O OUT.FEST – Festival Internacional de Música Exploratória do Barreiro está de parabéns! Além de celebrar a sua 15ª edição continua a reinventar-se ano após ano, no entanto sem mudar o seu perfume, continuando assim a espalhar a essência que tem imposto e reafirmado ao longo do tempo e onde o melhor da música não convencional já foi explorada em mais de 30 espaços diferentes. Este ano ficou marcado pela reorganização dos espetáculos, que ocuparam apenas dois dias do calendário, e com o aumento de concertos gratuitos, proporcionando assim uma maior aproximação do público e também visibilidade ao festival que, apesar dos seus quinze anos, ainda continua desconhecido da maioria.
Sempre com um cartaz em que a palavra de ordem é a descoberta, o caminho começa logo pela exploração de novos habitats para as actuações. Dito isto, seguimos os carris que nos levam à recém-reestruturada zona da Baía do Tejo, onde os mais curiosos se reuniram no Edifício A4, para neste feriado de 5 de Outubro ouvir dois dos artistas do panorama musical no leste Europeu.
Anton Nikkilä, músico e compositor finlandês, fez as honras e apresentou-nos Literal Translations, que como se podia ler no panfleto, é um “filme-sem-filme”, onde somos levados por uma narrativa de memórias soviéticas, onde os ruídos distorcidos e imprevisíveis se iam mesclando com as projeções nuas de imagem mas vestidas de poesia, onde cada um era o realizador do seu próprio filme mental. Vladimir Tarasov por outro lado, não precisa de projeções para fazer a nossa mente mergulhar nas suas construções. O seu trabalho é fortemente caracterizado pela criação de sons a partir dos mais variados instrumentos, e às vezes alguns não-instrumentos. Dono de uma simples e cativante energia, prende-nos com as suas brincadeiras e conversações com os instrumentos e objetos do quotidiano, que funde numa brilhante peça que denomina “Thinking of Khlebnikov”, diálogo imaginado com o poeta vanguardista russo.
Depois de uma pausa para jantar, o after faz-se na já recorrente ADAO, cujo espaço é sempre estimulante de explorar, e onde a mística do ambiente é sempre responsável por criar cenários que nos deixam completamente envolvidos na cena. Foi o caso de João Pais Filipe, onde a plateia se sentou junto ao palco para ouvir o baterista/percussionista, nesta que foi a apresentação do seu primeiro álbum a solo, onde a improvisação toma lugar em ressonâncias mecânicas e repetitivas, onde o gongo se junta a uma bateria frenética e implacável, num intenso e abrangente espectro experimental que transpira adrenalina.
Ao contrário do que vimos em edições anteriores, os espetáculos resumiram-se apenas a duas das salas da ADAO, sem sobreposições, o que nos permitia total absorção do momento. Joana da Conceição, a outra metade do duo Tropa Macaca que actuou em edições anteriores, desta vez juntou consigo quatro artistas de diferentes áreas artísticas para juntas criarem uma performance que desafia o espectador e o incorpora no próprio espetáculo, sob o nome de Toda Matéria. Somos assim absorvidos pela melancolia do teclado, mesclada a batidas frenéticas e mutáveis dos sintetizadores, num diálogo intimista que aglutinava o público à acção, enquanto uma das artistas ia percorrendo os ecos vazios em busca da sua própria mutação.
E como o OUT.FEST não abraça apenas projetos contemporâneos, os antigos também têm o seu lugar. São 35 anos depois que Belzebu, o segundo álbum da carreira de Telectu, sai novamente à rua numa reedição com selo da recente Holuzam, que tem como objetivo dar a conhecer um dos álbuns que mais marcou a história da improvisação nacional dos anos 80. Num hipnotizante paralelismo entre os de riffs da guitarra e um imprevisível jogo de efeitos e melodias perfumadas, fomos completamente sugados numa improvisação monstruosa, de seu nome Vítor Rua e António Duarte.
O seguinte duo japonês atraiu as atenções bem para junto de si. Group A fez-nos sucumbir a um lado mais perfurante e sombrio, onde a metamorfose que foi-se sucedendo crescia ao ritmo do violino, das respirações, dos violentos espasmos sonoros que iam perpetuando no espaço. Uma performance densa e catártica, que nos confrontava a desafiar os próprios limites.
A fechar a primeira noite recebemos o furacão Nídia. A festa começou meio de mansinho, mas depois não havia maneira de puxar o freio. Nídia é Má, Nídia é Fudida, além de ser o nome do álbum de estreia deste ciclone que nasceu aqui, na margem sul, foram também as palavras que a mesma fez o público entoar vezes sem conta. O seu set trouxe algumas surpresas a palco, a começar por G Fema, que marcou a entrada dos primeiros beats de kuduro e abriu as portas à pista de dança. Mynda Guevara entrou de seguida e trouxe-nos um hip-hop/rap em crioulo onde a artista ousa em reivindicar o valor e poder das mulheres. E como não há duas sem três, um duo de percussionistas brasileiros trouxe por fim as batidas funkeiras e os batuques quentes das terras vizinhas que faltavam para intensificar o ambiente.
O segundo dia obrigava-nos a decisões difíceis à conta da sobreposição de horários, mas escolhas tinham de ser feitas. Com alguns dos palcos a poucos metros de distância, ainda pudemos saltitar entre espaços, começando a tarde pelo Futebol Clube Barreirense, espaço que se estreia nesta edição, e pudemos ver um pouco de Opus Pistorum. Depois de subirmos a enorme escadaria, encontramos numa sala semi-vazia e demasiado iluminada, um duo de máscaras de wrestling a esgalhar beats capazes de atingir os corpos com um frenesim rítmico de alta voltagem, não fosse a timidez causada pelos raios de sol que passavam pelas janelas.
Depois seguimos para a escola de jazz do Barreiro para encontrar uma Clothilde embrenhada nas suas “caixinhas” mágicas. Foi um momento puro e relaxante, onde as harmonias rítmicas e estruturais nos contavam histórias de complexidade mecânica. Uma breve pausa para respirar e a festa continuava logo em baixo, no Lado B, com Kaja Draksler e as suas batidas provocantes no piano, onde vimos o instrumento ser explorado por diversos ângulos. Parecia quase uma dissecação estética, musical, onde nos mostrou que os sons do piano que vão muito para além das teclas. Voltámos a subir novamente as escadas para nos enamorarmos pelo saxofone de Lea Bertucci, e a maneira graciosa como nos hipnotiza entre loops electrónicos.
Antes do jantar passámos pelo Largo do Mercado 1º de Maio para ouvir os portuenses HHY & The Macumbas, já repetentes no Barreiro, mas desta vez numa versão menos ritualista à qual nos tinham habituado. Os sons ritmados e cíclicos iam escalando lentamente até produzirem padrões de repetição e colisão que nos obrigavam a mexer à mesma cadência, enquanto a figura central de máscara ia marcando a batida.
Já nos Penicheiros, o cancelamento de última hora de FRET, projecto de Mick Harris, tornou possível uma brilhante performance improvisada de Mohammad Reza Mortazavi, que antes de tocar com Burnt Friedman, mostrou a sua mestria com o tombak, instrumento tradicional do Irão. Um solo intimista de complexidade rítmica singular que sem dúvida valeu a pena. Uma breve pausa e o músico juntou-se então a Friedman para darem cara aos YEK. O tombak de Mortazavi marca o compasso e o sintetizador serpenteante funde-se incrivelmente bem numa dinâmica acelerada, mas melancólica, capaz de criar paisagens, não fosse o espaço demasiado grande para receber tal poesia.
O recinto, apesar de grande, rapidamente se tornou abafado. O público multiplicou-se a olhos vistos para receber Lotic, que o soube agarrar de imediato com a sua música industrial agressiva, num psicadelismo polirrítmico que nos dava a volta à cabeça. Entre os diálogos com os fãs, criava as suas próprias ambiências sonoras, ora ruidosas, ora harmoniosas, numa viagem por terras da sua electrónica experimental.
Depois de uma explosão de ritmos brasileiros, o tão esperado ciclone tomou de assalto o palco, apresentando-se sem qualquer pudor, não fosse esse o seu carimbo. Linn da Quebrada arrastou consigo uma multidão exacerbada que a acompanhou do início ao fim, por entre temas onde a provocação é o ingrediente principal, e a mensagem é clara como a água. A sexualidade, aqui sim, foi abordada desde o primeiro segundo em que Linn apareceu em palco, aproveitando a recente polémica política brasileira, são estas as alturas em que vale a pena relembrar os valores por que se têm lutado e não deixar nunca que a liberdade nos seja retirada.
A festa continuou ainda no Edifício A4 da Baía do Tejo, com John T Gast e DJ Lycox a fazer a despedida de mais uma singular edição do OUT.FEST, mas não seria precisa a deslocação para as horas finais para tirar as conclusões desta edição. O OUT.FEST não só explora a música e a performance, como explora também o seu próprio formato. Consegue manter a sua identidade ao mesmo tempo que se aproxima do público e este ano perdeu até algum secretismo para dizer à cidade que esta celebração da descoberta é um desafio há quinze anos.
Texto: Rute Pascoal
Fotografia: Nuno Bernardo