Se há coisa que o final de um ano oferece é uma agenda repleta de concertos e nessa matéria o Vodafone Mexefest replica uma biosfera muito própria. Seja para subir ou para descer, o que é certo é que a Avenida da Liberdade, no coração de Lisboa, é rota para romarias de palco em palco no final de Novembro. Desta vez calhou nos dias 24 e 25, um Natal antecipado um mês no que toca a concertos das novas tendências.
24 de Novembro
Logo ao final da tarde de sexta-feira e ainda sem a ameaça da chuva, o palco montado no exterior do renovado Cineteatro Capitólio deu o mote para uma maratona imparável. À velocidade certa, porque os barcelenses Killimanjaro colocaram a alta rotação no motor com os temas sacados à estreia Hook (2014) e ao mais recente “mini-álbum”, Shroud (2016). E como se não bastasse, rendemo-nos àquela versão monstruosa de “Ace Of Spades”. Se o trio não se deu muito às palavras (e ainda bem), já IAMDDB no interior do Capitólio deu trabalho à língua. Terá sido um dos concertos mais aclamados desta edição e mostrou-se visivelmente satisfeita e encantada por ter conseguido, finalmente, actuar em Lisboa. A cantora de Manchester tem origens portuguesas e angolanas e não dispensou o bom português na hora de se dirigir ao público com os seus temas de “urban jazz”, onde a batida namora arranjos mais cuidados.
Quis o destino que o primeiro concerto esgotado em que entrámos fosse o de Tomara, no Palácio Foz. Quem ficou à porta não pôde olhar à beleza do espaço nem dedicar os ouvidos do projecto de Filipe C. Monteiro. Um toque entre a folk e a música ambiente, crescendos cheios de harmonia e ainda convidados de luxo (Samuel Úria e Márcia) fizeram deste concerto uma das agradáveis surpresas do festival.
Não tardou muito para preencher o Coliseu dos Recreios, sala maior do festival, para o seu primeiro concerto desta edição. Ficou este a cargo de Washed Out, synthpop electrónica de Ernest Greene. Não é tão novidade em comparação com outros nomes percorridos no cartaz, mas o Coliseu foi palco perfeito para os efeitos visuais, desenhos e cores explorados em Mister Mellow, disco que convida mais à dança que os seus antecessores. Bateria, teclas, cordas compuseram um trio que se fez falar pela explosão musical electrónica dos trópicos num diálogo recíproco – era de hora de jantar para uns quando o Coliseu já dançava sem preceitos.
À hora das grandes decisões horárias, os convites foram bastante convidativos para várias salas: Oddisee no Capitólio, Surma no Cinema São Jorge e Liniker e os Caramelows na Estação do Rossio não facilitaram a escolha. Este último concerto permitiu encontrar uma representação da comunidade LGBT vocalizada pela brasileira e a sua banda. Atrevimento, coragem e talento, foi sobretudo um showzão de brilhantina de oito músicos em palco que só pecou pela dispersão musical provocada pela localização do palco. Na ponta oposta dos Restauradores, os Songhoy Blues esquentaram de que maneira a Casa do Alentejo. Rock frenético e blues do deserto, foi praticamente impossível não perder umas valentes calorias às mãos de Résistance, o mais recente álbum dos malianos, num dos concertos mais inquietantes do festival. Tanto que Destroyer, uns metros ao lado no Coliseu, testemunhou o seu concerto iniciar a meio-gás. Dan Bejar não deixou, no entanto, de terminar os seus temas de joelhos ao chão.
O público estava convidado a fazer-se mexer, fosse pelas boleias das activações de marca, pelos autocarros com música ao vivo (neste dia com os El Señor a dar o seu rock) ou pelas bolas-de-Berlim e hotchocs oferecidos pela Avenida. Numa edição esgotada seria de prever a lotação de várias salas – assim o foi no Capitólio para receber Valete, numa das representações do hiphop nacional, que estendeu o seu repertório à Língua Franca. A mesma dificuldade se encontrou para Hinds, que lotaram o espaço superior da Estação do Rossio com um público mais jovem. As madrilenas não se fizeram rogadas e mostraram-nos músicas do seu novo álbum, a editar no próximo ano, em sucessivos «obrigada, obrigadas» lançados à plateia, mesmo com a voz baixa durante o concerto. «A mãe da Carlota comprou uma casa em Peniche e todos os Verões vamos lá surfar», confessaram-nos para “David Crocket” e não deixámos de as imaginar de prancha debaixo do braço, pouco antes de baixarem a rotação para uma “Ready For Your Love” em primeira mão e ainda “I’m Stayin’”, mais introspectivas.
A recta final para outros pôde ser feita através de batidas distintas. Os Ermo pegaram em Lo-Fi Moda e mostraram-no a uma Garagem EPAL a um terço da sua capacidade, mas a verdade é que perante um dos discos nacionais do ano não se tremeu à dimensão dos strobes e dos glitches impulsionados pela dupla bracarense. Em palco a experiência é expandida, mas um ambiente mais fechado e tumultuoso teria feito a diferença. Já os Orelha Negra, no Coliseu, fecharam com chave de ouro o primeiro dia do festival. Efeitos visuais arrojados, como a marca da banda atrás do pano a desenhar a sua silhueta que nos remete para um cenário do Star Wars. A sonorização foi igualmente espacial, transportadora para outras realidades, a dar o tónico da novidade que se adivinhava para o dia seguinte.
25 de Novembro
O final de tarde de sábado não foi tão generoso em termos meteorológicos e obrigou à deslocação do concerto de Conjunto Corona para o interior do Capitólio, ao contrário da romaria exterior protagonizada 24 horas antes por Killimanjaro. E se de água se falou “lá fora”, foi hidromel que pingou lá dentro – o colectivo de hiphop lo-fi de Gaia, liderado por dB e Logos, não dispensou o seu leque de convidados habituais, incluindo o já icónico Homem do Robe. Auto-descritivo, entre copos distribuídos e blunts feitas com «filtros em S dos Andantes», o Homem do Robe foi apenas o rosto da folia que nos habituou rapidamente a gritar «Gondomar! Gondomar!» em jeito de campanha política. Aplausos feitos ao Major correspondente e a malhões como “Chino no Olho”, “Mafiando Bairro Adentro” ou “Pontapé nas Costas”, o Conjunto Corona só provou aquilo que tem sido nos últimos anos: uma força maior e singular na música nova portuguesa. O mesmo se pode afirmar de Luís Severo ao preencher a plateia do Teatro Tivoli BBVA pouco depois, que sozinho ao piano provocou emoções mais profundas através das canções do seu mais recente álbum, homónimo. A consagração da música nova portuguesa estendeu-se ainda à Garagem EPAL, na denominada Sala Super Bock Super Rock, onde Iguana Garcia delineou o seu Cabaret Aleatório colorido, psicadélico e tropical entre batidas quentes e cadências viciantes de guitarra.
Se de cor e de moods distintos falámos dos concertos anteriores, o tom geral para Cigarettes After Sex no Coliseu foi muito mais uniforme. A monocromia tomou conta do plano de fundo e os sons reverberantes gelaram uma sala lotada para testemunhar aquele que foi o primeiro concerto da banda de Greg Gonzalez em Lisboa. As faixas do único álbum dos norte-americanos foram constantemente bem recebidas e o mínimo silêncio foi preservado para abraçar a melancolia e a neve imaginada por termos entrado, oficialmente, em época natalícia. Foi esse o caso para as iniciais “Sunsetz”, “John Wayne” ou “K.”, mas também para outros temas sacados aos EPs anteriores, como “I’m A Firefighter”, “Affection” e, claro, “Nothing’s Gonna Hurt You Baby”. Mais condizente seria difícil e o resultado foi um dos momentos mais altos do festival.
Falamos igualmente de pontos altos do festival quando vemos Julia Holter sentar-se ao piano para um esgotado Teatro Tivoli BBVA, um pouco mais acima na rota do festival. Com o suporte de mais ambiências extra por Tashi Wada em vez de acompanhada pela sua habitual banda, Holter despiu e desconstruiu alguns temas de uma carreira distinguida. Se em estúdio os temas de Have You In My Wilderness são experimentação pop e jazz em uníssono, neste concerto em particular vimo-la transformá-las em peças de catarse ascendente. As melodias prenderam-se à dança dos seus dedos e a voz potenciou de uma mais crua a sensação de que nos deu uma actuação privada, com selo de exclusividade. Só quem lá esteve pôde testemunhar como “Horns Surrounding Me” se tornou um assunto sério de hipnose, mesmo que, no silêncio entre faixas, Julia se mostrou pronta a receber sorrisos.
Ao mesmo tempo que os Everything Everything lutavam para segurar o Coliseu dos Recreios na sua recta final do festival, Benjamim & Barnaby Keen lotaram a Sala Super Bock na Garagem EPAL e Sevdaliza começava a aprontar a maior fila para entrar no Cinema São Jorge. Espaço esse que se revelou extremamente minúsculo e inadequado para receber a iraniana. Não houve espaço para dançar, a visibilidade não foi a mais agradável, mas Sevda Alizadeh, seu nome verdadeiro, não deixou de cumprimentar fãs, de empunhar flores e de receber uma ovação com a certeza de que a relação com o público português será para manter. Tarefa igualmente conquistadora tiveram os Liars de Angus Andrew, que se apresentou vestido de noiva para atacar as malhas de TFCF. Porém esta incursão ligeiramente mais introspectiva da banda não podia ter fervido mais na Estação Vodafone.FM, no Rossio, que a rebentar pelas costuras se deixou deliciar pela electrónica, pelo rock e sobretudo pela atitude punk do frontman australiano.
A terminar em beleza e em português, não fosse o Vodafone Mexefest um potenciador de novos e confirmados talentos da música alternativa portuguesa, Moullinex quebrou o estigma e libertou o Coliseu dos Recreios ao amor em todas as suas possíveis vertentes com o espectáculo desenhado para apresentar Hypersex. Exemplos arrojados? Gui Moreno deslocou-se às escadas laterais da sala para, em frente a um green screen, dançar e compor vídeo ao vivo e em directo, algo que os amigos do norte Best Youth, convidados a participar neste concerto, acabam também por fazer. Mais convidados foram Da Chick e Xinobi, juntando-se a família da dance music lisboeta para ditar o suor como moeda de troca entre os presentes. A julgar pela aposta e pelo resultado final, há muito que este circuito de artistas, que nos tem feito dançar tantas noites em vários espaços, merecia uma sala desta dimensão. Ficou a música portuguesa a ganhar.
Terminado mais um Vodafone Mexefest, fica cada vez mais evidente o espaço que ocupa na agenda anual de festivais, destacando-se positivamente dos demais pelo modo como se abrange a várias salas, desafia novos artistas e obriga o público a dispersar-se e a tomar decisões difíceis, que têm de existir para salvaguardar aquilo que o festival melhor propõe – ir de palco em palco, à procura da música que mexe na cidade.
Texto: Ana Margarida Dâmaso e Nuno Bernardo
Fotografia: Nuno Bernardo