Vodafone Paredes de Coura. Teremos sempre Coura

Texto: Ana Margarida Dâmaso | Fotografia: Ana Ribeiro

Para trocar as voltas aos festivaleiros, a chuva este ano ganhou lugar de destaque nos dias que antecederam o Vodafone Paredes de Coura, sendo que o último dia do Festival Sobe à Vila foi inclusivamente cancelado devido às condições atmosféricas. A tradição diz-nos que chove durante o festival e não antes. Este ano houve até um dia-extra, o 16 de Agosto, para testar a veracidade dos factos.

16 de Agosto

O primeiro dia de Vodafone Paredes de Coura versão 2022 abriu portas à sua maior edição de sempre. Foi antecipado pela aquisição de galochas e capas para a chuva, que cedo tomaram lugar, a partir das 14h00, para o concerto de The Lemon Lovers. As palavras dirigidas ao público, neste dia exclusivamente em português e dado o curto espaço de tempo para cada uma das bandas ou artistas, são trocadas por reportórios carregadas de êxitos. Assinalou-se ainda assim o impacto dos anos de interregno devido a pandemia e as saudades dos festivais, sobretudo Coura – o mais humanista -, que em anos de não-festival chegou a receber público no recinto. Para amenizar as saudades, este ano o merchandise oficial incluiu a frase «Teremos sempre Coura».

A chuva lá deu tréguas mais para o final da tarde para os concertos de The Twist Connection e You Can’t Win, Charlie Brown. Chegada a vez de Samuel Úria, um amante assumido do festival, as palavras de combate foram lançadas: «Começou a chover? Façam lama» e «Isto é bonito, isto é mel!». Deixou um “Lenço Enxuto” para um bonito momento de cumplicidade com o público, entoando juntos. Dedicou-se ainda «É Preciso Que Eu Diminua» a uma amiga aniversariante. Fosse pela chuva ou pela vontade de assistir a um dos mais recentes nomes emergentes da música nacional, Rita Vian viu a tenda do palco secundário encher muito rápido. Depois deste concerto, rumou-se a Linda Martini – que viram o seu nome trocado para Luísa Martini – para mais um concerto certeiro, com mosh e crowdsurfing logo nos momentos iniciais. Uma história de amor já com muitos anos.

 

Entre 10 000 Russos e Bruno Pernadas, foi hora de Mão Morta. Tamanha antecipação fez arrancar o concerto até antes do esperado, com Adolfo Luxúria Canibal, com a sua característica voz e feições expressivas, a ser o rosto de um som sombrio da dura realidade. A festa faz-se em diferentes temperaturas, cores e estilos musicais, daí que mais tarde subiram ao mesmo palco Sam The Kid com Orquestra e Orelha Negra. Falamos do concerto mais lotado e bem recebido pelo público deste dia, cuja excitação é compreensível. A introdução foi feita por Napoleão Mira, pai de Samuel Mira (se tivermos de tratar Sam The Kid de uma forma mais pessoal), com o poema “Cântico Negro” de José Régio. O concerto arrancou com “A Partir de Agora” e o rapper explicou ser «uma grande nostalgia» que sente, por ter estado no festival em 2002 e só ter voltado passados vinte anos, «com mais barriga». Um dos seus convidados foi NBC, com quem partilhou “Juventude (É Mentalidade)”, antes de relembrar o seu avô, que nunca esteve num concerto seu. Traz a sua memória através de “Sangue”, numa arrepiante despedida emotiva. “Gaia/Chelas”, fruto da colaboração com Mundo Segundo, e “Não Percebes” fizeram também parte do alinhamento. Volvidos sete minutos ininterruptos de rap, Sam chamou novamente o pai para a introdução de “Sofia”, dedicando depois “Poetas de Karaoke” ao «mano Barbosa, que esteve aqui em 2002 e já não está entre nós», ligando a emoção à energia para “Sendo Assim”.

 

A festa continuou no palco ao lado com Conjunto Corona, de rimas e batidas afiadas para os mais jovens e nortenhos orgulhosos. Como habitual, não faltou hidromel para o Homem do Robe distribuir. O Palco Vodafone, o principal, deu-se por encerrado neste primeiro dia com Moullinex, em mais um espectáculo incrível que arrancou com “Running In The Dark”. «Boa noite Paredes de Coura, isto é um sonho tornado realidade para nós» foi o cumprimento dado para um dia histórico, 100% português e que viu alguma justiça reposta de dois anos complicados para a indústria nacional. Já o encerramento do palco secundário esteve a cabo do Conjunto Cuca Monga.

 

17 de Agosto

Se o dia anterior tinha sido mais dedicado aos festivaleiros do campismo, a marcar presença assim que possível, este esteve mais completo por um público mais alargado. Às 18h00 já muitos marcavam presença no Palco Vodafone FM, o secundário, para Gator, the Alligator.

Foi com dificuldade que a grande concentração de pessoas se mobilizou entre palcos assim que o concerto terminou, desta vez para escutar outro nome nacional, Mema. Já tinha protagonizado a primeira Vodafone Music Sessions desta edição, onde os festivaleiros são resgatados para um concerto secreto, na Associação Cultural Recreativa e Desportiva do Padornelo. Desta vez subiu ao palco principal sozinha, apenas com a sua guitarra. Foi novamente em bom português que este palco voltou a arrancar, ancorado numa mistura de sons tradicionais nacionais com batida e sintetizadores a pautarem o tempo. «A partir de agora este concerto não é para ficar sentado», dirigiu ao público, convidando-os a esticar as pernas no anfiteatro natural. «Quero que cantem “Eu Estou Bem!”. É isso», disse ainda, para ganhar alguns coros. Apesar dos esforços, o público preferiu manter-se sentado.

Regressando ao Palco Vodafone FM, e apesar de algumas falhas de som que motivam alguns risos por parte da banda e apoio do público, o quarteto de jovens Porridge Radio ajudou a trazer de volta a vibe característica de Paredes de Coura e do seu palco secundário, que sempre permite conhecer nomes emergentes do panorama musical internacional. A mostra de indie rock que toca ao coração, e roça o grunge, trouxe-nos à lembrança as indecisões e vivências das nossas vidas particulares. Pela relação, a banda de Dana Margolin foi logo muito aplaudida ao final da primeira música, tratando-se esta a sua estreia em Portugal. No mesmo palco, uma hora depois, Indigo de Souza recebeu uma audiência bastante efusiva, barulhenta e pronta a fazer dos aplausos a sua arma. Mais uma vez, o palco secundário a centrar e a receber as maiores revelações, mostrando-se curto para tamanha audiência.

 

Com o cancelamento de King Gizzard & The Lizard Wizard, houve espaço para o Palco Vodafone receber os repetentes BADBADNOTGOOD. Quase sem luz no palco, também houve quem não se tivesse deixado iluminar: «Não tem assim tanta piada», ouvimos no público, apesar dos jovens serem óptimos reprodutores de jazz ecléctico. Não servirá a todos os gostos e quem ficou foi brindado com momentos de grande interacção, mesmo sem palavras. A plateia lá acendeu um bonito céu de pirilampos com as lanternas dos telemóveis e com as habituais lâmpadas da Vodafone e acedeu ao pedido para se agachar e saltar em conjunto.

Com o avançar da noite chegou também o rock mais pesado, mais cru, mais primitivo e vindo de um submundo escuro e perfeito. The Murder Capital, quinteto irlandês, teve o seu vocalista a surgir de óculos escuros, do seu alto e imponente estar, apesar de já estar escuro que chegue. A banda entregou-se ao público que lhes deu resposta equivalente, com muita movimentação e trabalho de casa: cantaram-se não só as letras, mas também os acordes e as melodias. O foco foi o disco When I Have Fears, de onde se entou “For Everything” e “More Is Less”, e que motivou uma descida de James McGovern, o vocalista, até ao público encantado com o seu post-punk pseudo-melancólico. Prova desse adjectivo? O tema “A Thousand Lives”, de um trabalho que está para vir.

 

Já passavam das 23 horas quando IDLES, a banda mais aguardada do dia (arriscamos dizer) tomou o seu lugar em palco. O público efusivo, a entoar «ohh ohh» ao ritmo das primeiras notas das guitarras, fez por se ouvirem as letras, perfeitamente decoradas. As primeiras filas – que é, como quem diz, todo o espaço entre as grades de palco e a régie, transformaram-se numa rebelião, numa explosão, numa espécie de super mosh: até o guitarrista Lee Kiernan quis experimentar um pouco e fez crowdsurf enquanto tocava. “Colossus”, “Car Crash”, “Mr. Motivator” ou “Mother” vieram afirmar o concerto mais enérgico até então. Já após “Divide and Conquer”, Joe Talbot, voz da banda de Bristol, afirmou este ser o seu «sítio favorito do mundo para tocar». Chegou-se a um registo mais calmo, mas mais apoteótico, em “The Beachland Ballroom” e com o folgo recuperado, voou-se até “Never Fight A Man With A Perm”.

Num registo diferente, foi a vez dos também já conhecidos Beach House pisarem o palco do mais belo anfiteatro natural, mostrando gratificação por isso. «Estamos muito feliz por estar com vocês. Sentimo-nos incrivelmente sortudos», contaram-nos, ainda que tivessem pedidos especiais e restrições para recuperar a mística sonora da sua dream pop, com as luzes de vários pontos do recinto a serem desligadas. “PPP”, “Myth” e “Space Song” chamaram ao ouvido como êxitos maiores e a dupla norte-americana mostrou-se preocupada com o bem-estar de todo os seres vivos naquela comunhão musical: «Está toda a gente a sentir-se bem? As árvores estão bem?». Tal como BADBADNOTGOOD, as luzes servem para iluminar o palco e não os elementos da banda, que são difíceis de definir no escuro das suas sombras. O céu até estava mais estrelado e a lua meio-cheia. Sinais que nos convenceram num dos concertos mais especiais desta edição.

 

A festa seguiu em modo after no Palco Vodafone FM com os loucos Viagra Boys e a batida de HAAi.

18 de Agosto

Num dia mais calmo voltaram-se a observar famílias entre grupos de amigos, com os seus rebentos e a introdução a uma nova geração esta vida de festival. Houve quem aproveitasse a hora de almoço para se concentrar no rio e assistir à Vodafone Music Sessions do dia com Nuno Lopes, por exemplo, para se deixar consumir pelas surpresas e a imprevisibilidade em oposição ao imediatismo tecnológico. Num festival onde os artistas assistem aos concertos uns dos outros em proximidade, são muito menos os telemóveis erguidos (para “desligar” ou simplesmente para poupar bateria), transformando Coura num local com propriedades mágicas.

Já dentro do recinto, os primeiros a subir ao palco secundário neste dia com menor afluência foram os Surprise Chef, grupo de soul e jazz para iniciar a tarde de forma calma, de bebidas na mão e com um clima aproximado ao que chamamos de Couraíso. O microfone na frente de palco foi desnecessário até ao final do terceiro tema, tendo-se até aqui feito transições contínuas que agradaram ao público. Nas poucas palavras que disseram mostraram a sua admiração do público português, sendo esta uma estreia por cá dos alemães.

Já no palco principal encontrámos Yellow Days, muito bem recebidos com aplausos e gritos de histerismo; também o vocalista da banda demonstrou o seu carinho por este local. Rumando novamente ao Palco Vodafone FM, encontrámos Donny Benét, parte de outra geração, atraindo um público menos jovem. O artista australiano trouxe o estilo mais tradicional, jazzofónico, com baixo, bateria e saxofone a comporem o trio em palco. Benét mostrou-se interactivo, sorridente, relaxado e carregado de piada. Destacou o festival, a comida portuguesa e a beleza do povo entre temas como “Working Out”, “Mr Experience” – falando aqui sobre a sua imagem ao longo dos anos, acabando por dedicá-la a todos os «homens feios» -, “Moving Up”, “Second Dinner” ou “Reach Out”.

 

Já mais aguardados, até com bastante representação internacional no público, The Comet Is Coming aterraram no Palco Vodafone. Apesar de compostos por três músicos – entre eles o saxofonista virtuoso Shabaka Hutchings -, em palco são um total exército musical num dia com um tónico de jazz. No entanto este é um som que se dança, em sentido oposto a um concerto de jazz convencional. Aqui dança-se, vive-se e sente-se o poder de cada instrumento e a oscilação melódica de cada sopro. Fazemos todos parte deste quadro contemplativo, ora emoldure-se esta pintura humana. Esta música não tem rima, não tem métrica e é feita à medida de cada um, alfaiates cósmicos, cabendo todos lá dentro: The Comet Is Coming é liberdade, é individualização e é respeito pela distância e diferença dos seres comuns.

Foi pelas 21h25 que os Parquet Courts pisaram o mesmo palco. No público encontravam-se bastantes seguidores, mas também muitos outros à descoberta. O post-punk da banda que soma uma dúzia de anos (mas que já tem um quê de veterania), transportou-nos para dentro do seu mundo, numa performance competente. “Human Performance” mobilizou a plateia e há quem só se tenha dado conta de que música se trata quando já se está embrulhado no meio do mosh, prolongado efusivamente em “Almost Had To Start A Fight / In And Out Of”. Fizeram também um exercício à memória e à lembrança, sendo-nos impossível recordar os queridos LCD Soundsystem em “Wide Awake”. Que continuem assim.

 

Nesta noite houve ainda espaço para o hardcore de Turnstile, mas o jazz foi o cativante diário. Viria a antecipar o concerto da noite e, para alguns, o desta edição: o dos franceses L’Impératrice. Com as suas “Agitations Tropicales” embalaram com o seu nu disco, fizeram a festa do amor, da música e da natureza. A resposta foi uma tremenda ovação. Depois desta tempestade, gostávamos de saber quem resistiu para Nu Guinea e John Talabot no after.

19 de Agosto

A temperatura subiu e a permanência junto do rio fez-se de forma notória. Talvez por isso, pelas 18 horas, estava menos gente que o habitual para arrancar mais um dia de festival. Márcia recebeu no Palco Vodafone FM um público mais maduro, num cenário de fundo laranja como o sol, que mais tarde se pôs. Na linha de trás, avistámos bateria, guitarra, baixo e teclas; na linha da frente, Márcia comandou com a sua guitarra e voz, terminando a primeira canção com uma vénia e uma saudação ao público. De “Cabra-cega” a “A Tempestade”, passando por “A Insatisfação”, foram vários os temas acompanhados pela audiência que ora cantou, ora aplaudiu. A artista nacional partilhou, «Já me tinham falado que o público aqui em Paredes de Coura era muito generoso e fofinho e estou a comprovar», antes de pedir que acolhessem nos seus corações o seu recente single “Meu Amor Bem Sabes”. Depois de “Corredor” e “Pudera Eu”, voltou a mostrar o seu deslumbre pelo «sítio maravilhoso», flutuando depois entre registos mais ou menos calmos, sentada, a tocar ou a capella, deixando-nos muito de si e levando muito da plateia e do local. “Lado Oposto”, um forte aplauso e estava feita a despedida.

A abrir o principal Palco Vodafone nesta sexta-feira esteve Sylvie Kreusch que, apesar de cantar em inglês, foram notórias as sonoridades indie rock com trejeitos árabes de percussão que, juntamente à pronúncia francesa, atribuíram uma conotação sensual ao festival como ainda não tinha acontecido este ano. Teve um género de suavidade a la Nouvelle Vague mas com um timbre vocal meio Catarina Salinas, dos Best Youth, mas também meio Russian Red, numa vertente mais dura do rock. Em “Sangri-La” convidou-se o público a dançar. «Eu sei que está muito calor, mas vamos dançar», correspondendo-se ao pedido. Perto do final começou-se a movimentação para o palco secundário de modo a receber Baleia Baleia Baleia. Não estando lotado, manteve-se sobretudo a presença de portugueses curiosos ou que acompanham a dupla de bateria e baixo/voz. Admitiram ser um sonho tocar em Paredes de Coura e no final da primeira música, “Interdependência”, já as camisas tinham sido descartadas, prontos para outra. «’Bora lá abanar as anquinhas, pessoal. Exercício é sempre bom», enquanto se exemplificou num movimento sensual no baixo.

 

Um dos grandes nomes do cartaz, com bastante visibilidade a nível internacional no panorama actual, subiria pouco depois a palco. Atribuíram a Arlo Parks o fim de tarde na colina, uma das melhores horas para tocar e encantar, e que bem lhe assentou. A par da simplicidade, a artista mostrou um ar despreocupado frente aos fãs nas primeiras filas, que mostraram ter as letras bem decoradas. Percorreu todos os êxitos – sim, pois apesar da sua curta carreira, o seu fantástico corpo de trabalho tem sido bastante apreciado -, como “Green Eyes” ou “Cola”, antes de pedir ajuda ao público para cantar o refrão de “Caroline” na sua companhia. “Eugente” foi a banda sonora para aquela transição do dia para a noite e quase do Verão para o Outono com a chegada de uma brisa fresca; a boa onda e a voz suave e doce que apela à paixão em “Sophie” marcaram um dos concertos mais agradáveis desta edição, recorrendo-se a “Softly” para agradecer o suporte do público nacional.

Mais tarde coube à galesa Kelly Lee Owens, a one-woman-band, dirigir a sessão numa vertente mais electrónica e tecnológica, com recurso a sintetizadores. Numa primeira faixa sem voz, foi a vestimenta que nos concentrou à sua imagem: à excepção do rosto, todo o corpo foi coberto por uma capa fina e escura. Demos conta tratar-se de uma versão da segunda metade de “Weird Fishes/Arpeggi” dos Radiohead. Ao segundo tema, “Keep Walking”, já mostrou a sua doce voz, incorporando-a no instrumental que preparou. Despiu-se depois do escuro e prosseguiu o balanço entre o ‘novo’ e o ‘velho’ nos temas que puxou do homónimo trabalho e de Inner Song.

 

De seguida no palco secundário encontrámos Arp Frique & Family, ou seja, uma grande festa familiar, de instrumentos, onde o idioma não se torna nada mais do que um adereço: os sons vocais são meros itens adicionais à composição musical para a festa de afrobeat e psicadelismo às ordens do neerlandês Niels Nieuborg. Mas como popularmente se diz, bom filho à casa torna. Pelo que as atenções de muitos estavam no palco principal para reencontrar o jovem que pernoitou em tempos no campismo, que cresceu e que agora surge acompanhado de uma banda: Ty Segall. Um abraço a Coura e ao público, mas pondo de parte a irreverência que caracterizou o músico norte-americano, restrigindo-se a poucas palavras e directos ao que vieram ali fazer: dar rock cheio de fuzz à malta.

 

A noite ainda prosseguiu neste palco com The Blaze, que não autorizaram a captação de imagens mas deixaram que se ‘abanasse o capacete’, e Ata Kak e Mall Grab no palco secundário.

20 de Agosto

O anfitrião da abertura do festival no último dia foi Manel Cruz, recebendo o público poucas horas depois de ter proporcionado a derradeira Vodafone Music Sessions desta edição, na Capela de Nª Srª da Purificação, em Irijó. Em ambos os locais a sua actuação deve aquele som docinho, qual cereja no topo do bolo de vários finais de tarde acumulados. «E salta Manel, olé olé» foi entoado e o músico dedicou algum do seu trabalho às novas e antigas gerações entre canções como “O Navio Dela”, “Acordou” e “Canção Sem Título”. Mas se há coisa aborrecida para quem está a aproveitar os primeiros concertos da tarde no Palco Vodafone FM, que habitualmente são minuciosos, é o atropelo sonoro do palco principal nos últimos minutos dos concertos. Poucos foram os que trocaram a confortável melancolia pelo que viria: a Irlanda continua a ser uma máquina de produzir bandas de indie rock, com os tranquilos Far Caspian a musicar o pôr-do-sol com algumas piadas pelo meio.

Xenia Rubinos reuniu no Palco Vodafone FM uma assistência de apenas algumas dezenas, aos quais se vão juntando mais uns quantos à medida que as sonoridades vão convencendo a encosta. Ao som de uma flauta, Xenia surgiu coberta com um saco de plástico incolor, transparente, aliado ao seu vestido branco de princesa e uma luva vermelha. Em suma, uma potente voz que em castelhano se revela numa performance que, talvez por demasiado alternativa, pareceu não atrair tantos quanto se esperava a esta hora.

 

Ao final de tarde os La Femme tomaram o Palco Vodafone. Ao som de castanholas e trompete, arranhou-se o inglês com bastante sotaque francês. Entre histórias pessoais sobre Paredes de Coura e das vivências especiais do local, a banda mostrou-se bastante comunicativa e interactiva, assentando-lhe bem o cenário. O enquadramento musical também foi certeiro, com laivos de surf rock, sublinhando-se a rapidez com que a vida passa. Desejou-se que público viva a vida, aproveite cada momento, carpe diem. As primeiras filas brincaram com uma bola que foram atirando ao ar, de cá para lá, de lá para cá, e por diversas vezes vimos o vocalista descer ao público para dançar. No final já alguns elementos tinham perdido peças de roupa, dispensando os estilosos blazers e arriscando uma vertente mais rápida e vivida do rock.

Também já conhecido do público português, Mike Hadreas aka Perfume Genius passou pelo Palco Vodafone FM. «Nós adoramos-te», gritou-se ainda antes das luzes se apagarem para o início do concerto. O ânimo não foi contido e recebeu-se cinco músicos em palco, com Hadreas a revelar um look menos feminino do que nas últimas aparições em Portugal. Desta vez trouxe um estilo militarizado, mas com as mesmas movimentações corporais que lhe associamos. “Without You” e “On The Floor” foram dois dos vários temas entoados na apresentação de Set My Heart On Fire Immediately, aliando a sua incrível voz ao trato sensual sobre uma cadeira, mas foi sem dúvida a final “Queen” a mais esperada. O público viu a sua missão cumprida.

Já a porto-riquenha Princess Nokia subiu ao palco principal já a noite tinha tomado lugar, ao som de uma buzina com um mix dos anos 90. Ah os Vengaboys, a “Barbie Girl” dos Aqua… enfim, uma mega pista de dança montada em menos de nada. Apenas com um DJ em palco para a acompanhar, entrou em palco com uma mangueira na mão e com o depósito nas costas, regando a audiência ao som de “American Woman” na sua versão original. “Sugar Honey Iced Tea (S.H.I.T.)”, “Gemini” – que dedicou a uma fã que elevava um cartaz com o nome da faixa -, “Green Eggs & Ham”, “It’s Not My Fault” e “Tomboy” fizeram parte do alinhamento, que lhe viu perder a pouca roupa que trazia. «Estou muito agradecida por estar aqui e abrir para Pixies e pisar o mesmo palco que os La Femme», contou-nos, dizendo-se ser boa gente entre inglês e o ‘portunhol’ para se mostrar feminista e aliada do público queer.

 

Ainda antes de Pixies, o palco principal recebeu o britânico slowthai, que subiu a palco ao som de “Unchained Melody”. O rapper, por momentos, ainda entusiasmou mais do que as primeiras filas, fazendo levantar a malta lá atrás, eventuais curiosos, para ver o mosh a acontecer junto às grades. O entusiasmo geral não durou muito tempo, recorrendo demasiadas vezes a «fuck that», que viu o público mais dedicado a responder na mesma. «Se não gostam de mim, vão-se f*der», disse a dada altura Tyron Frampton, não se sabendo se haviam alvos propositados ou se era apenas para dar espectáculo. O que se sabe é que este tipo de situações afastam muito o clima que Paredes de Coura habituou ao longo das três décadas de existência. Restou aguardar pelas lendas que se seguiam.

Os Pixies tiveram casa cheia e perdiam-se a conta às cabeças pelo recinto fora. Todos os olhos estavam postos no palco principal para testemunhar “Gouge Away”, “Wave of Mutilation” ou “Debaser”, tríptico introdutório que fez referência a Doolittle, álbum que preencheu a grande parte da setlist. Foi possível fazer headbang e foi possível avistar um barco insuflável em crowdsurf, a navegar pelo mar de gente ladeira abaixo, entrando na nuvem de poeira da frente. “Here Comes Your Man” foi um dos poucos momentos em que os telemóveis foram temporariamente elevados, num desfile de faixas que passou também por “Monkey Gone To Heaven” ou pelos The Jesus and Mary Chain via “Head On”. Foi um concerto cheio de momentos para abraços e para se sentir a felicidade no ar, aquele tipo de circunstâncias que reconhecemos ao festival. “Where Is My Mind?” foi guardada para o final, mas o longo concerto do Pixies poderá ter sido mais marcante pela lotação do espaço do que pela qualidade oferecida. Quase que foi um excelente fecho de edição, mas não tão perfeito como noutras edições.

 

Seguiu-se o bate-pé com o DJ residente no Palco Vodafone FM, Nuno Lopes.

De acordo com a organização, na representação de João Carvalho, esta «foi das melhores edições de sempre». Referiu que o «entusiasmo é o mesmo de há 30 anos atrás», acabando «sem zangas, sem quezílias» e lembra que o público «aplaudiu os L’Impératrice como se fossem os Beatles». Feitas as contas, somaram-se 115 mil pessoas durante os 5 dias, entre 5 a 6 mil pessoas no Sobe à Vila, com pessoas que se deslocam a Paredes de Coura mais cedo o que mesmo sem ingresso contribuem para o comércio local. Este também foi o ano com maior número de campistas, com cerca de 16 mil pessoas que, com as melhorias no espaço, estiveram mais dispersas e menos concentradas ao rio Coura.  Do ponto de vista do turismo musical, a organização diz ter contribuído «para a forma como se escuta música em Portugal», apesar de «não haver muitos alojamentos nem muitos restaurantes», continuando a marcar tendências.

Deste lado podemos contar que o dia 20 de Agosto foi de facto o dia mais hipster. Mas um hipster guiado pela moda, pela tendência. Um sábado ditou que quem compareceu com bilhetes diários – provavelmente por aguardar o concerto de Pixies – quisesse mais marcar presença do que pela música em si. Não que a música não fosse agradável a essa fatia de público, mas os adornos incluíam perfume caro e maquilhagem de topo. Coura, como foi e como era antes do confinamento, pareceu de certa forma um mito longínquo. Algo se perdeu pelo caminho na pureza – ou então foi a idade a falar – mas o passado já não volta. Teremos sempre Coura, é certo; mas mesmo um velho amor pode carecer de paixão.

A próxima edição está prevista para os dias 16, 17, 18 e 19 de Agosto de 2023, voltando à fórmula dos quatro dias de festival.