Bom filho à casa tornará, mas antes terá que se aventurar pelo mundo. Forçado ao exílio das muralhas, por força das circunstâncias, a nona edição do festival gótico leiriense desceu à cidade, temporariamente renomeando-se Extramuralhas. Na adversidade, um vislumbre de oportunidade para aproximar as gentes da cidade ao evento que, anualmente, a mima com atuações ímpares. Pela primeira vez aos olhos de todos, um festival exposto, aberto, mudando radicalmente a sua logística, mas mantendo-se fiel à sua essência sonora e visual. O que se segue são os fiéis testemunhos deste que vos escreve, para registo futuro de momentos únicos que a história da cultura não pode, não deve olvidar.
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Heilung
possessos pelo passado, visceralmente hipnóticos
Remember, that we all are brothers
All people, beasts, trees and stone and wind
We all descend from the one great being
That was always there
Before people lived and named it
Before the first seed sprouted
O primeiro concerto do primeiro Extramuralhas submeteu-nos ao visceral jugo das sonoridades dos Primeiros Homens. A sala de teatro cheia e expectante foi invadida por um odor intenso a incenso, que emanava do palco onde seis figuras primordiais se juntavam em círculo, clamando aos céus ancestrais os versos acima citados. Finda a cerimónia de abertura, era tempo de In Maijan arrancar com o ritual sonoro, uma aventura de uma dúzia de minutos com momentos deliciosos, como a explosão de luz que antecedeu gritos animalescos, cuja rispidez foi atenuada por uma angélica voz do sexo fecundo.
E eis os lobos, uivando no seu canto canino, anunciando a chegada de quatro soldados de imponente porte e exprimindo cânticos bélicos ritmados. Sete minutos de Alfafhirhaiti num crescendo vocal foram a gota de água para os primeiros de muitos elementos da plateia ascenderem das suas cadeiras e sucumbirem ao hipnótico ritual, dançando em apoteose. Os ânimos serenaram com Carpathian Forest, quatro minutos de sons sussurrantes de índole tenebrosa.
Ecoam as vibrações do chifre no ar incensado, deixa de entrada do soldado, que maneja o seu instrumento de guerra com um panorama sonoro de fundo pautado por sons metálicos e cíclicos, qual industrial das cavernas. E depois da hipnose de Krigsgaldr, o prenúncio de guerra com o regresso dos guerreiros em Hakkerskaldyr, precedendo o mantra soturno que abriu a longa Fylgija Futhrock. Num ritmo constante e cativante, a voz feminina brilhou como nunca, completada por uma teatralidade exímia em palco.
Ouvem-se chocalhos metálicos, enquanto um rufar intenso de um tambor evoca a génese da luz. Numa sucessão de camadas sonoras improváveis e frequentes explosões luminosas, o ato final aproximava-se e adivinhava-se apoteótico. Depois de uns momentos em que a escuridão abraçou o mundo, uma explosão de tons azulados precedeu cânticos ritmados impetuosos, evocando na plateia um transe indígena que nos é familiar, que como uma onda se foi erguendo. Os últimos dez minutos do ritual foram em comunhão com as almas presentes e em sintonia com a natureza que teima em toldar-nos as raízes. Naquele momento, fez-se história, enquanto todos viajámos no passado até às nossas origens, como um só ser. Na memória fica uma experiência única que perdurará no tempo.
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S.A.D. (Sudden Axis Disorder)
negros tons, dançantes dons
Coldwave, darkwave, new wave. Seja qual for a onda com que queiram rotular os Sudden Axis Disorder, boa onda é a melhor maneira de descrever o quarteto londrino que abriu a Stereogun nesta edição estreante do Extramuralhas. Tocando para uma sala repleta de portadores de negras vestes, o conjunto trouxe consigo o post-punk tipicamente britânico, reforçando música após música a intensidade e excentricidade da atuação. Acabando com menos roupa do que começaram, 44 minutos após o tiro de partida, ficou no ar aquele bom sentimento de niilismo caótico, perpetuado por figuras extravagantes e dotadas de engenho para praticar boa música.
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Christian Wolz
explorando a fronteira da máquina vocal antrópica
Dois minutos após as dezoito horas, o germânico Christian Wolz abriu oficialmente o segundo dia do Extramuralhas 2018, com uma prestação tão surpreendente quanto peculiar. Contendo a respiração, rosnando, sibilando, gritando, chorando, ofegando, dialogando, contrastando graves demoníacos com agudos angélicos, o artista provou que o aparelho vocal humano tem limites muito para além do que o comum mortal julga. Talvez pecando na coerência musical dos diferentes atos, valeu pela demonstração sobre-humana e pelo testemunho de pormenores técnicos tão soberbos como canto polifónico ou o efeito de voz robótica natural.
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Ulver
a luz que nos acaricia a retina, o som que nos afaga os tímpanos
A festival of torches
Joins the light of the moon
Shining in the lake
Sleeping with the stars
Findo o dia cálido, os corpos ansiavam pelo conforto de um abraço de frescura. Da escandinava Noruega, uma suave brisa gélida, apelidada de Nemoralia, fez-se sentir dezoito minutos após a hora marcada. Por oposição, a inconfundível, quente, sedutora voz de Kristoffer Rygg ecoou no teatro, mantendo o equilíbrio dos elementos. Southern Gothic manteve a toada; por seu turno, 1969 indicou uma direção mais melancólica e atmosférica, reforçada na sonhadora So Falls The World.
Esta última composição teve uma metamorfose sonora abismal, com um final eletrónico de ritmo intenso e enobrecido pelas projeções visuais. Mais do que uma viagem sonora inigualável, o concerto de Ulver foi um deleite ao olhar; quão elaborado, quão inesperado, quão bem interligadas estavam as mensagens subliminares. Todas as cores recriadas pelos lasers mergulharam a sala numa visão surreal, qual aurora boreal sonora de proporções épicas, com ocasionais explosões luminescentes como no final de Rolling Stone.
Se Transverberation transimitiu vibrações positivas, Angelus Novus foi o momento mais aveludado de todo o concerto, no seu tom baladeiro tão reconfortante, com ajuda de uma prestação vocal exímia. A reta final viu sonoridades mais experimentais e camadas sonoras sofisticadas, com Bring Out Your Dead mas sobretudo Coming Home. A projeção do poliedro com número crescente de faces foi um bom reflexo do crescendo de complexidade.
O aceno de despedida foi dado num encore com uma versão angelical e a soar a créditos finais de The Power Of Love. Se na noite anterior o Teatro José Lúcio da Silva foi palco da mais crua e suja manifestação do que nos é ancestral, este segundo espetáculo foi o oposto: uma viagem futurista e pura, qual expurga de demónios para nos deixar a alma limpa e aconchegada.
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Captains
o rebelde erotismo trilingue
Cinco minutos após a hora que assinala um novo dia, a noite de Leiria pintou-se de negro para o primeiro concerto gratuito no Jardim Luís de Camões. Três meses após a estreia a solo de Fee Reega em terras lusas, na Stereogun, a expressiva artista alemã sediada em Espanha regressou ao nosso país com os seus Captains para cinquenta minutos de um post-punk misterioso e sedutor, com letras provocantes e vocalizações delirantes. Touch Me, I’m Driving é um bom exemplo da vertente erótica da banda, terceiro tema do alinhamento.
Curta, mas cativante, a sobriedade de Heavy Metal Works foi um dos pontos altos da atuação, num par de minutos que marcou o ponto intermédio do concerto. Alternando entre ritmos dançáveis e momentos de negra contemplação, a banda foi bem recebida pela plateia citadina e terminou numa mescla de línguas: depois do inglês até então totalitário, as duas faixas de despedida cantaram-se em espanhol (Gracias Por Dejarme, um tema de índole rodoviária bem sugestiva) e alemão (Schwarzes Wasser), juntando os dois mundos linguísticos da vocalista no aceno de despedida.
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Priest
ritmos anónimos que despertam corpos meneantes
O segundo ato no jardim tinha assinatura anónima, mas com provável associação a outro nome igualmente marcado pelo anonimato (parcial), a banda de heavy metal Ghost. Num registo bem diferente, os Priest conquistaram Leiria com o seu synthpop irremediavelmente epidémico, tão dançável quão arguto. The Pit soou quando o dia contava com apenas 26 minutos, com a sua batida contida, mas penetrante. Populist acelerou o ritmo e elevou a contagem dos corpos dançantes, enquanto que History In Black nos abraçou em melancolia.
Private Eye e Call My Name voltaram a elevar a entropia, para de novo os ânimos serem refreados com a sonhadora e doce Reloader. Mas a verdadeira essência do espetáculo estava guardada para os últimos suspiros; as explosivas The Cross, Vaudeville e Neuromancer contrariaram a tendência ao imóvel do mais inerte dos corpos. Um final brilhante em puro êxtase, com direito a uma suave despedida com a versão de Street Spirit, original dos Radiohead.
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Bragolin
ritmos inquietos para mentes despertas
Coube aos holandeses Bragolin a sempre honrosa tarefa de fechar a noite. Apesar de terem apenas um registo discográfico na bagagem (motivo pelo qual o concerto apenas soou durante 35 minutos), o pouco que apresentaram foi compensado por dotes louváveis de composição. No curto momento em que a dupla eternizou a sua estreia em Portugal, o auditório transformou as vibrações sonoras em movimentos corpóreos, rendidos a um sublime post-punk pincelado com teias de darkwave. Tal foi a paixão evidenciada por quem assistia, que a banda foi obrigada a voltar a palco para um encore; apesar de não ter mais nenhum tema no seu recém-nascido repertório, repetiram Into Those Woods. Poderiam ter repetido tudo de novo, que aposto que nem um singelo ouvido iria ousar sentir aborrecimento!
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Rïcïnn
ecos divinos de intemporal primor
Depois de nos deixar boquiabertos na companhia de Igorrr; após partilhar connosco a emotiva mestria dos Corpo-Mente; na sua terceira visita à Cidade do Lis, Laure Le Prunenec apresentou-se com o seu projeto a solo, Rïcïnn, para partilhar connosco as suas sonoridades mais íntimas e angelicais. O Museu de Leiria foi mergulhado durante 44 minutos num mar de melodias que só podem ser descritas como carícias de perfeição em ouvidos deleitosamente inebriados. A voz da artista normandesa ecoou nas paredes com tanta força e carinho que até o invólucro empedernido estremeceu e demulciu. Inqualificavelmente arrebatador, um dos pontos altos da 9ª edição do festival.
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Current 93
a genial teatralidade das sonoridades ecléticas
And the rain-ways licking the glass
Made us the observers of the distant distance
We there watched the sky’s goddy tears
Only once did Good God cry black
Passam catorze minutos das 21 horas e o murmúrio é quebrado pelo prefácio de um livro de histórias sob a forma de música. Anos acumulados de experiência conferem aos Current 93 um estatuto ao alcance de poucos, mas é em palco que provam a sua mestria. Um piano omnipresente que vagueia entre perfeitas harmonias e dissonantes bizarrias; uma percussão provocante, tensa, intensa, densa; guitarras discretas mas diretas; e a voz, aquela cavernosa e lucífera voz que tudo esmaga, tudo consome, igualmente forte nos sussurros e nos gritos.
Os pássaros cantam docemente, o polícia está morto, todos somos pó. Histórias, contos, morais e imorais, uma miríade de temáticas exploradas com uma banda sonora tão envolvente que deixamos de dar pelo tempo passar. Os olhos do público cintilam com as estrelas em palco, sofregamente absorvendo cada nota, cada sílaba, cada som. MURDER! E eis que o turbilhão explode, a tempestade depois e antes da calma, um sem-fim de emoções indescritíveis que nos fazem questionar a realidade. O último ritual no teatro foi talvez o menos espetacular, mas certamente o mais rico sonoramente.
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Shortparis
extravagante amálgama russa
23 minutos após as 23 horas, perante uma surpreendente multidão que esgotava os espaços no Jardim Luís de Camões, os russos Shortparis deram o mote para aquele que seria o concerto mais exótico e bizarro (que me perdoe a locomotiva!) do festival. Durante cerca de uma hora, uma eletrónica experimental foi servida com uma dose industrial de experimentalismo, acompanhada ainda por uma voz surpreendentemente aguda e com danças espasmódicas aleatórias como digestivo final.
Apesar de todo o caos e do quão desconexos os sons poderiam parecer, o bolo construído foi coeso no seu todo, revelando músicos afoitos na arte e cientes de como tornar o caótico em apoteótico. Decerto terão levantado tantas sobrancelhas como os ouvidos a que agradaram, mas é essa a natureza da música contracorrente: imprevisível, controversa, obrigatória.
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Horskh
exercícios exímios em extrema eletrónica
O último concerto gratuito da nona edição da celebração gótica leiriense teve início à uma da manhã, hora perfeita para abanar os alicerces da cidade com uma eletrónica agressiva, com raiva no seu âmago. Mais do que simples concerto, a atuação de Horskh foi uma injeção de pura adrenalina, com um frontman tão diabolicamente irrequieto como as batidas à qual dava voz.
Engaged & Confused não só foi o tema mestre do alinhamento; foi também a descrição perfeita do público presente. No grupo mais próximo do palco, completamente imersos na sonoridade, impulsionados pela interação exemplar de Bastien. Mais atrás, nos curiosos que passavam, algumas caras confusas perante o monstro sonoro que testemunhavam, visivelmente apanhados de surpresa. 54 minutos sem pausa para respirar fecharam o jardim em primor.
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Bizarra Locomotiva
a paragem final da locomotiva das negras sonoridades
O calor humano. O suor dos corpos. O negro da noite. A Bizarra Locomotiva. A última paragem do Extramuralhas 2018 prometia descarrilar a energia que restava nos resistentes corpos dos festivaleiros. As bizarras sonoridades industriais martelaram os tímpanos durante 75 minutos, num exorcismo ardejante na língua de Camões. Rui Sidónio é uma máquina a vapor de inesgotável energia, um animal selvagem solto que vagueia pela sala que é dele e que se torna nossa. Naquele que é sem dúvida um dos atos mais únicos e merecedores de admiração do país, houve ainda tempo para um visita do aniversariante Fernando Ribeiro em O Anjo Exilado, culminando a noite com este encavalitado em Rui Sidónio, dois dos nomes que mais deram à música extrema nacional.
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Não poderia ter corrido melhor a primeira edição fora de muralhas do festival mais eclético do país. Duas manifestações singulares no museu, quatro actos competentes no jardim, três obras-primas no teatro e dois rituais bem distintos na melhor sala de espetáculos da região somaram pontos para uma organização que se reinventa e encontra nas adversidades maneiras de se regenerar e expandir a marca Entremuralhas / Extramuralhas ao mundo. Apesar de se perder a magia do castelo, ganha-se na comunhão citadina com a comunidade envolvente, algo que faz muito bem ao festival e ajuda a quebrar infaustos estigmas e injustas apreciações. Em 2019, a experiência repete-se!
Texto: David Matos
Fotografia: Marina Silva
Agradecimentos: Fade In