O FLIC é produto de uma nova gerência do Coliseu do Porto (agora Coliseu Porto) que, querendo aumentar a sua gama de públicos, decidiu mostrá-lo por completo com um cartaz apetecível. Esse feito desagua na Festa Lotação Ilimitada Coliseu. As primeiras mostras que ouvimos vieram de B Fachada, que actuou no requintado Salão Árctico.
Claramente acarinhado pelo público, o cantautor, munido com a sua drum machine, os seus acordes alegres e os seus hooks aleatórios, deu um bom concerto, bem recebido por caras sorridentes que sabiam as suas letras de cor. Pareceu, contudo, que se limitou a fazer o básico. Parecer este que não transpareceu de forma alguma para o resto da audiência.
O próximo nome a aparecer no plano de festas foi o dos Black Bombaim, que tocaram numa sala mais obscura, o Garden Saloon, para onde seguimos. Passamos pelo foyer da entrada, onde se antevia a arena principal através de portas completamente abertas, por onde saiam os beats atacantes do hip hop dos Mind da Gap. O FLIC brilha por isto, por não ter qualquer pudor em relação ao Coliseu, abrindo-o completamente com o esplendor de todas as suas salas, muitas destas desconhecidas à maioria dos portuenses. E se os naturais da cidade lhe conseguem dar um especial valor pela recriação de um dos seus anfiteatros mais emblemáticos, os restantes, perante a oferta nivelada de projectos e sonoridades diferentes, não ficam menos satisfeitos. O FLIC trouxe consigo uma rede de pesca extensa que, ao invés de alguns peixes grandes, apanha muitos peixes pequenos e distintos. É atraente como um todo e para todos.
O que dizer que ainda não foi dito sobre os Black Bombaim? Não há muito a acrescentar para quem já conhece a banda. Só para os desconhecidos isto poderá ter alguma utilidade. Usam o stoner como emblema. A sua música é lenta e não se revela ao primeiro contacto. O seu vocabulário aproxima-se mais do drone do que do rock tradicional, e expressa-se em cadências longas de dinâmica flutuante. Neste gig foi nos ofertado isso tudo, com uma postura especialmente contida mas genuína. E quando se ouviu “África II”, do seu mais recente álbum “Far Out“, este trio barcelense revelou-se um especialista aguçado em produzir transe sonoro: após a entrada do riff deliciosamente harmónico e do seu ritmo saliente, apercebemo-nos (sempre) tarde de mais que não temos os pés na chão.
Os Black Bombaim deram um concerto meditativo e introspectivo, único no panorama deste pequeno festival. É muito interessante ver como esta música, oriunda de culturas e gentes distantes que a transportam no sangue e no compasso do dia a dia, ao ser recriada pela banda, transforma-se numa experiência stoner potente e rochosa, com fuzz e acidez, mas que nunca perde as suas raízes ancestrais. Ao mesmo tempo, LASERS enchia com a sua electrónica luminosa um Salão Árctico tristemente vazio.
Quando reentramos no Garden Saloon para ver os Throes + The Shine, as paredes suavam: esta foi a imagem imediata, perante a explosão de energia que se combustava no palco, os dois frontmans enérgicos a segurar o público pela mão, a audiência em fervor ao longo de todo o concerto. Essas mesmas paredes reflectiam uma fusão de kuduro angolano com instrumentação rock. Em comparação com o trio anterior, que também utiliza o ritmo como matéria-prima, esta banda expele-o cru, em canções directas e impactantes. O resultado é explosivo.
A certa altura, um casal quarentão, claramente mais velho que a média das idades, procura um momento de intimidade. Esta procura explicita o ambiente que a banda fez mergulhar na sala: vibrante, primaveril, eternamente jovem. Ao longo do espectáculo, o seu interior conservou-se mais novo que o do restante Coliseu. Antes de acabar, ainda se formou um dance pit, onde membros aleatórios do público revelaram os seus dotes escondidos para a dança. E quando acabou, consideravelmente depois da hora prevista, o chão estava líquido. Os Throes + The Shine fizeram a derradeira celebração da noite, bem conservada nas paredes do Garden Saloon. “Hoje é Festa”: cantou-se no palco, transpirou-se no público.
A cabeça de cartaz, The Legendary Tigerman, foi quem trouxe mais cabeças à sala principal. Paulo Furtado abriu as hostes com uma postura pouco arriscada, prejudicada por um som deficiente, arranhando o palco com alguns dos seus principais singles. Mas com o passar do concerto, desenvolvendo-se a interacção entre os músicos (para além do protagonista, actuaram João Cabrita no saxofone e Paulo Segadães na bateria) e entre o bluesman e as suas convidadas virtuais, soltaram-se da plateia os comentários e uivos que enaltecem o homem tigre de “Femina“. No final, temos o guitarrista a berrar “21st Century Rock ‘N Roll” nas grades, agarrado ao público, em puro êxtase. Enquanto cabeça de cartaz, The Legendary Tigerman cumpriu as suas funções, nem acima nem abaixo da qualidade geral.
Carecendo de observações finais, podemos comentar o FLIC sobre dois pontos de vista. Culturalmente, é mais uma mostra da metamorfose dinâmica que o Porto vive no presente. Musicalmente, com a sua oferta coesa e variada de artistas que se sentiram confortáveis em demonstrar o seu talento num conjunto de concertos brutais, foi um sucesso estrondoso. Sendo a sua primeira edição, agora é só esperar que ganhe reputação e que se torne em mais uma referência dos festivais do norte e, quem sabe, do país.
A honra de encerrar a festa coube aos Gin Party Soundsystem, que fizeram uma nova, de raíz. Tendo como banda sonora hits de eurodance, este complexo grupo de pessoas passou a ferro em palco, partiu um Magalhães, despiu-se e voltou-se a vestir, abanou-se descontroladamente, uns membros em estilo gelatinoso, outros de maneira mais caquética, reinados pela pura anarquia.
O público reagiu muito bem, decorado com as pulseiras luminosas oferecidas, e acabou o set a dançar no palco com os anarquistas, uns a fazer break dance, outros a apresentar livros. Com a quantidade de informação audível processada pela cabeça ao longo do festival, soube bem destilá-la para o resto do corpo. E segundo os últimos comentários que ouvimos no Coliseu, foi o final merecido para uma grande noite.
Texto: Gonçalo Tavares
Fotografia: Joana Linhares (Stalking Project)