Fotografia: Nuno Bernardo
O Hard Club voltou a ser a casa do Amplifest para a sua nona edição nos dias 23 e 24 de Setembro, levando a música de «melómanos para melómanos», nas palavras da própria organização.
Com público oriundo de todos os continentes, o esgotado evento somou concertos, cinema, conversas e exposições, estendo-se a outros espaços da cidade do Porto. Foi o caso do ‘dia zero’, a 22 de Setembro, que possibilitou ao Amplifest dar o pontapé de saída em Serralves com a performance From Ruin de Candura e Rui Chafes. O espaço limitado não permitiu a todos desfrutar deste arranque, mas uma maior quantidade de pessoas acabou por se encontrar umas horas mais tarde no Ferro Bar. Foi neste espaço nas traseiras da estação de São Bento que Mat Ball se apresentou a solo, um dia antes de fazer o arranque ‘oficial’ do Amplifest no Hard Club com os seus Big Brave. Amplified Guitar foi o mote de um concerto marcado por fumo, luz encarnada e calor.
A 23 de Setembro, pouco depois da hora de almoço, já as atenções se centravam no Bürostage, palco maior deste Amplifest no Hard Club, com os Big Brave em formato quarteto. A banda regressou a Portugal um ano depois com maior carga de drone e doom ancorada na apresentação de nature morte, disco lançado este ano. Pouco mais de uma hora depois, no Beerfreaks Stage, Ellereve estreou-se em Portugal com guitarras reverberantes e elegância, tal como o recente disco Reminiscence evoca nos campos do post-rock, da neofolk e do goth rock.
Seguiu-se o ritmo de alternância de palcos. Ashenspire trouxeram ao Amplifest os temas de Hostile Architecture, um dos mais interessantes discos recentes de black metal. Com Alasdair Dunn ao comando da bateria, que mais tarde protagonizou uma talk ao lado de Robin Wattie (Big Brave) e Pedro Coragem (Candura), foi Rylan Gleave a tomar a responsabilidade da voz e a enfrentar o público. O caos (e os sorrisos) só se multiplicaram com a febre post-hardcore de Hetta do Montijo, cada vez mais emergentes e prontos a conquistar palcos fora de portas.
Os Mutoid Man trouxeram boa disposição e uma real ode aos riffs, com Steve Brodsky a comandar a apresentação do novo álbum Mutants, stoner, sludge e rock mais pujante graças ao baixo de Jeff Matz e à intensidade do baterista de sempre, Ben Koller. Numa ponta quase oposta do trato da guitarra, Sir Richard Bishop permitiu introspecção e meditação q.b. num Beerfreaks Stage mais arejado do que o habitual graças à hora de jantar em que se inseriu.
Por vários anos que passem, os Celeste continuam a surpreender pelos seus jogos de luz, alternados entre strobe e focos vermelhos colocados nas testas. Mas volvidos nove anos desde a sua última visita a Portugal, os franceses mostraram-se mais maduros na apresentação de Assassine(s), disco que ocupou quase todo o alinhamento neste Amplifest. Não faltou o negrume na recta final com “Laissé pour compte comme un bâtard” ou “Ces belles de rêve aux verres embués” nas únicas visitas a Animale(s) e Morte(s) née(s), respectivamente. Do Bürostage para o Beerfreaks Stage, Mathew ‘Kvohst’ McNerney regressou ao Amplifest depois de o visitar com Grave Pleasures. Desta vez trouxe o misticismo e a atmosfera de Hexvessel e o novíssimo Polar Veil, lançado na véspera.
Ainda que o Amplifest defenda que todas as bandas sejam headliners, justificado pelo tempo alocado para cada um dos concertos e não havendo sobreposições, é difícil refutar que os Amenra tenham assumido esse protagonismo de nome no topo do cartaz. Já haviam actuado nas duas últimas edições do festival, mas repetiram a presença de forma justificada: se em 2019 serviu para apresentar Mass VI, no ano passado a banda foi impedida de apresentar o mais recente De Doorn à última hora e apostou num alinhamento em acústico. Desse disco, no entanto, só se pôde testemunhar “De evenmens” e “Voor immer”, ficando reservadas as maiores ovações para “.Aorte”, “Am Kreuz”, a introdutória “De dodenakker” ou ainda “A Solitary Reign”, temas de diferentes capítulos da ‘missa’ belga. A fechar a música ao vivo do dia, a dupla NECRØ de João Vairinhos e Sara Inglês fez dançar ao ritmo de Death Beats à boca da madrugada.
A manhã de domingo, 24 de Setembro, permitiu ao renovado Batalha Centro de Cinema transmitir o filme de Clyde Petersen sobre os Earth, Even Hell Has Its Heroes, mas música ao vivo só às 14h30 no Beerfreaks Stage, já no Hard Club, com o death metal niilista de Aeviterne naquele que foi o primeiro concerto da banda nova-iorquina no continente europeu. No Bürostage, foi a título pessoal que David Eugene Edwards se apresentou, reduzindo-se ainda mais do seu projecto a solo tornado banda, Wovenhand, formada durante um hiato de 16 Horsepower. Com muita espiritualidade vimos percorrer uma dúzia de canções, com passagens únicas por esses dois projectos e ainda por “Outlaw Song”, do cancioneiro tradicional americano.
Foi também a ritmo lento e cativante que Hilary Woods fez o seu build-up rico em texturas e de atmosfera fria, apesar das cores quentes que a circundaram. Dispensando o microfone numa boa parte da actuação, foi na articulação de frequências ambient que permitiu ao baterista Gabriel Ferrandini preencher os vazios com as suas práticas quase xamânicas. Também em formato dupla, Divide and Dissolve partiram à busca da imposição do doom, articulando uma guitarra possante, muitos delays e uma batida estrondosa a cada acorde ecoado. Com mensagens de apelo à perseverança das culturas, em especial do povo indígena tsalagi da qual a saxofonista e guitarrista Takiaya Reed é descendente.
O trio britânico Esben and the Witch evocou uma sensação semelhante à de Ellereve no dia anterior. Post-rock com pop gótica, guitarras embrulhadas em delay e uma ocasião aproveitada para apresentar o mais recente álbum Hold Sacred, incluindo no alinhamento temas como a inicial “The Well” e a final “Petals of Ash”, mas também “In Ecstasy” ou “Heathen”. Com uma abordagem completamente distinta no que toca a fundir guitarra e baixo, os canadianos KEN mode trituraram com noise e hardcore a réstia de sede de violência que sobrou para este dia. Com VOID lançado dois dias antes, o Amplifest foi palco para a estreia ao vivo de “The Shrike”. No entanto a resposta foi constante a temas intensos de Null e Loved e até pareceu um concerto demasiado curto: sinal mais para uma banda que poderia regressar a Portugal sem ter de se esperar novamente onze anos e, preferencialmente, em nome próprio.
Não permitindo a captação de imagens em HIDE e preparando-se um verdadeiro ritual no Bürostage, restou aguardar pela subida ao palco de Sunn O))), nome maior deste Amplifest que testemunhou a dupla em toda a sua crua grandeza. Perdemos as contas ao número de amplificadores e cabs em cima do palco, assim como aos decibéis que fizeram tremer o chão e as paredes da sala maior do Hard Club. O denso fumo lá foi permitindo avistar Greg Anderson e Stephen O’Malley que, com os seus mantos, foram senhores druidas da guitarra, da articulação drone e de toda a potência da vibração sonora. Mas enquanto a dupla fez mexer a estrutura do edifício, o trio MДQUIИД fez agitar os corpos teimosos para Dirty Tracks For Clubbing, batida incessante ancorada no baixo e com muito noise e rasgos psicadélicos de guitarra. Um fenómeno bastante diferente mas com um percurso algo paralelo ao de Hetta. É vê-los por cá antes de saltos maiores.
Destaque para outros pontos de interesse neste Amplifest, das talks à exposição rica em detalhes do sintrense Zé Burnay, passando pelo inúmero merchandise, discos, peças de autor, posters, pedais de guitarra e cerveja artesanal. O Amplifest é mais do que uma soma de concertos contido nas arcadas vermelhas do Mercado Ferreira Borges: é um ponto central de interesses comuns, de troca de ideias e de celebração de melómanos para melómanos.