Com uma média entre as 26 e as 27 mil pessoas por dia e num total de 100 000 pessoas desde o Sobe à Vila até ao fim do festival, o Vodafone Paredes de Coura apresenta-se cada vez centrado nas preferências e necessidades dos festivaleiros, incluindo bibliotecas digitais, boleias e materiais de campismo para arrendar.
O aquecimento, o dia “zero” que virou primeiro dia há escassos anos atrás, ficou a cargo de quatro nomes capazes de, por si só, caracterizarem a globalidade desta edição decorrida entre 15 a 18 de agosto.
15 de Agosto
Uma viagem da Nova Zelândia é uma grande distância para Marlon Williams se apresentar em território português pela primeira vez. No recinto composto escutam-se bebés e vêem-se crianças e passar. A combinar, pois a a música é melosa e encontrou-se com um confortável e ameno pôr-do-sol.
O aproximar da noite fez-se com Linda Martini, uma das bandas que mais vezes pisou o palco do festival. Avistou-se uma homenagem ao recentemente falecido Phil Mendrix, estampado em fundo preto na bateria de Hélio Morais, e tocam sem parar até “Boca de Sal”, momento em que também o público se parte e reparte para o primeiro mosh. Em apresentação esteve Linda Martini, disco homónimo lançado este ano, havendo espaço para temas menos óbvios como “Dez Tostões” e “O Amor É Não Haver Polícia”. «Gostamos muito de vocês, gostamos muito de estar aqui», atira a baixista Cláudia Guerreiro antes de se juntar ao guitarrista Pedro Geraldes no crowdsurfing na sua saída de palco.
A banda mais esperada da noite tinha de ser King Gizzard & The Lizard Wizard. As suas repetidas visitas a Portugal não lhes tira o brilho de cada actuação e isso é visível até na sua antecipação, onde alguns rapazes e raparigas preparam-se com lenços ao pescoço e com escassa roupa no tronco já prontos para a batalha campal que é o mosh na poeira de Coura. De fora não podiam ficar “Rattlesnake”, “Cellophane” e “Gamma Knife”, três dos temas mais icónicos dos (muitos) álbuns que têm lançado recentemente.
O fecho deste primeiro dia quase poderia ser um Vodafone Paredes de Coura com a curadoria Lux Frágil. The Blaze, um novo conceito de electrónica e uma certa valorização dos efeitos visuais dos primos parisienses Guillaume e Jonathan Alric, a pautar as novas tendências urbanas. Algo que a aposta no lisboeta Conan Osiris no palco mais pequeno do festival se revelou igualmente impactante, pois bastante rápido se preencheram todos os espaços disponíveis para o escutar. O amado ou mal-amado artista e o seu bailarino levaram ao Minho o resultado do seu álbum Adoro Bolos, de 2017, que inclui misturas da língua portuguesa dançáveis num estilo arábico-fadista, com referência às temáticas da sociedade, ora fúteis ora de entrelinhas que tanto de indecifráveis e obscuras como de razoáveis e irónicas.
16 de Agosto
As já emblemáticas Vodafone Music Sessions não podiam faltar nesta edição e a primeira esteve a cabo dos californianos Mystery Lights, junto a uma piscina local. A banda de psych/garage satisfez mais tarde, no recinto, os que não tiveram oportunidade de os escutar privilegiadamente a atravessar temas como “Too Many Girls”, “Too Tough To Bare” e “Flowers In My Hair, Demons In My Head”.
Já dentro do recinto e quinze anos depois da sua estreia em Paredes de Coura, os X-Wife apresentaram no festival os temas do seu primeiro disco em sete anos. Não deixaram ainda assim de recordar temas do passado, como “Keep On Dancing” ou “Boom Shaka Boom”, que fizeram uma boa ligação com as roupagens mais frescas evidenciadas no novo single, “This Game”. Uma passagem mais discreta teve Japanese Breakfast, projecto a solo de Michelle Zauner, única em palco e de aparência asiática: para além dos temas de Soft Sounds From Another Planet, de 2017, deixou-nos uma versão de “Dreams” dos The Cranberries.
O figurino habitual de Paulo Furtado enquanto The Legendary Tigerman chegou com todo o dinamismo e com grande intensidade, pegando na pujança do seu mais recente álbum, Misfit, para percorrer a todo o gás temas como “Motorcycle Boy” e “Fix Of Rock’n’Roll”. Uma extensão imediata à euforia rock de True, onde “Gone” e, claro, “21st Century Rock’n’Roll”, foram claros protagonistas do alinhamento. A irritação com dificuldades técnicas não lhe impediram de dar muito amor, como fez questão de referir, e cumpriu ainda a sua missão com a sua calorosa versão da eterna “These Boots Are Made For Walkin’”.
A “nossa menina” Surma continua a crescer e já dá passos de gigante. Nossa, sim, porque esta portuguesa de Leiria tem conquistado o mundo com o seu projecto one-woman-band. A entrada no concerto foi partilhada com os jovens da Casota Collective – seus irmãos mais velhos, segundo a artista – diante de um público preenchido e bastante dedicado. Isqueiros ao alto nas primeiras falas, palmas e mais palmas e até uma lagriminha no canto do olho daqueles que têm acompanhado o projeto da pequena grande Débora que além da música, tem sempre um sorriso para nos mostrar. Entre “Baskiat”, “Voyager” e “Maasai”, sempre atenta e dedicada, foi-nos cativando para o seu mundo.
Parecem trazidos de uma terra distante, fria, mas é o seu frio que nos conforta e nos dá a sensação de estar em casa. “White Winter Hymnal” agarrou logo, desde cedo, não dando espaço para muitas palavras até “Mykonos”, que ditou o fecho imperial de uma espécie de recital. É que não há coisas tão condizentes como ver os Fleet Foxes naquele anfiteatro natural do Vodafone Paredes de Coura, onde as árvores se misturam com o som e a folk se materializa pela toda a Natureza em redor.
Eram uma das bandas mais aguardadas e propuseram-se a fazer dançar todo o festival. Os londrinos Jungle não trouxeram só consigo os sucessos mais antigos, como “The Heat”, “Busy Earnin’” ou “Time” tirados do álbum de estreia, como aproveitaram a ocasião para a primeira apresentação em Portugal de For Ever, o segundo álbum. O som chill não deixou de transformar os bosques do Minho numa selva de dança e soul prazerosa e cheia de sorrisos, onde foram deixados alguns elogios à beleza do festival e ainda uma sentida homenagem à falecida Aretha Franklin.
17 de Agosto
Novo dia a arrancar com uma Vodafone Music Sessions, desta vez com o rock tuaregue de Imarhan num cenário paisagístico entre as paredes naturais da Pedreira de Ferreira. A banda do sul da Argélia, de vestes arábicas, pareceu até tomar a leve brisa que se sentia, como se tivesse sido propositadamente convocada para refrescar os ritmos quentes de Temet.
De volta ao recinto do festival, avistou-se Lucy Dacus por detrás de uns óculos escuros e da sua doce e melancólica voz, combinadas numa suave música. Os espectadores não eram suficientes para cobrir a relva e escutar “Addictions” ou “Night Shift” naquele que foi o seu primeiro concerto da digressão europeia, directamente do estado da Virgínia. Quis pedir desculpa pelos sucessivos erros do seu país, enquanto se mostrou surpreendida com o facto de o público saber as suas letras e acompanhar as suas canções. Guardou para o final uma música para a sua avó que falecera, “Pillar of Truth”, e a audiência reagiu com uma fofinha interjeição.
Para Kevin Morby, logo de seguida, observaram-se as primeiras corridas do dia.“City Music”, “Cry Baby” e “1234” abriram o caminho para o norte-americano mostrar o seu contentamento por ali estar. A luz crepuscular ilustrou “Parade” e “I Have Been To The Mountain”, enquanto nos contou sobre o seu amor a Portugal, após ter publicado dias antes uma fotografia no seu Instagram a vestir uma t-shirt do FC Porto. Dada a sua assiduidade e resposta do público, pode-se assumir que é uma relação para durar.
Uma fraca figura entra em palco e depressa exclama «Wow, I’m scared!». Greta Kline, como quem diz Frankie Cosmos, tem um timbre que nos faz recordar Dolores O’Riordan. A sua tenra idade – apenas 24 anos e já com três discos editados – estende-se à aparência dos constituintes da sua banda, como o jovem Alex Bailey no baixo quem bem poderia estar a trocar umas cábulas no secundário. Já o baterista Luke Pyenson se mostrou hábil em dizer um parágrafo inteiro na língua camoniana sem recurso a uma desses papelinhos. Acreditem, não se ficou apenas por desejar uma boa noite, como aquela que nos deram ao som das faixas de Next Thing e Vessel.
O avançar da noite catapultou DIIV para instalar a desordem. Quatro rapazes e um conjunto de vídeos a passar no fundo com imagens caseiras do mais aleatório quotidiano, desde ruas de uma cidade a uma casa desarrumada, fizeram um estranho regresso a um país que há quatro anos não visitavam. A banda de Zachary Cole Smith resumiu-se a texturas esvoaçantes de Oshin e Is The Is Are e à excitação por estar a tocar antes de Slowdive no palco principal do festival.
Mas antes havia ainda a tempestade …And You Will Know Us By The Trail Of Dead. A contrário do que o nome indica, os tipos são é conhecidos pelos concertos que dão: som muito alto e estridente e, neste caso em particular, a contrastar com toda a programação do dia, maioritariamente mais calma e minuciosa. O palco pareceu pequeno para a sua dimensão – de concerto e de banda – e fizeram valer o seu regresso a um festival que consideram ser «o melhor do mundo». Palavra deles.
Na recta final da noite, os Slowdive encarregaram-se de dividir o público, pois há quem prefira prefira mexer-se mais do que aquilo que a banda britânica pode proporcionar. Repetiram a sua presença de 2015 e até a deste ano, onde já haviam apresentado Slowdive, o seu primeiro álbum em 22 anos, em concertos em nome próprio no Porto e em Lisboa. Isso não terá jogado muito a favor a quem já se fazia vencer pelo cansaço e até os clássicos “Catch The Breeze”, “Crazy For You”, “Alison” e “When The Sun Hits”, cujas vozes de Neil Halstead e Rachel Goswell até se chegam a fluir com próprio instrumental, podem ter sido o tónico para uma caminhada mais cedo para o campismo. E a verdade é que o grime de Skepta, logo de seguida, dividiu ainda mais um público que parece respirar e ser apenas tolerante pelo rock.
18 de Agosto
O derradeiro dia de festival trouxe também, ao início da tarde, a última das Vodafone Music Sessions numa espécie de clubbing noutro fuso horário. Uma garagem de ferro-velho foi o espaço necessário para os Ninos du Brasil ferverem o ritmo muitas horas de aquecerem a última noite do festival, já de madrugada.
A levantar os primeiros ânimos contra a depressão de estar a viver o último dia de festival, Curtis Harding tomou as primeiras rédeas da mais quente das noites com “Good People, Good Food And Good Music”. Curtis apresentou uma voz mais madura do que o corpo que transporta e um contraste de soul e groove, a condizer bem com os seus óculos dourados. Indumentária quase-funk, da música ao look, e uma linha de temas entre conhecidas, “Next Time”, ou novidades, “On And On”. Difícil foi estar sentado e a curtir ao longe, dimensionada a poeira que se fez levantar nas primeiras filas ao som de “Ghost Of You” ou “Face Your Fear”, esta que até dá título ao seu álbum lançado em 2017.
Viajando entre espaços, foi no Palco Vodafone FM que Silva abriu o manual de introdução à canção brasileira, à bossa nova, ao samba. O músico surgiu de branco, numa leveza de trazer a paz e o amor consigo, pois “Nada Será Como Era Antes”. Logo ao segundo tema pede palmas em troca e passa por “Caju” e “Não Vá Embora, esta uma versão da compatriota Marisa Monte. Pode ter ficado a faltar “Beija Eu”, mas deu a Coura ainda “Fica Tudo Bem” e um dos concertos mais aplaudidos e bem-dispostos desta edição do festival.
De volta ao centro das atenções no anfiteatro natural, os Big Thief surgiram “despidos” do seu guitarrista Buck Meek, mesmo diante “da maior plateia para quem já tocaram”, nas palavras dos próprios. Na memória ficam as bolhas de sabão pelo ar em “Pretty Things”, tema que abre o mais recente álbum Cacapacity, e as luzes apontadas pelo público. A doce voz de Adrianne Lenker foi diversas vezes acompanhada por lentas palmas ritmadas pelas primeiras filas que recebeu alguns brindes, como aquela palheta para uma criança após “Shoulders”. A banda fez-se sentir em casa e foi fácil imaginar estarmos numa sala de estar ao som de “Mythological Beauty”, escrita para a mãe de Adrianne, antes de “Paul” receber o maior aplauso do concerto.
Já bastante conhecida do público português, embora com passagens algo discretas, a libanesa Yasmine Hamdan tem provas dadas de ser uma força de rock oriental sensualizado. Não é difícil angariar fãs, especialmente do sexo masculino, que não se importaram de perder os seus lugares reservados no palco principal para escutar as suas canções a solo de Ya Nass, de 2013, e Al Jamilat, de 2017. Que continue a voltar, seja onde for.
A contar com um público que não queria arredar pé para o concerto mais aguardado de toda a edição, os Dead Combo foram mais do que uma mera primeira parte. A magia corpóreo-musical deste ensemble português deixa que os seus temas, cada vez mais, falem por si. Odeon Hotel é mais um indicador de qualidade de uma das mais ímpares bandas que o mundo conhece, que bebe tanto das influências afro-lusas como da cinematografia norte-americana, como é o caso de “I Know, I Alone”, vocalizado por Mark Lanegan e convidado de honra neste grande concerto da banda de Pedro Gonçalves e Tó Trips.
Enfim, “O” motivo de o dia ter esgotado e o de muitos festivaleiros terem feito muitos sacrifícios para se conseguirem deslocar ao Couraíso, Arcade Fire. Houve até quem os tivesse visto em Lisboa a 360 graus uns meses antes, em Abril, e ainda assim não perdeu a oportunidade de manter o fogo aceso. Mas houve também outros tantos que quiseram, por força da nostalgia, recordar o primeiro concerto que a agora enorme banda canadiana alguma vez deu em Portugal – precisamente ali em Paredes de Coura, há treze anos atrás.
A cor, o som, o ritmo, as luzes, as letras, o contacto com o público e a energia que caracterizam esta banda são inúmeros factores que geram discussões nas primeiras filas deste maravilhoso recinto, porque o Win Butler está «longe e não se vê» ou porque a Regina se chega ao meio do público e não passa no meio de todos. Todos exigem ter a melhor experiência possível perante os Arcade Fire.
Percorreram então um reportório de anos, músicas tão antigas que os mais novos só reconheciam se tivessem estudado muito bem a lição e canções modernas onde os mais velhos já não encontram a mesma essência – é, felizmente, recordado Funeral, o álbum que os catapultou para o mundo. A banda, neste “pequeno percurso”, já consegue até criar gerações, dentro de si própria, mesmo com tiradas recentes como “Electric Blue”, “Everything Now”, “Put Your Money On Me” e “Reflektor”, que foram alguns dos que fizeram correr lágrimas e brotaram sorrisos na última noite do festival e consumaram um feliz reencontro com quem os viu “nascer” por cá.
A edição de 2019 vai representar o 26º ano deste festival e está marcado para acontecer entre 14 e 17 de agosto, com o habitual Sobe à Vila nos três dias anteriores. A importância atribuída às infraestruturas e às bandas é a mesma, nas palavras de João Carvalho, em nome da organização, que atribui a aparência – e só aparente – de menos público este ano à intervenção executada nos espaços do evento, constatada nos inquéritos de qualidade realizados. Que assim continue.
Texto: Ana Margarida Dâmaso
Fotografia: Ana Ribeiro