MEO Kalorama

MEO Kalorama. Danças rítmicas sob o calor intenso de Verão

Texto: Filipe Silva | Fotografia: MEO Kalorama

Dia 29 de Agosto

Em dias de final de Agosto, avizinha-se sempre o fim dos festivais de Verão, pelo menos para aqueles que não acreditam que Setembro ainda faz parte desse caloroso grupo. No entanto, seguidores ou não desse ramo de pensamento, facto era que o final de Agosto traz consigo um dos novos grandes festivais do nosso país: o MEO Kalorama. Nascido em 2022, o festival tem apostado não só em nomes importantes e elevados do panorama musical da actualidade, mas também naqueles que vão emergindo e marcando o seu lugar dentro da sua respectiva cena musical. Após edições que contaram com a participação de bandas como The Chemical Brothers, Nick Cave and the Bad Seeds, Yeah Yeah Yeahs, Aphex Twin, Kraftwerk, Arca ou Siouxsie, a edição deste ano prometia ser algo grandiosa novamente. Mas antes de lá chegarmos, esperava-nos uma caminhada por alcatrão ardente com a companhia de ar quente que quase cortava a respiração.

Limpando o suor da testa dentro dos possíveis, dá-se a ordem de entrada e os primeiros passos calcam o terreno do Parque da Bela Vista. O primeiro momento de concerto dá-se com Ana Lua Caiano, que levou até ao palco principal o experimentalismo e a arte do looping misturado com as nuances vocais da música tradicional portuguesa. Não se sentindo intimidada por estar a tocar num palco enormíssimo, algo que não lhe jogava muito a favor para começar, Caiano entreteve os presentes com um belíssimo som, enquanto ia informando as várias técnicas musicais empregues na sua prestação ao vivo. Um bom começo, portanto.

Seguiram-se os retornados Gossip, cerca de doze anos após a sua separação. Beth Ditto e companhia mostraram-se com uma força redobrada, talvez ainda melhores do que na sua primeira encarnação, saudando os presentes com um concerto carregadíssimo de amor e pujança. Entre a potência feroz da secção instrumental da banda e os momentos humorísticos e extravagantes protagonizados pela própria Ditto, ao lamentar da mesma pelo infeliz cancelamento de Fever Ray, os Gossip mostraram que o seu regresso não é fruto de nenhuma moda – a banda está cá para ficar e ninguém ouse dizer o contrário.

Limpa a poeira dos olhos causada pelos movimentos em Gossip, descendemos de volta ao palco principal para o tão aguardado regresso dos Massive Attack a solo português. E o que dizer de um concerto tão impactante, tão emocional, tão perfeito? A realidade é que meras palavras nunca irão chegar para descrever a absoluta obra de arte que foi o concerto do grupo britânico liderado por Robert “3D” Del Naja. Sempre da vanguarda do activismo, foram as mensagens e imagens de guerra passadas pela banda no fundo do palco, nomeadamente da Faixa de Gaza, que iam sendo intercaladas por imagens de filmes provocatórios e do próprio público presente como sendo alvos de um programa de busca, bem como teorias de conspiração em tom absurdista. O próprio Del Naja apresentou-se em palco com uma braçadeira que continha a palavra “Palestina”, e a própria bandeira foi mostrada em pleno, enquanto a banda dedicava “Safe From Harm”, ao povo palestiniano.

No alinhamento em si do concerto, não faltaram os clássicos como “Girl I Love You” e “Angel”, com o grandioso Horace Andy presente, assim como “Black Milk”, “Teardrop” e “Group Four” com a magnífica Elizabeth Fraser, a voz de anjo que também apareceu em palco numa rara actuação de “Song to the Siren” de Tim Buckley. Os Young Fathers, grupo escocês de hiphop progressivo fizeram uma aparência também durante “Gone”, “Minipoppa” e “Voodoo In My Blood”, enquanto a maravilhosa Deborah Miller, também ela uma voz angelical, participou na acima mencionada “Safe From Harm” e em “Unfinished Sympathy”. É tarefa impossível referir apenas um ponto alto de um concerto de Massive Attack; de início ao fim toda a banda se mostra irrepreensível e imaculada, certamente um dos melhores concertos que alguma vez vimos.

Também quase impossível é tocar a seguir a uma banda tão emblemática, mas quem se seguiria no mesmo palco era Sam Smith. Irreverente, provocador e incrivelmente talentoso, Smith trouxe novamente até Portugal o seu cabaret gay, pouco menos de um ano após a sua última actuação escandalosa em solo nacional. No entanto, enganem-se aqueles que achavam que iriam ver exatamente o mesmo concerto que no ano passado, pois Smith decidiu dar um twist no seu alinhamento e no seu cenário para poder celebrar o décimo aniversário do seu disco de estreia, In The Lonely Hour.

De mudanças de figurinos e vestuário à escultura gigante e dourada da “Hermafrodita a dormir” recriada pela TAIT Towers que agora se encontrava coberta por graffiti com palavras de empoderamento, Sam Smith abriu o concerto com uma sequência composta por “Stay With Me”, “I’m Not The Only One” e “Like I Can”, do disco acima mencionado. Ao longo do concerto, entre músicas carregadas de coreografias ousadas, pode-se ouvir o verdadeiro poderio vocal de Sam Smith, que não deixava de aproveitar momentos de pausa para tecer palavras de carinho e adoração pelo público português que respondia de igual maneira. Na recta final do concerto, ouviram-se temas como “Desire” e “Latch”, temas que protagonizou em estúdio com Calvin Harris e Disclosure, respectivamente. Para o derradeiro fim, ficou reservada a blasfémia de “Unholy”, que encerrou um grandioso concerto na perfeição.

Dia 30 de Agosto

O início do segundo dia deu-se com os intergalácticos vimaranenses Unsafe Space Garden, que desceram até ao Kalorama para nos mostrar que a seriedade adulta nunca se poderá sobrepor ao espanto de ser criança. Com uma atitude espumante e brincalhona, os Unsafe Space Garden surpreenderam com o seu rock experimental e a sua teatralidade que traziam à memória programas de televisão dos anos 90, como os Teletubbies ou o Jardim da Celeste.

Seguiu-se Olivia Dean, um dos nomes mais promissores da neo-soul, que se apresentou em palco em total modo de Verão, não só no que à indumentária diz respeito, mas também numa postura que irradiava felicidade. Acompanhada por uma banda composta por sete elementos, Dean foi intercalando temas do seu disco de estreia, Messy, com interações sorridentes com o público que lhe devolvia o carinho, mostrando-se super entusiasmada por estar pela primeira vez em Portugal e poder ser recebida de forma tão calorosa. Com o sol a começar o seu trajecto até ao repouso noturno, a sua lindíssima voz criou um ambiente de pura intimidade, algo raríssimo de acontecer em festivais de grande porte. Uma das revelações do festival, sem sombra de dúvidas.

Após um concerto no mínimo secante e sofrível protagonizado por The Kills, estava na hora de mexer o corpo e dar aquele passo de dança. Se com Olivia Dean, a diversão era a única regra, em Jungle tornou-se um lema de vida. Após uma passagem pelo Campo Pequeno no ano passado, a banda de Josh Lloyd-Watson, Tom McFarland e Lydia Kitto estava de regresso a Lisboa para uma vez mais apresentar o seu mais recente disco, Volcano. Envoltos num jogo de luzes incríveis, os Jungle causaram uma autêntica erupção no público, que dançou de início ao fim enquanto desfilavam temas como “Candy Flame”, “Heavy, California”, “Back on 74”, “All Of The Time” e “Keep Moving”.

A vontade de dançar não se perdeu depois da saída de Jungle, já que no mesmo palco ainda atuariam os LCD Soundsystem. Regressados ao nosso país após seis anos, o grupo liderado por James Murphy não trazia nenhum novo disco para apresentar além do novo single, “New Body Rhumba”, mas a festa seria feita na mesma. Munidos com uma gigante bola de espelhos, os LCD Soundsystem injectaram o público de novo com o bicho da dança em “Us v Them”, transformando todo o Parque da Bela Vista numa enorme pista de dança ocasionalmente iluminada pela dita bola espelhada. Todo o concerto foi um desfilar de clássicos como “You Wanted A Hit”, “Tribulations”, “Losing My Edge”, “Dance Yrself Clean”, “New York, I Love You But You’re Bringing Me Down” e “All My Friends”, que apenas serviram para aguçar o apetite, pois a vontade era continuar a dançar durante três horas seguidas, como acontecera na acima mencionada última passagem de LCD Soundsystem pelo nosso país.

Dia 31 de Agosto

O último dia da edição deste ano do MEO Kalorama foi, de certa forma, o mais estranho. Se por um lado, o palco terciário recebeu alguns nomes bastante interessantes dentro do panorama musical actual, por outro lado, o palco principal foi tristeza atrás de tristeza, com uma excepção a referir mais abaixo. Comecemos pelo bom e navegamos até ao mau. Tudo começou efectivamente com Moonchild Sanelly, cantautora sul-africana dona de um som que a mesma nomeia como «future ghetto funk», e que se pode descrever como uma mistura de vários estilos musicais como kwaito, hip hop, dancehall, funk e electrónica. Naquela que foi a sua primeira apresentação em solo nacional, apresentou em grande estilo o seu mais recente disco, Phases, levando boa disposição, muito twerk e muito voguing até ao público presente. Embora um pouco repetitivo ao fim de umas músicas, o seu som não deixou de ser algo refrescante, e a sua presença em palco, assim como a do DJ que a acompanha, não deixaram ninguém indiferente.

Os Bandalos Chinos foram recebidos no mesmo palco por um público que foi crescendo em números a uma velocidade ininterrupta. Com uma energia contagiante, o grupo argentino envolveu o público numa atmosfera de ritmo e folia com o seu synthpop extremamente cativante, convidando todos os presentes a abanar o esqueleto uma vez mais. Seguiram-se os Yard Act, que levaram o público do Kalorama ao rubro com uma dose sónica mais pesada, fruto de uma mistura de noise rock com post-punk que nos remetiam a uns IDLES, Blur e até mesmo Nick Cave. Caóticos e imparáveis de início ao fim, os Yard Act demonstraram, tal como Massive Attack no primeiro dia, que música e política estarão sempre de mãos dadas.

A fechar este palco terciário, o denominado Palco Lisboa, esteve Yves Tumour, o imprevisível one-man-show que expande os limites da arte e cultura contemporâneas com uma atitude irreverente e um som aliado aos alicerces da electrónica, da música experimental e da neo-psicodelia. Como último concerto da noite soube como um refrescante copo de água após uma longa caminhada no deserto, apesar do cansaço ter causado desistência corporal a meio.

Falando da parte menos positiva do dia, a bizarria começou com Cláudia Pascoal, que foi a prova de que o pindérico e o ridículo têm certamente fãs em Portugal, mas que o gosto dos mesmos é algo duvidoso, seguindo para Ana Moura que, se antes se poderia considerar como uma boa cantora de fado, agora revelou-se mais como entretenimento das festinhas da terrinha com a adição indesejada e irreflectida de reggaeton. RAYE, por sua vez, não contradisse o facto de soar a uma mera cópia barata de Amy Winehouse, uma espécie de versão Wish da falecida cantora londrina, por muito que RAYE negue essa mesma afirmação por parte dos críticos. Na realidade, se tivesse metade da melodia e ritmo de Winehouse, talvez fosse algo digno de se ver ao vivo.

Para o fim ficou algo melhor e a tal excepção mencionada anteriormente, Burna Boy. Com uma forte presença em palco, e acompanhado por uma quasi-orquestra chamada The Outsiders, deu um concerto competente repleto de boas doses de afrobeat que até nos conseguiu fazer mexer um pouco o corpo. No final, após tanto Burna Boy como o acima mencionado Yves Tumour, arrastamos o corpo pesado até casa – uma real noite de descanso pós-festival era o que se pedia. E lá conseguimos recuperar, a seu tempo.