OUT.FEST. O peso do industrial e a força tribal conquistaram o Barreiro

A 16ª edição do OUT.FEST – Festival Internacional de Música Exploratória do Barreiro decorreu nos passados dias 3, 4 e 5 de Outubro na cidade da Margem Sul. A proposta recorrente, se nos podermos arriscar à categorização de um festival, é a capacidade de quebrar rotinas e de derrubar barreiras da linguagem musical. No OUT.FEST a música é tanto experimental como experimentada e o seu público, como se tem habituado ao longo de já mais de uma década e meia, diverge por distintas fatias de seguidores.

3 de Outubro

A noite inaugural, destinada à Igreja Paroquial de Santo André, pareceu ter sido mais focada para um público que entende a desconstrução como forma de construção. Assim que a plateia reservou o seu assento naquela forma hexagonal circunscrita da Igreja, Gabriel Ferrandini e a Camerata Musical do Barreiro deram início a uma meditação inédita, resultante de uma residência conjunta nos dias que antecederam o festival. Ferrandini, um dos grandes nomes da galopante bateria e do jazz nacional, surgiu junto dos paneis que ilustram o altar, tal como o seu cúmplice protagonista, Miguel Abras, que utilizou o microfone para o seu salmo, o poema falado e intitulado “Kimbo Slice”. À Camerata Musical do Barreiro, colocada no centro da sala, coube o preenchimento das cordas, de agudos contra-penitentes e de toda a tensão aprazível que se deixou incomodar pelas intervenções mais vigorosas do fundo da sala.

Quem não se deixou impressionar pelas capacidades humanas na composição, deixou-se levar com maior leviandade pelo fôlego de Peter Evans. Um homem só, de trompete, ao centro da Igreja e sem qualquer cerimónia. A catadupa de notas e o sopro desenfreado desarmaram o público. Daí houve nuances que tanto surgiam do silêncio como despontavam no centro do frenesim, com investidas asfixiantes que ensoparam o instrumento. De certa forma testemunhámos Evans a incorporar um só ensemble em si mesmo, chegando até parecer ter ali um loop ou uma espécie de ambiência drone a pairar, fruto da reverberação da sala. Os aplausos, no fim, feitos de pé, falaram pela conjuntura da noite: que estupenda forma de abrir este OUT.FEST.

 

4 de Outubro

Num Barreiro calmo e com o pôr-do-sol à espreita ouve-se soar o órgão recém-restaurado da Igreja da Nossa Senhora do Rosário pelas mãos de Kali Malone, uma jovem exploradora do timbre meditativo e solene do instrumento milenar. Durante um espectáculo em que a intérprete não era visível devido ao posicionamento tradicional do órgão nas igrejas, apenas o ar que produzia as suas composições estava presente e crescia a expectativa de que as mesmas tomassem forma em mais que um sentido. Foi em frente aos humildes bancos da igreja que depois se materializou, sobre uma mesa de mistura foram moldados e manipulados os sons produzidos na primeira parte ao ponto de se tornarem irreconhecíveis. Agora bastante mais assoberbadoras, as geometrias sonoras ecoaram pelos recantos da Igreja que as acomodou como se de um recital religioso se tratasse.

Já durante a noite as luzes acenderam a ADAO, antigo edifício dos bombeiros recuperado para acomodar residências artísticas de todos os tipo e que constitui um espaço labiríntico e cujo assalto aos sentidos o torna num local óbvio para a passagem do OUT.FEST. A abrir este espaço esteve Calhau!, o duo português que já se tinha apresentado ao público do festival numa anterior edição e que se mostrou à vontade para despejar a sua criatividade e disposição para desconstruir noções de melodia, ritmo e harmonia apenas para poderem criar as suas próprias. As interferências rítmicas e dissonantes acordes no piano foram pontuadas por iluminação que as acompanhava e enaltecia o confronto entre a as diferentes componentes da performance deste grupo que nos abriu a mente e a deixou em vazio para que o impacto das actuações futuras fosse recebido desamparadamente.

 

Noutra sala deu início o projecto a solo de Leisha Tomas, Alpha Maid, que envolveu no passado algumas colaborações incluindo Mica Levi, Coby Sey e outros, e que se apresentou neste OUT.FEST apenas com a mesa de mistura para a vertente de electrónica industrial, a guitarra para acompanhar melodicamente os vocais encharcados de reverberação e a bateria para juntar tudo o resto numa abrasiva mas também etérea experiência.

A metade do duo visionário da música eletrónica dos anos 90, Pan Sonic, que se extinguiu há poucos anos, incitou Ilpo Väisänen a ressuscitar o seu projecto a solo que explora várias linguagens da electrónica. No contexto do falecimento do seu parceiro Mika Vainio, homenageia com field recordings conseguidas numa tour durante o virar do século que embelezam os ritmos exploratórios que Ilpo nos propôs durante um espectáculo que, com o passar do tempo, evoluiu para sonoridades progressivamente mais abrasivas.

Para muitos o momento mais aguardado da noite, a intensidade sonora dos brasileiros Deaf Kids não desapontou, desbloqueando a conformação das variedades mais abrasivas do metal e punk ao incorporar ritmos tribais que relembram as suas origens. A intensidade sonora em combinação com os psicadelismos sonoros e visuais não deixaram ninguém indiferente e despertaram o interesse nos menos familiares com o trabalho do trio, enquanto concretizaram as expectativas dos que aguardavam pacientemente a estreia no nosso país. De um Brasil politicamente e socialmente dividido surgiram nos palcos internacionais ao abrigo da relevância da editora Neurot, que os acolheu e com ela veio a merecida ribalta para o trio que pretende desmistificar e trazer ao mundo o Brasil que eles conhecem.

As notas finais da noite foram familiares, embora com significados diferentes: Yeah You porque resulta de uma colaboração entre pai e filha e numa combo sónica entre o glitch, o punk e o tecno mais abrasivo; e DJ Firmeza porque deu ao OUT.FEST a dimensão e a ligação ao continente africano, recuperando a proximidade geográfica do Barreiro com o som da intitulada Nova Lisboa pela chancela da Príncipe Discos.

 

5 de Outubro

Se o dia anterior foi um de intimidade e sedentarismo entre as quatro paredes da ADAO, esta dia prometia ser o oposto, uma azáfama de trânsito entre diferentes locais do Barreiro numa demanda de conseguir acompanhar o ritmo do festival.

No recentemente recuperado Moinho Pequeno o projecto de Rodolfo Brito de nome Luar Domatrix trouxe-nos a sua sonoridade urbana e sombria contrastante com o cenário fluvial em segundo plano que com as samples vocais repetidamente hipnóticas tentava levar para longe quem as ouvia, ainda que, para não chegar lá as interrompia com rasgos agudos integrados em batidas subtis mas insistentes.

À hora de aproximar da intelectualidade tanto no sentido musical quanto no sentido literal, viu-se na Biblioteca Municipal a harpista espanhola Angélica Salvi, residente no norte de Portugal, que trouxe as suas composições esparsas e com claras influências clássicas. As estruturas dentro de cada tema impressionavam pela sua destreza na manipulação emocional através da dualidade entre composição meticulosa e ponderada e aparentes improvisos que adicionavam um toque de imprevisibilidade em que a tonalidade aparente de um tema era facilmente subvertida e nos levava numa viagem para sítios novos.

Com o patrocínio da Red Bull foi engendrada esta colaboração inédita resultante de uma residência de uma semana incluindo três talentos nacionais – André Gonçalves, Clothilde e Simão Simões -, cada um com as suas particularidades que coube ao visionário compositor Keith Fullerton Whitman unificar numa única experiência. O resultado foi uma maravilha sensorial que nos atingia de todas as direcções com uma paisagem cuidadosamente construída sempre com prioridade em manter os pés na terra, sem que nenhum dos artistas se destacasse em particular de forma a que não existisse individualidade, uma única visão que resulta suavemente da contribuição de todos os envolvidos.

Uma aura negativa formava-se à porta do Teatro Municipal e antecipava-se a actuação do duo português versado na criação do ruído ensurdecedor associado aos géneros do noise e do black metal. Com as suas raras actuações, o duo Candura conseguiu um estatuto quase mítico na sua (ainda) curta existência. Por mais expectativas que fossem criadas com base no seu trabalho em estúdio, o seu longa-duração /|, dificilmente seria possível adivinhar o que aí viria. Um arco de violino contra um prato de bateria criava a sensação ominosa necessária para contextualizar o frenesim que se acumulava sem se manifestar, sempre aguardando a sua libertação. A libertação das acumuladas sensações negativas foi feito através de um nojento frenesim especialmente volumoso que trouxe consigo um sentimento visceral incentivando uns a sair da sala mas prendendo outros à cadeira, hipnotizados pela interpretação efusiva dos músicos portugueses.

O final da tarde dissipava-se no Largo do Mercado 1º de Maio, com Davy Kehoe em formato trio a desafiar a electrónica menos óbvia com o post-punk e uma sensibilidade jazz futurista. Agarrou quem pôde, mas só seguraria quem por ali acabaria por ficar, uns metros na rua abaixo, à espera que as portas da sala da noite abrissem ao público do OUT.FEST.

 

Chegando agora aos grandes nomes do festival, subia ao palco da colectividade SIRB Os Penicheiros James Ferraro, pioneiro na electrónica do virar da década que agora termina, sendo ele atribuído muitas vezes à criação do vaporwave ou alguma da sua estética. Mantendo-se relativamente afastado das sonoridades que ele próprio inspirou, Ferraro investiu para o seu set em paisagens digitais com tendências meditativas. A aceleração e a ferocidade dos beats, parte que terá desafiado o fumo que o rodeou durante todo o concerto, deram-se apenas perto do final, mas pareceu já um pouco tarde demais para convencer em pleno.

Nadah El Shazly é, de acordo com o que nos chega ao mundo ocidental, uma pérola do deserto do underground egípcio. Em cima do palco estiveram os temas de Ahwar, que tanto se equilibram no free jazz como na consistência rítmica pendular. Melodias orelhudas e uma voz que carrega consigo o lamento árido e o fado da Primavera Árabe, Nadah seduziu, conquistou e dirigiu-se até ao público sem amplificação, no fecho do concerto, para se aproximar de quem a soube escutar.

Os Dälek há muito que não visitavam Portugal e fecharam a sua digressão no local perfeito. Na linguagem própria do hiphop, esta dupla de Brooklyn já decidira ser industrial antes de conhecerem o Barreiro. Se durante o dia a dupla composta por MC Dälek e Mike Mare andou pelas ruas da cidade (onde até encontraram um familiar retrato de Erykah Badu), foi na subida a palco que se compreendeu o peso da indústria e do cheiro a químicos que por vezes ainda paira por aqui. Do hiphop cru e ao mesmo tempo embebido por frequências do noise, os Dälek são voz e corpo daquilo que deve ser um efeito anti-Fordismo no seu próprio casulo. Não há estandardizações nem generalizações possíveis: os Dälek são verdadeiros exploradores da agressividade da palavra e da ferocidade da batida.

A fechar a noite n’Os Penicheiros esteve a festa electrónica de Still, projecto recente de Simone Trabucchi, com dois convidados que se encarregaram de dar voz à quase-aleatória transmutação entre o dancehall jamaicano, o kwaito sul-africano ou o viciante grime britânico. Já pelas altas horas, no Edifício A4 num local mais próximo da ruína industrial barreirense, houve espaço para DJ sets de Mo Probs, Bonaventure e Viegas.

Texto: Ricardo Silva e Nuno Bernardo
Fotografia: Nuno Bernardo