CA Vilar de Mouros. Bem-vindos a um lugar de culto, tradição e muito rock

Texto: V. Oliveira | Fotografia: Ana Ribeiro (Grifus)

No palco de um dos maiores legados musicais da Península Ibérica, Vilar de Mouros regressou para uma edição alargada de quatro dias e que combinou música nacional com grandes nomes do panorama musical internacional. Foi ao longo de quatro dias que assistimos a essa simbiose perfeita de velhos conhecidos do público português e de estreias absolutas em solo nacional, culminando num último dia de festival em recinto absolutamente lotado.

Salientamos ainda a forte presença do CA Vilar de Mouros em todas as redes sociais, um investimento inegável e aposta em cobertura mediática, e também a excelente organização logística de toda a equipa que coordenou o festival. Factores que contribuíram, e muito, para uma edição memorável do evento que se realizou entre os dias 23 e 26 de Agosto à margem do rio Coura.

Dia 23 de Agosto: O mito e o legado

Numa amostra de aposta do município de Caminha em bandas nacionais (e locais), os Micomaníacos (formados em 2022 em Vilar de Mouros) foram responsáveis pela abertura da edição de 2023 do CA Vilar de Mouros. Ao som do seu EP de estreia, Doença de Amor, foi em tom morno e destemido que a jovem banda se aventurou no palco de Vilar. Um início auspicioso e cheio de amor para este primeiro dia.

Foi com o mesmo carinho que os The Last Internationale conduziram o público através do seu groove hard rock e old school, uma sonoridade que encaixa bem em qualquer ouvido. Numa actuação marcada pela constante interacção com o público, e recheada de referências e agradecimentos a Portugal, a vocalista Delila Paz (vestida pela estilista portuguesa Cláudia Sousa) encantou o público com constantes elogios e uma vontade de continuar a regressar a um país que tão bem os acolhe. Num alinhamento diversificado e em que Delila foi intercalando a voz com o piano, a banda fechou o concerto ao som de uma versão à capela de “Grândola, Vila Morena” de Zeca Afonso. Recorde-se que a banda se apresenta em solo português regularmente, incorporando na formação dois luso-descendentes, sendo deles o guitarrista Edgar “Edgey” Pires. A viagem sonora levou o público a encaixar o concerto da banda norte-americana como quem acolhe um velho amigo.

 

Foi assim, de forma natural e orgânica, que os britânicos Enter Shikari subiram ao palco em missão clara de agarrar o público que ali compareceu – em muito motivado pela expectativa do concerto que lhes seguiria. Naquela que foi a primeira incursão além-Lisboa, e liderada pelo sempre energético Rou Reynolds, a banda ensaiou um espectáculo gracioso, teatral e pautado por efeitos visuais futurista. A vontade de conquistar novas audiências era clara e foi bem recebida, apresentando-se munidos do seu mais recente álbum lançado em Abril deste ano, A Kiss For The Whole World. Brindaram Vilar de Mouros com um alinhamento recheado de novos e velhos êxitos – “Labyrinth” e “Sorry You’re Not a Winner”, duas músicas porta-estandarte e que trouxeram a banda à ribalta, sendo também das maiores explosões colectivas da noite numa demonstração daquilo que o concerto poderia ter sido. A banda deu sempre tudo de si, muito alicerçada na exploração exímia do palco por parte de Rou (o espaço foi sempre todo dele), mas não conseguiu nunca levar o público consigo. Ficámos com a sensação de que falhou ali uma ligação, mas nem por isso os Enter Shikari deixaram de dar um concerto com a mesma entrega e energia que os tem caracterizado ao longo da carreira.

 

Segundo a sabedoria popular, os últimos são sempre os primeiros. Ficou latente que seria esse o caso da banda que se seguiu: a dispensar apresentações, os norte-americanos Limp Bizkit foram responsáveis por um dos melhores concertos desta edição do CA Vilar de Mouros e proporcionaram, sem dúvida, o momento mais explosivo deste dia inaugural. Numa noite recheada de êxitos, aos quais o público correspondeu sempre, foi de jeito fulminante e ao som de “Out of Style” que cedo se percebeu que estes Limp Bizkit não estão nada fora de moda. Muito pelo contrário. «Senti a vossa falta» fez de prelúdio à grande apoteose que foi “My Generation”, revelando Fred Durst que esta noite estaríamos «a festejar como se fosse 1999». Com um discurso contagiante, o frontman foi esbatendo qualquer réstia de dúvida de que os Limp Bizkit vieram para ficar. Da boca do próprio surgiu a pergunta «vocês pensam que podemos voar?», e o público quis provar que sim. No primeiro e único encore da noite, todo ele recheado com “Behind Blue Eyes”, dos The Who, e “My Way”, o público não queria que o concerto terminasse e a banda também não: «Eles dizem que o nosso concerto acabou, mas nós não vamos parar».

«Quantos de vocês têm de ir trabalhar amanhã?» foi o mote no final do concerto. A resposta? Tal qual adolescente rebelde, assim nos deixámos ficar: acordados fora de hora. Um concerto em tudo memorável de uma banda que não precisava de provar nada, mas que ainda assim fez questão de o fazer.

 

Os Xutos & Pontapés foram escolhidos para encerrar este primeiro dia de festival. Apesar dos seus mais 40 anos de carreira, proporcionaram um concerto para todas as famílias e um fecho de noite com chave de ouro.

Dia 24 de Agosto: Velhos amigos e novos conhecidos

Os portugueses Nowhere To Be Found foram a terceira banda nacional a pisar o palco do CA Vilar de Mouros, tendo a seu cargo a oportunidade de inaugurar o segundo dia. Em estreia absoluta no festival, a banda apresentou-se com vontade de dar motivos ao público para se manter presente, demonstrando uma atitude carismática e humilde que depressa rendeu o público às investidas de Tiago Duarte, o vocalista. «Na próxima hora vocês são nossos e nós somos vossos», disse, agradecendo ao público. Tudo na estreia da banda da Ericeira em Vilar de Mouros foi competente, com energia e entrega. Genuinamente gratos por estarem em palco, foi com o tema “Never Getting Older” que os Nowhere To Be Found mais contagiaram. «Eu acredito em vocês» deu azo a um pacto silencioso entre banda e público, honrando assim a presença da banda portuguesa em palco: espectáculo que claramente não se evaporará da memória colectiva do quarteto.

 

Os suecos Millencolin, talvez uma das bandas menos mediáticas do line-up em geral, trouxeram a Portugal uma setlist repleta de clássicos, mas com um álbum recente na bagagem, SOS de 2019. Liderados por Nikola Sarcevic, foram as canções do último álbum que trouxeram uma mensagem mais política, como de resto sempre aconteceu ao longo da sua carreira. A sua voz característica, aliada ao estilo hardcore punk dos Millencolin, fizeram dois atributos capazes de demonstrar toda a experiência e profissionalismo da actuação, contrariando dessa forma contratempos técnicos que foram surgindo. A audiência fez-se presente, não por engano mas por conhecer a banda, sendo sempre capaz de acompanhar Nikola em “Mr. Clean” ou “No Cigar”. Obrigado por mostrarem que o punk continua vivo.

 

A encabeçar a noite estiveram os incontornáveis The Prodigy. Electrizantes como sempre, os britânicos provaram uma vez mais o porquê de permanecer inteira, até mesmo na face da adversidade. Naquela que foi a primeira actuação da banda em palcos nacionais desde que o falecimento do histórico vocalista Keith Flint, Maxim Reality demonstrou como e em que moldes o legado de Flint lhe foi (bem) entregue. A homenagem a Flint surgiu, de resto, ao som de “Firestarter”, um dos grandes hits da banda do movimento big beat: a sua silhueta apareceu projectada nos diferentes ecrãs, com traços a verde que conferiram ao espectáculo um tom ainda mais áureo e transcendente.

«A todos os guerreiros portugueses por aí» foi das frases mais proferidas por Maxim, brindando a plateia com uma experiência imaterial e etérea, carregada de energia. A banda, que ainda voltou para o encore, deixou todos ao rubro através de hinos como “Take Me To The Hospital”, “Invaders Must Die” ou “We Live Forever”. Ao longo de mais de uma hora e meia do concerto, o público mostrou-se participante e activo numa performance em tudo exuberante. Os Prodigy deixaram absolutamente tudo em palco, mas esperamos que tenham levado consigo a energia de um público que pareceu também de forma inesgotável.

 

A cargo dos italianos The Bloody Beetroots ficou a tarefa de fechar a segunda noite do festival. A dupla de DJs entreteve o público após a apotese de Prodigy e deu continuidade à temática electrónica.

Dia 25 de Agosto: A simbiose do metal com a electrónica

A abertura do terceiro dia do festival esteve novamente a cargo de uma banda nacional, neste caso de Bizarra Locomotiva, para dar mote para mais um dia com muito rock. Numa altura em que a banda comemora 30 anos de carreira, desengane-se quem poderia pensar que o público compareceu ali ao acaso. Foi longo de mais de um pouco mais de uma hora de  concerto, e sempre à porta-voz do incansável Rui Sidónio, que a banda de metal industrial foi capaz de agarrar novos fãs entre o público jovem. As diversas vezes em que se ouviu gritar «Bizarra Locomotiva» no público demonstraram bem o poder que a actuação carregou consigo, havendo espaço para invocar “Volúpio”, tema do próximo disco Volutrabo.

 

No acompanhamento das mesmas sonoridades, seguiu-se então o concerto dos aguardados Apocalyptica. Munidos dos seus habituais violoncelos, os finlandeses do metal sinfónico trouxeram-nos outro ponto alto desta edição do CA Vilar de Mouros. Entre versões e convidados, a banda tocou “I’m Not Jesus” com o vocalista Tipe Johnson (Lenningrad Cowboys): «é um prazer estar aqui esta noite», proferiu o músico e compositor. Foi com a música “I Don’t Care” que o público se começou a manifestar de forma ainda mais presente. Como momentos maiores do concerto destacamos também a interpretação de temas dos Metallica, “Nothing Else Matters” e “Seek & Destroy”, com tempo e espaço para um excerto de “Thunderstruck” dos AC/DC. Acreditamos ser sempre interessante ver uma banda a utilizar instrumentos tradicionalmente clássicos para abordagens progressivas e inclusivas a novas sonoridades.

 

Por seu turno, os Within Temptation apresentaram novos temas nesta visita a Vilar de Mouros. As músicas “Entertain You” e “Raise Your Banner”, esta dedicada à Ucrânia e à paz, deixaram no ar um tom desafiante e revolucionário pela banda neerlandesa. Materializados na voz mágica de Sharon den Adel, mostraram-se sempre capazes de demonstrar que existe uma mensagem política para o público e que não tem receio de a desconstruir e exaltar. De voz suave e sólida, Sharon cantou e encantou através da sua presença, protagonizando um momento emotivo e intimista com a dedicatória de “Supernova” ao seu pai, falecido há três anos. Mas houve ainda uma mensagem de esperança e de apelo à acção directa para preservação dos Direitos Humanos, temas abordados no último de estúdio da banda, Bleed Out.

 

A fechar esta terceira noite estiveram os australianos Pendulum, em incursão estreante em território nacional. E que final de noite foi este! Foi de forma absolutamente categórica, com casa bem composta, que o grupo levou o público numa viagem pelo tempo à boleia de riffs de guitarra e de ritmos electrónicos, capazes de conciliar uma vertente rock mais melódica através da voz do vocalista Rob Swire. Uma simbiose de estilos feita na perfeição que levou os fãs ao êxtase e a uma libertação de adrenalina generalizada.

Swire várias vezes interrompeu a actuação para se dirigir ao público, elogiando as movimentações pelo recinto. Do globalmente consagrado disco Immersion foram várias as músicas seleccionadas para o alinhamento, com “Witchcraft” e “Watercolour” a provocar um ponto de ebulição para se cantar em uníssono. Não deixando de ser um concerto para pequenos e graúdos, esta actuação teve de tudo um pouco e nós não poderíamos ter pedido melhor concerto para encerrar o terceiro dia.

 

Dia 26 de Agosto: O rock é para toda a família

No quarto e último dia de CA Vilar de Mouros, foi com casa esgotada que se pode contar à chegada ao recinto. Cedo se percebeu que seria um dia especial: a prová-lo, logo a abrir, esteve a incontornável Peaches. Irreverente e fiel a si própria, a artista canadiana foi capaz de aquecer a tarde mobilizar público de todas as idades. Icónica e sempre em tom festivo e de insubordinação, conseguiu arrancar a timidez ao público que a acompanhou em frases de tom intervencionista ritmadas ao som da faixa “Vaginoplasty”. Foram entoadas frases como «I was blessed with big, big, big lips» [«Fui abençoada com grandes, grandes, grandes lábios»] e «If you’re trans, you know you’re trans» [«Se fores trans, tu sabes que és trans»], elevando a actuação para uma performance artística com fantasia, um universo onde tudo é possível e onde todos podemos surgir exactamente como somos.

 

O concerto de Guano Apes foi, de longe, um dos mais antecipados de todo o festival. A banda alemã, há largos anos uma das grandes favoritas do público nacional, entrou em acção para mostrar o porquê do estatuto que assumem por cá. Tivemos um momento acústico, no qual Sandra Nasić se deslocou até ao público no single “Rain”, mas a energia fez-se sentir também noutros êxitos da carreira, como “Open Your Eyes”, a versão muito própria de “Big In Japan” e “Lord Of The Boards”. Sandra demonstrou de forma inequívoca, numa segunda visita a Portugal no espaço de um mês depois de actuarem em Faro, porque motivo é ainda hoje uma das mais influentes vozes do panorama rock europeu.

 

Abraçando a língua portuguesa em palco, os britânicos James foram provavelmente a banda central do alinhamento neste derradeiro dia. A banda celebrou no CA Vilar de Mouros os seus já 40 anos de carreira junto de um público maduro e acolhedor. Sendo o festival para toda a família, o concerto de James encaixou na perfeição para o público que se procurava, distribuindo no alinhamento músicas para todos os gostos. O aclamado single “Sit Down” serviu de dedicatória emocionada à cantora irlandesa Sinéad O’Connor e foi também ao som de “Sometimes” que foi arrancada a maior ovação.

 

Os Ornatos Violeta encerraram a edição de 2023 do festival com bastante emoção. Em declarada homenagem a Elísio Donas, recentemente falecido e teclista fundador, a banda do Porto teve no vocalista Manel Cruz a representação de um sentimento comum a todos os membros da formação: «Hoje é um dia triste mas feliz». Assim nos comunicaram que o monstro ainda precisa de amigos. Naquela que foi também a noite mais fria das quatro de festival, o público compareceu e permaneceu em massa para uma representação viva do legado do teclista e de toda a banda, marcante na história do rock português. «Onde quer que esteja o Elísio, esperamos que ele possa ouvir» e um «Viva o Elísio» foram frases de apoio declamadas por Manel Cruz.

Destacamos ainda as músicas “Para Nunca Mais Mentir”, “Débil Mental” e “Capitão Romance”, todas cantadas em uníssono, mas foi ao som de “Chaga” e “Ouvi Dizer” que banda e público foram um só, alimentados por uma energia comum que invadiu o recinto. Os anos passam e o legado permanece vivo e assim se multiplicará, através da música e das pessoas que entoam e repetem cada palavra para sempre registada pelos Ornatos Violeta.

 

O CA Vilar de Mouros regressa em 2024 de 21 a 24 de Agosto, repetindo a fórmula de quatro dias. Na conferência de imprensa de encerramento do evento, foi assinalado o carácter histórico do festival enquanto grande capital do rock na Península Ibérica e ficou também reforçado o compromisso local para que esse estatuto se mantenha: «Começámos o projecto e sabemos onde queremos chegar».