MEO Kalorama. Rock e batidas no parque

Texto: Teresa Mesquita & Nuno Bernardo | Fotografia: MEO Kalorama

Dia 31 de Agosto

O MEO Kalorama partiu para a sua segunda edição, novamente no Parque da Bela Vista, em Lisboa, com algumas alterações de disposição do recinto e um palco extra. Foi particularmente no Palco MEO que se centraram as atenções, com o Palco San Miguel, na ponta mais distante da encosta, a servir as propostas mais capazes de fazer mover o público do principal palco do festival.

Pongo (e a filha) teve a honra de inaugurar o Palco MEO. A rainha do kuduro fez por merecer o convite, aumentando a temperatura para as pessoas que cedo já torravam ao Sol ainda bem alto das 16 horas. Da mesma forma, Amyl & The Sniffers logo a seguir rasgaram rock e fizeram levantar muita poeira: avistou-se uma performance energética e feroz da australiana Amyl, que lidera o grupo, que tornou o concerto memorável nas primeiras guitarradas de todo este segundo MEO Kalorama.

No Palco San Miguel a luz ainda bastante presente não proporcionou o cenário ideal para o concerto de M83 e a apresentação de Fantasy, álbum editado este ano. A banda francesa de Anthony Gonzalez teve alguma dificuldade em impor a sua synthpop e shoegaze camuflado de post-rock num palco particularmente difícil de agradar: o palco dito ‘secundário’ do festival foi relocalizado, mas não deixou de ter os problemas de visibilidade e sobretudo de som nesta tentativa de correcção. “We Own the Sky”, “Dont’ Save Us From the Flames” e as finais “Midnight City” e “Mirror” foram algumas das melodias que conseguiram guardar boas memórias.

Já de olhos postos no pôr-do-Sol, os carismáticos Yeah Yeah Yeahs regressaram aos palcos nacionais após uma longuíssima espera e deram um grande concerto a uma plateia bastante composta. O som já convenceu mais e fez de valer por aplausos logo desde a introdutória “Spitting Off the Edge of the World”. Daí até à final “Date With the Night” pareceu um instante e mesmo visto de fora, uma dúzia de canções de curta-duração deu para aguçar o apetite mas não para uma refeição completa. Nenhuma responsabilidade da banda, que merecia mais tempo e maior destaque no alinhamento tal foi a apoteose com “Heads Will Roll”, “Gold Lion”, “Y Control” ou “Maps”. Que voltem rápido, yes yes yes.

Metronomy musicaram a hora de jantar com as melodias que já lhes reconhecemos de tantas passagens por Portugal em diversos festivais e contextos discográficos. Deu para recordar o discazo que é The English Riviera e também a batida frenética de “The End of You Too”, do já distante Nights Out, antes de se virar costas ao Palco San Miguel e partir de novo para o Palco MEO. O motivo era óbvio: Blur. A banda britânica regressou aos palcos nacionais apenas três meses depois de encabeçar o Primavera Sound Porto, mas Lisboa foi abençoada com uma apresentação mais firme do novo álbum The Ballad of Darren, que deu cinco aos vinte temas do alinhamento. Fora isso, foi também com mais pujança sonora que vimos Damon Albarn e companhia em relação ao Porto, para além da multiplicada boa disposição, falando-se de cerveja e do museu de marionetas de Lisboa. Em falta ficou o público, que nem por isso fez por entoar tanto “Beetlebum”, “Trimm Trabb”, “Coffee & TV”, “Parklife” ou “Tender” como deu para ouvir na cidade invicta.

De forma brilhante e no Palco Samsung, os Shame preencheram o espaço entre as guitarras de Blur e as batidas de The Prodigy, responsáveis pelo fecho do festival neste primeiro dia. Os gigantes do movimento big beat e de atitude electropunk tiveram tudo a seu favor, desde a poeira levantada pela audiência, a intensidade sónica e um tremendo espectáculo de luz. Isso significa que qualquer sabor agridoce se deve exclusivamente da banda, que muitas vezes entrou em modo para-arranca de hora de ponta, não dando espaço para as durações originais das faixas: “Breathe” foi cortada a meio, assim como “Voodoo People”; “Firestarter” praticamente não aconteceu, à excepção de uma bonita homenagem ao falecido Keith Flint; a derradeira “Out of Space” foi brutalmente desfigurada. Tivemos alguma dificuldade em entender algumas das decisões artísticas, mesmo que o mestre de cerimónias Maxim tenha dado tudo de si para agarrar os fãs (sentindo-se muito a falta da química que se testemunhava com Flint). Há coisas que simplesmente se querem directas e simples.

Dia 1 de Setembro

Foi preciso chegar (mais uma vez) relativamente cedo para caçar a estreia nacional de Ethel Cain, recebida por uma plateia em devoção absoluta. Foi pouco depois das 17 horas e num Palco San Miguel a não ser o cenário idílico para a sonoridade southern gothic da artista que se percorreram os temas de Preacher’s Daughter. A meio, uma arrepiante interpretação de “Thoroughfare” com Florence Welch a subir ao palco de forma surpreendente, a antecipar outro dos concertos mais aguardados do dia.

Já no Palco MEO, os escoceses Belle & Sebastian afirmaram estar velhos mas em nada se notou, aquecendo a tarde morna deste segundo dia de festival. Muito comunicativo, o vocalista Stuart Murdoch procurou saber quem do público se encontrava apaixonado, antecipando uma balada «feliz, feliz, feliz, feliz e depois triste». O próprio conheceu a sua mulher num festival e escreveu uma música que cantou enquanto se equilibrou e percorreu as grades do público, “Piazza, New York Catcher”. Uma aparente avaria no piano fez temer a exclusão de “The Boy With the Arab Strap” do alinhamento, dando-nos uma “Get Me Away From Here, I’m Dying” enquanto o piano foi reparado. Depois da celebração de ‘arab strap’, com fãs em palco para dançar e a tirarem selfies, ouviu-se um trecho de “(I Can’t Get No) Satisfaction” dos Rolling Stones e um aplauso final para “There’s Too Much Love”.

O pôr-do-Sol ainda convidou aos beats melancólicos e ‘instagramáveis’ de FKJ, que sozinho no Palco San Miguel se desdobrou numa panóplia de instrumentos e loops, mas não se demorou a procurar um lugar junto do Palco MEO para receber Florence + The Machine. Dedicando metade do alinhamento ao mais recente disco Dance Fever, ficou evidente o conceito de espectáculo cerimonioso e algo angelical. Neste regresso aos palcos de Florence Welch, após uma cirurgia que lhe terá salvado a vida, houve uma maior dose de emoção à mistura que culminou em “Morning Elvis”, em que foi retribuído o momento da tarde e chamou Ethel Cain para a cantar. Seguiram-se “You Got the Love”, “Dog Days Are Over” ou “Cosmic Love” antes da saída de palco em “Restraint”. O encore não se fez por menos, com “Never Let Me Go”, Shake It Out” e, a fechar de vez, “Rabbit Heart (Raise It Up)”. Uma fórmula vencedora.

Num comprimento de onda sónico completamente diferente, Arca alavancou o seu estilo incomparável e ousado para fazer ferver a audiência no Palco San Miguel. A primeira metade do set foi mesmo em modo DJ, com diversas interacções e snippets de faixas a serem distribuídas gratuitamente. Foi já aproximando-se o final que algumas faixas do extenso projecto Kick foram cartas na mesa, passando também de forma subtil pelo trabalho homónimo lançado em 2017. Apesar de todo o aparato e do público ter sido definitivamente agarrado, as suas batidas experimentais de reggaeton nem sempre tiveram o melhor som para as potenciar – aliás, uma constante neste palco.

Felizmente o som esteve bastante forte para o set de Aphex Twin, cabendo ao lendário produtor de música electrónica o fecho do Palco MEO neste 1º de Setembro. Com uma projecção futurista ao centro, por cima da sua mesa, foi de forma frenética (e bastante alta!) que centenas de bpms foram destiladas no Parque da Bela Vista, para felicidade de uns e sacrifício de outros. Quem resistiu – e foi bastante visível a plateia a ficar despida a partir da meia-hora de set – sabia bem ao que ia e ao que queria. Transições irrepreensíveis e um catálogo invejável de breakcore, viajando-se livremente entre o clubbing menos acessível e até o hiphop aqui e ali, com as projecções nos escrãs a devolver bastante humor que passou por figuras públicas portuguesas. Os derradeiros cinco minutos foram como os últimos foguetes de um extenso fogo-de-artifício.

Dia 2 de Setembro

No terceiro e último dia verificou-se uma adesão mais convincente no período da tarde. Muito por culpa de ser sábado e, coincidentemente, o concerto de Siouxsie ter sido às 18 horas. O Palco MEO pareceu ao mesmo tempo grande e pequeno demais para a dimensão histórica desta figura do rock e a própria disse não gostar, em tom rezingão, da distância e da altura a que se encontrava do público. A lição ficou dada na mesma, ainda que o som não a acompanhasse devidamente, ornamentando um macacão prateado para fazer dançar os fãs da velha guarda e os da nova geração que a celebraram a solo ou os seus extintos The Banshees.

Um par de horas mais tarde, houve outra geração do rock britânico a subir ao mesmo palco. Os Foals há muito que não são a ‘nova coqueluche’ do indie, mapeando o seu trajecto entre o math rock do primeiro álbum e o electrorock dos últimos esforços de estúdio. Mas é em palco que as coisas se unem e fazem mais sentido. As faixas do mais recente Life Is Yours foram despachadas cedo no alinhamento, restando tempo para percorrer todos os álbuns, nem que de forma pontual. Houve apoteose em “Mountain at My Gates” e “Olympic Airways”, muito pó em “My Number” e um bonito momento de comunhão em “Spanish Sahara”, mas guardou-se para o fim um tríptico explosivo e a reclamar aquilo que o rock deve ser: guitarras esvoaçantes em “Inhaler”, batida pujante em “What Went Down” e o melhor dos dois mundos em “Two Steps, Twice”. Um concerto digno de headliner, estatuto que a banda de Yannis Philippakis começa a reclamar em vários festivais, tal como aconteceu no Glastonbury no ano passado.

Subindo-se a encosta logo a seguir, houve uma nova dose de rock, esta mais directa e javarda, no Palco San Miguel. Os The Hives provaram que envelhecem como vinho e os fãs tiveram a oportunidade de matar as saudades da louca banda sueca. A coordenação cromática dos fatos e de toda a imagem da banda encheu o olho, havendo vários momentos de imprevisibilidade enquanto as músicas foram entoadas. O novo álbum The Death of Randy Fitzsimmons, o primeiro em onze anos, contribuiu com vários singles bestiais para o vocalista Pelle Almqvist ser um convincente mestre de cerimónias. O público presente nas primeiras filas, a guardar lugar para o concerto de Pabllo Vittar logo a seguir, parece não ter gostado de algumas brincadeiras, criando-se alguma tensão misturada de humor no intervalo de algumas faixas. Desfrutou mais quem fez para levantar muito pó entre mosh e crowdsurfing nas filas seguintes, onde os fãs mais fervorosos dos The Hives se conseguiram concentrar.

De volta ao Palco MEO, os Arcade Fire subiram a um palco que já conhecem de outras ‘lides’. Foi naquele mesmo espaço, em 2014, que encabeçaram o Rock in Rio Lisboa num dos picos da sua performance, logo após o lançamento de Reflektor. Volvidos nove anos, o colectivo canadiano entrega-se muito mais à electrónica introduzida nesse disco. O mais recente WE, o suposto regresso à ‘forma’, não é mais do que uma extensão sónica de Everything Now, ainda que o single “Unconditional I (Lookout Kid)” e a combo “The Lightning” tentem convencer do contrário. Foi precisamente na introdutória “Age of Anxiety II (Rabbit Hole)” que se sentiu mais sinceridade nestes novos Arcade Fire envoltos em polémica que afecta até a cena musical de Montreal. De resto, a celebração do costume com os temas eternos de Funeral e passagens bastante tímidas por Neon Bible e The Suburbs, os três discos que colocaram os Arcade Fire no topo do mundo. Sentiu-se a ausência de Will Butler, irmão de Win e também co-fundador da banda, também se fez sentir por ser um dos mais inquietos membros. Continua-se a passar um bom bocado, não fosse esta uma das bandas mais competentes em palco, mas as interrogações sobre o futuro vão continuar a pairar no ar de modo pouco discreto.

O fecho da segunda edição do MEO Kalorama fez-se no Palco Samsung às mãos de Young Fathers, grupo escocês que se destaca pelas suas incursões na música lo-fi, noise e art pop no seio do hiphop, da electrónica e da soul: um cocktail que os potencia a cada disco desde a célebre estreia Dead, que lhes valeu o Mercury Prize em 2014. Foi com o mais recente Heavy Heavy, lançado este ano, que se dançou maioritariamente, fazendo-se uma passagem única pela estreia com “Get Up”. Recuperou-se “Queen Is Dead” do EP Tape Two noutra memória mais longínqua do trio de Edimburgo que tarda a ter um concerto em nome próprio em solo português.

O MEO Kalorama regressa em 2024 nos dias 29, 30 e 31 de Agosto. Resta saber o local, não anunciado pela promotora Last Tour, sugerindo uma possível mudança de cenário: algo que pode ser bem-vindo dadas as dificuldades em acertar o Palco San Miguel e também em garantir horários mais ‘habituais’. Foi especialmente no último dia, a um sábado, que o tema de conversa da saída (pela uma da manhã) foi «onde vamos a seguir?». Em 2024 veremos.