Pain Of Salvation na República da Música. Uma dor que se partilha, uma salvação que se escuta

A República da Música pode ser uma sala nova, mas já tem história para contar. No passado domingo, 29 de setembro, recebeu dois nomes de inegável qualidade, os emergentes portugueses Apotheus e a instituição progressiva que são os Pain Of Salvation, numa noite que tocou todos os presentes e ficará na memória coletiva de uma plateia agraciada por sonoridades inebriantes.

 

Apotheus

As honras de abertura couberam aos pacenses Apotheus, um dos segredos mais bem guardados do metal progressivo nacional. Com início às 20h30, o concerto serviu de apresentação do seu mais recente álbum, Ergo Atlas, cujo primeiro tema foi também o som inaugural da noite. Foi uma demonstração do que seria o mote de toda a atuação: uma banda coesa, confortável no palco, expressiva e com composições de qualidade acima da média.

Da meia dúzia de temas retirados do referido álbum de 2023, foram apresentados mais dois logo de seguida, Firewall e Cogito, tendo já a banda conquistado o público ao terceiro tema. Era hora de ir mais longe no passado, até ao álbum The Far Star e aos temas Caves Of Steel e Redshift (que encaixaria bem num álbum de Amorphis), tendo o vocalista Miguel Andrade recorrido com mais predominância ao gutural. A imponente Ergo Bellum, com pinceladas “meshuggescas”, e a balada March To Redemption, marcaram logo de seguida o regresso a Ergo Atlas.

Por entre músicas, a banda foi agradecendo de forma sentida ao público presente, que retribuiu com amor na mesma medida (mas nenhum de forma tão definitiva como o Carlos e a sua tatuagem da banda). O trio final de temas foram a coroação de uma prestação rainha; primeiro com a vertiginosa The Pull Of Plexeus, com introdução acompanhada a palmas do público; depois com a brilhante The Unification Project e aquele final a lembrar a The Sky Is Red de Leprous, ao qual o público se rendeu e deu o aplauso mais efusivo do cocnerto; já a despedida, deu-se antagonicamente com A New Beginning, música que também encerra o álbum The Far Star.

Foi cerca de uma hora do melhor que o metal progressivo nacional tem para oferecer, de uma banda com qualidade para se elevar a patamares mais altos do que aqueles que agora pisam.

Setlist: Shape And Geometry | Firewall | Cogito | Caves Of Steel | Redshift | Ergo Bellum | March To Redemption | The Pull Of Plexeus | The Unification Project | A New Beginning

 

Pain Of Salvation

No ano em que celebram 40 anos de carreira, os mestres progressivos suecos trouxeram finalmente o seu álbum de 2020, Panther, às estradas europeias. Foi com tema de abertura deste, Accelerator, que o concerto arrancou de forma quase abrupta pelas 21h50. Cedo deu para perceber que, maior do que a sede de palco do quinteto sueco, só mesmo as saudades do público português, que os recebeu em apoteose e manteve uma energia constante ao longo das quase 2 horas de concerto.

Do álbum In The Passing Light Of Day vieram as duas músicas seguintes; primeiro a obra-prima Reasons e o seu ódio semicaótico, seguida pelo aclamado single Meaningless, com o refrão acompanhado exemplarmente pelo público. Fez-se então ouvir a cristalina e doce introdução de piano de Wait, uma das músicas mais emotivas de Panther e que se traduziu num momento mágico em palco.

A primeira viagem ao passado mais distante veiculou-se com Used, do álbum The Perfect Element, precedida de um workshop do mestre Daniel sobre como a audiência deveria gritar a plenos pulmões, e sucedida pelo clássico Beyond The Pale, do álbum Remedy Lane. Daniel Gildenlöw, diga-se, esteve vocalmente irrepreensível durante toda a noite, doce nos momentos mais calmos, incansável nos agudos, pujante na rouquidão, mostrando ainda toques de rap em Panther, tema que nos fez voltar ao presente, novamente com o público a fazer jus ao seu papel ativo no concerto, cantando o refrão de forma entusiasta.

Estávamos a meio desta agitada viagem, quando a magia experimental envolveu os ouvidos sequiosos de tal sonoridade com Restless Boy, um dos temas onde a mestria e unicidade de Léo Margarit na bateria mais se evidencia. Logo de seguida, outro memorável momento, com os dez minutos de On A Tuesday a parecerem curtos, novamente com a plateia a ajudar na letra, durante a parte mais calma desta montanha-russa sonora.

Se a noite tivesse findado neste momento, já teria valido a pena. Mas o melhor ainda estava por vir. Os últimos 45 minutos de concerto foram de uma emotividade indescritível. Icon é de 2020, mas já soa a um clássico da banda, naquilo que pode ser descrito com uma espécie de balada progressiva de 13 minutos, com uma letra íntima e frágil, um instrumental minimalista quando é preciso absorber a emoção e explosivo na hora de a libertar.

A banda saiu para o anunciado encore, que começou com Vikram Shankar a tocar Falling no teclado, levando porventura o nome da música demasiado literalmente, pois num momento de maior intensidade corporal, acabou mesmo por fazer o teclado cair no chão. Por entre risos em palco, o momento, que contava também com Daniel na guitarra, continuou quase como se nada tivesse acontecido, numa caricata figura de Vikram a tocar no chão. Seguiu-se, claro está, The Perfect Element, uma obra-prima do metal progressivo, com Léo a dar um toque vocal sublime (não esquecendo, nesta e noutras músicas anteriores, a enérgica voz do guitarrista Johan Hallgren, um verdadeiro bicho de palco).

A noite não poderia terminar de outra forma que não com aquela que é, na humilde opinião de quem vos escreve, uma das obras mais emotivamente dilacerantes e dolorosamente genuínas da história da música. Dedicada à sua mulher, Daniel Gildenlöw deixou a sua alma em palco, num momento de partilha com o público da trágica inevitabilidade da morte e da suprema importância das pessoas que são os pilares da nossa existência.

Com esta melancólica despedida, os Pain Of Salvation já deixam novamente saudades; para a história fica aquele que foi, possivelmente, o concerto do ano em solo nacional, de uma das bandas mais criativas e brilhantes que partilham connosco este mundo de emoções contrastantes.

Setlist: Accelerator | Reasons | Meaningless | Wait | Used | Beyond The Pale | Panther | Restless Boy | On A Tuesday | Icon | Falling | The Perfect Element | In The Passing Light Of Day

 
Texto: David Matos
Fotografia: Marina Silva
Agradecimentos: Free Music