torna ainda mais evidente, é a forma como a composição está elaborada e cuidada. Nada parece ser prolongado por demasiado tempo ou acabar cedo demais. Veja-se, para exemplificar este aspecto, a quinta faixa Mask Of The Red Death onde o acompanhamento dos teclados aos riffs é evidente e como inteligentemente toma conta da música antes de se tornar, de novo, numa parte que enfatiza o trabalho de guitarra e baixo… tudo pensado e executado ao pormenor para não parecer demasiado forçado ou enfadonho.
Como não poderia deixar de ser esta última característica que descrevi estende-se ao que é provavelmente o elemento mais importante na condução instrumental do álbum: a guitarra de Vorphalack. Os riffs de guitarra que dominam o álbum são variados, apresentam-se sempre bastante originais e… têm um groove fenomenal. Apesar de não ser um termo conotado com o Black Metal (de todo) não há outra forma de denominar aquilo que invade todo o álbum e compreende-se precisamente porque este não é um Worship Him. Ouça-se o início de Black Trip e percebe-se que há um groove muito próprio em todo o trabalho de guitarra. Escusado será dizer que não é um som comparável ao que geralmente mais está associado com o termo groove…
Na realidade, o que temos neste campo é um som muito próprio criado pelas guitarras brutalmente distorcidas que inundam o álbum. Vamos desde as progressões que criam uma atmosfera densa e negra até aos momentos mais melódicos nalguns refrões (a faixa Son Of Earth é paradigmática deste aspecto) ou simplesmente aos riffs destruidores que acompanham a toada mais maquinal da secção rítmica.
Embora os riffs sejam claramente compostos no horizonte do Black Metal, é possível reconhecer algumas influências de outras formas extremas de Metal como o Death Metal nomeadamente quando se ouvem alguns momentos mais melódicos. Não é algo que seja muito evidente porque a produção, distorção e colocação dos riffs é muito ligada ao BM mas o tal groove que se ouve é muitas vezes devido a estes sons mais próximos do DM.
Para completar todo este panorama há que salientar um dos aspectos que torna este trabalho tão fluído e bem construído: o quão “catchy” é todo o trabalho de guitarra. Para além do som de guitarra ser facilmente relembrado, muitos dos riffs são memoráveis e resultam na perfeição. Assim se compreende que tenham saído deste álbum muitos clássicos da banda como Baphomet’s Throne, Black Trip ou Son Of Earth.
A acompanhar a guitarra temos o baixo que apresenta muitas características que se podem verificar na guitarra. A distorção confere à execução de Masmiseim uma enorme relevância, seja a acompanhar as guitarras nos momentos mais pesados, seja a preencher o som de forma ainda mais intensa.
No entanto, o baixo (sempre perfeitamente audível) faz mais do que simplesmente “completar” o que vai sendo feito pelo resto dos instrumentos como se pode notar em Mask Of The Red Death. Embora pontuais existem momentos em que Masmiseim se destaca mais e torna o ataque sonoro ainda mais acutilante e variado.
Para agregar toda esta potência temos, claro, a voz de Vorphalack. Num gutural poderoso e que dá o toque final a toda a energia do instrumental, Vorphalack espalha no álbum uma agressão genuína e acaba por se tornar num dos elementos que mais se destaca.
Sempre num registo muito semelhante, a voz de Vorphalack é profunda mas mantém a rispidez que caracteriza os vocais do Black Metal. A forma como a voz consegue ser preponderante face a um registo instrumental tão poderoso (que requer uma voz igualmente poderosa para resultar bem) é um mérito da produção mas também da forma como Vorphalack aborda a questão da colocação de voz. Mais do que uma vocalização musical temos um registo quase recitado em que o vocalista vai declamando as (excelentes) letras como se de ensinamentos se tratassem. Isto resulta muito bem: quer do ponto de vista musical pela forma como se conjuga com tudo resto, quer pela forma como se integra com a idiossincrasia das próprias letras. Cria-se assim uma atmosfera que está em consonância com o nome do álbum: uma verdadeira cerimónia.
Em relação à parte lírica esta é na maior parte das vezes excelente. Digo na maior parte das vezes e não sempre porque existem (muito poucos) momentos que caem demasiado nos clichés ou não resultam porque a linguagem agressiva se torna demasiado absurda. Son Of Earth ou To Our Martyrs sofrem deste mal, não obstante a primeira ser uma das melhores faixas do álbum. Contudo, estes pequenos “acidentes” não devem ofuscar todo o restante conteúdo lírico que é de elevada qualidade. As letras que lidam com os temas religiosos do ponto de vista filosófico fazem-no de uma perspectiva mais ateísta que nos álbuns anteriores (Worship Him é auto-esclarecedor) embora ainda se verifiquem referências mais viradas para o Satanismo (apenas na sua vertente mais teísta, ressalve-se). Algumas temáticas como o sofrimento pessoal (aqui visto de uma forma guerreira e não como forma de auto-comiseração) também são abordadas de forma inteligente como se pode verificar em Crown: “Into pain, I exist/And if my brain is numbed/The thorn in my flesh/Can overcome apathy“.
Todos os elementos descritos anteriormente acabam por estar em cada uma das faixas. No entanto, é raro as “peças” estarem dispostas da mesma maneira o que providencia uma dinâmica que permite ao álbum uma longevidade maior sem se tornar demasiado formatado.
A produção também ajuda na forma como o álbum não se esgota: sendo (a produção) bastante polida ajuda a ir descobrindo novos detalhes em cada faixa e torna o álbum “agradável” (com as ressalvas em relação ao gosto de cada um pela banda e género em questão) de ouvir ainda para mais quando este tem verdadeiros hinos de BM como: Black Trip, Baphomet’s Throne, ‘Till We Meet Again (melhor faixa do álbum) ou a faixa-título cujos teclados finais encerram na perfeição esta “cerimónia”.
Ceremony Of Opposites é um dos melhores trabalhos de BM saídos de 1994 (o melhor será provavelmente um tal de De Mysteriis Dom Sathanas), mas acima de tudo uma forte proposta de BM (a última completamente associada ao género por parte da banda) cheia de inteligência e intencionalidade que “usa” elementos estranhos ao Black Metal para engrandecer o género.