Uma mão cheia de edições. Um punho cerrado que se ergue como uma pedra, emancipando o verdadeiro rock das correias do obscurantismo, dando-lhe luz em noites envoltas de escuridão. Um novo território para a alcateia do rock explorar, com a estreia do palco da floresta. Três dias repletos de riffs cativantes, gritos de revolta e cânticos sonantes, experimentalismo progressivo e rock assertivo, sonoridades capazes de tornar o espírito leve e feliz, ou de o sufocar em apertos de negrume.
Em 2017, o WoodRock ganhou mais um dia, mais um palco, mais qualidade. Na quinta feira, 20 de Julho, três concertos deram ainda mais vida à natureza envolvente. Na sexta, o palco principal oscilou entre altos e baixos. Por fim, no sábado, a representação máxima do que é o espírito do festival, que transforma Quiaios na capital do rock durante algumas horas.
Dia 1 (20 de Julho)
Desert Mammooth: a dança instrumental do stoner psicadélico
A quinta edição do WoodRock abriu às 23h20 com os portugueses Desert Mammooth. O trio de Almada trouxe consigo um stoner psicadélico instrumental interessante, com bons riffs a sairem da guitarra de Jaime Quental, uma bateria competente nas mãos de César Atouguia e um baixo dançante que teve como par Bernardo Esteves. Apenas com um lançamento, o EP de três temas There’s An Elephant In The Room, a banda mostrou potencial e criou o ambiente certo para a primeira noite, com destaque para Yellow Monkey e Sound Of Sounds That Sounds Like Sound.
The Legendary Flower Punk: a bem-disposta mostra de talentos russa
Seguiu-se o concerto dos russos The Legendary Flower Punk, que marcou o regresso do prodigioso Kamille Sharapodinov ao festival, onde tinha actuado o ano passado com The Grand Astoria. Num verdadeira torrente de boa disposição e brilhante execução técnica, o quarteto conquistou o público com temas maioritariamente retirados do álbum Zen Variations. Da complexa riqueza sonora de Warfield Zen à progressão cósmica da magnífica White Magick Zen, passando pela bela e longa balada Christmas Zen, o concerto teve momentos de pura magia, terminando pouco depois da 1 da manhã.
Tau: o ritualístico encontro do deserto com a floresta
O primeiro dia do festival fechou com o duo germânico Tau. Depois de uma espera relativamente longa, o concerto teve início com Shaun Nunutzi, vocalista e guitarrista, a caminhar pelo público, espalhando consigo os fumos da abertura trascendental. Como uma sonoridade ritualística inspirada nos poderes místicos do deserto mexicano, algures entre o folk rock e o psicadélico experimental, o concerto desenrolou-se numa espécie de transe sonoro, com destaque para as brilhantes interpretações de Mother, The Bridge Of Khajou e The Midnight Jaguar. O concerto terminou e a maior parte do público dispersou, mas alguns minutos depois os poucos resistentes tiveram direito a um encore.
Dia 2 (21 de Julho)
Dúvida 413: rock à moda da casa
O segundo dia do WoodRock foi aberto pela banda local Dúvida 413. Durante cerca de meia hora, o trio da Figueira da Foz impôs o seu rock a duas línguas, naquela que foi a única representação musical da língua portuguesa. Com boa atitude e uma sonoridade rock espacial com toques de melancolia, a banda mostrou-nos temas do seu futuro disco, Obstáculo O. A voz poderosa de Victor Santos impôs-se, conseguindo cativar o pouco público ainda presente, sobretudo com a música Barco À Deriva.
Oddhums: as ásperas e pesadas barbas
Seguiram-se os espanhóis Oddhums, o trio andaluso com mais barba que cabelo (sobretudo o baterista), começando pouco depois das 23 horas. Tocando algo algures entre o post-metal e o post-rock, não sem uma ligeira influência grunge, a banda destacou-se pela distorção sufocante, a voz com roucos gritos controlados, ocasionalmente sussurrante, e riffs contagiantes. Com uma muralha sonora de impor respeito, foram 35 minutos intensos com o ponto alto ao quinto tema, Brave, naquela que foi, pessoalmente, uma das melhores descobertas no festival.
Lâmina: a rendição ao doom hipnótico
Uma dúzia de minutos antes da meia noite, vindo directamente de Lisboa, chegou-nos o stoner doom dos Lâmina. Abrindo com Cold Blood, cedo se percebeu estarmos perante uma banda com uma atitude tremenda. Soando a um filho bastardo com semente tripla em Acid King, Alice In Chains e Black Sabbath, os quatro músicos entregaram-se de corpo e alma e deram aquele que foi o melhor concerto do primeiro dia do festival. Em foco, a voz penetrante do Vasco Duarte, a explosiva Catarina Henriques na bateria e o arrastado, desesperado, épico hino doom, In The Warmth Of Lilith.
Black Willows: negros salgueiros de misticismo imponente
Passavam 5 minutos da 1 da manhã quando os suíços Black Willows deram início ao seu ritual de stoner doom psicadélico, com momentos a roçar o sludge. A abertura do concerto foi algo monótona, com os repetitivos 6 minutos introdutórios de Jewel in the Lotus, que finalmente explodiu quando a guitarra se estava a tornar quase irritante. A partir daí, o concerto elevou-se e deu-nos uma hora intensa, com Sin e Rise em relevo.
Correia: a azeda tragédia do bombo explosivo
O primeiro dia do palco principal estava a ter uma noite de sonho, e os Correia prometiam continuar a fazer-nos sonhar. No entanto, eis que somos acordados por um inesperado e gélido balde de água fria, pois praticamente não houve concerto. Logo no primeiro tema, Architect, o bombo do baterista rebentou. A banda ainda tentou continuar numa segunda música, que foi interrompida a meio. Em palco, era possível ver um baterista frustrado e um dos irmãos Correia bastante irritado com algo ou alguém. Após muita discussão, o bombo chegou a ser trocado por um emprestado, mas os ânimos não se apaziguaram e a banda acabou mesmo por abandonar o palco, perante um público incrédulo e com várias palavras de revolta.
Mr. Miyagi: o stand-up da rebeldia marcial
Depois de morrer com Correia, a noite não ressuscitou com Mr. Miyagi. Subindo a palco às 3h10, tocaram o seu hardcore punk explosivo, com muitas piadas secas à mistura. Com um baterista suplente, a banda tinha um leque de músicas limitado. Apesar das tentivas de rebeldia do vocalista, constantemente incitando à remoção das grades do pit, estas foram sendo repostas pela organização. Pouca gente ainda estava presente, neste final de noite algo amargo, noite essa que valeu pelas brilhantes actuações das primeiras quatro bandas.
Dia 3 (22 de Julho)
Mr. Mojo: o grito da juventude
Após mais um dia de sol, praia, piscina e natureza, a noite caiu sobre Quiaios, arauta dos últimos concertos da edição de 2017. Passavam 7 minutos das 22 horas quando a jovem banda bracarense Mr. Mojo tomou conta do palco. Cheios de atitude e com um stoner rock pautado por saudável agressividade, tocaram durante meia hora, meia dúzia de temas para começar em cheio a melhor noite do WoodRock, terminando com um forte agradecimento ao público e à organização.
Her Name Was Fire: dois homens com sede
Às 23 horas em ponto, João Campos e Tiago Lopes provaram que não é preciso muita gente para dar um concerto explosivo de puro rock. Abrindo com Way To Control, cedo abriram caminho para controlar o público, que se mostrava interessado mas longe do palco. Tocando a dezena de temas que compõe o seu novíssimo álbum de estreia Road Antics, despediram-se com So Long Starman, num espectáculo onde a conversa em palco sobre cerveja só foi menos abundante que a enorme qualidade dos músicos.
Mão Morta: os mutantes teatrais
Passavam 20 minutos da meia noite. O concerto anterior já tinha terminado há mais de meia hora e uma moldura humana bem viva aglomerou-se para os Mão Morta. Finalmente, Adolfo Luxúria Canibal e companhia sobem a palco, que imediatamente se transformou num teatro trágico, negro, intenso. Mesmo quando houve uma falha de energia à direita (do palco, entenda-se), o carismático e ruidoso sussurrador entreteu-nos com “onanismos intelectuais”. Num espectáculo recheado de clássicos da banda, com picos de magia em Escravos do Desejo, Pássaros A Esvoaçar, Hipótese de Suicídio e Lisboa, não faltou um encore final com Horas de Matar a ser entoada a plenos pulmões pela multidão presente. Apesar de ter sido o concerto mais longo do festival, ainda assim soube a pouco!
Vôdûn: a rainha do voodoo
Há momentos para os quais um festivaleiro vive. Quando se respira música, os ouvidos pedem o som da perfeição, os olhos querem ver um mundo, o corpo quer libertar-se em movimentos ritmados. O concerto de Vôdûn foi um desses momentos, onde tudo se conjugou para a experiência completa e inesquecível. O trio britânico Vôdûn é uma força da natureza, com destaque para a vocalista-furacão Oya. Uma voz poderosíssima, incansável, impregnando de soul o stoner psicadélico inspirado nas origens da prática do voodoo. A alcateia metamorfoseou-se em tribo, viajando com a banda, fundindo-se com ela, sobretudo no momento em que a vocalista veio para o meio do público. Talvez a despedida com Mawu tenha brilhado ligeiramente mais que o resto da constelação de temas, mas na verdade, toda a experiência foram 55 minutos de euforia contínua.
Bala: o disparo final
Não era possível superar, nem igualar, nem sequer chegar perto da perfeição que foram os dois concertos anteriores. Mas nem por isso a dupla galesa composta por Anxela Baltar e Violeta Mosquera se fez de rogada. A noite já ia longa, passava meia hora das 3 da manhã, e pedia-se uma celebração final intensa e sem dó. Foi o que tivemos: um stoner rock pesado, com uns pózinhos de hardcore punk; entrega total em palco das duas intérpretes, que tocaram na íntegra os seus dois álbuns Human Flesh e Lume, regressando ainda para um encore muito pedido pelo público, repetindo a explosiva Colmillos. Um final digno do WoodRock 2017.
WoodRock 2017
Continuando a aposta maioritariamente em bandas pouco conhecidas, a organização revelou mais uma vez bom gosto nas escolhas, com muitos tiros certeiros. Esse bom gosto este ano expandiu-se para a decoração do festival, muito bem conseguida e luminosa, tornando o espaço acolhedor, vivo e onde apetecia estar. Com o campismo gratuito de excelentes condições (apesar de nem toda a gente saber respeitar o espaço), uma oferta q.b. de comida e bebida, a localização perfeita para um festival e concertos como os de Vôdûn, Mão Morta e Lâmina, não há como não ficar, de novo, rendido ao festival e a Quiaios. E tu, do que estás à espera para aparecer em 2018?
Texto: David Matos
Fotografia: Marina Silva
Agradecimentos: WoodRock Festival