Touché Amoré no RCA Club. Como uma onda e como a rebentação

Foram precisos alguns anos – e uma boa dose de inércia, voluntária ou induzida, nunca iremos saber – para se marcar a estreia de Touché Amoré em solo português. Talvez pelo público pouco palpável que se tem por cá, onde fãs de hardcore se misturam com fãs de indie ou emo, se tenha tornado complicado prever o output de um concerto da banda californiana. Essa tarefa ficou um pouco facilitada com a primeira parte garantida de Code Orange na digressão europeia, arrastando com eles uma outra estreia. E logo de uma banda que explodiu com o selo da Roadrunner Records e tem devastado o mundo ao seu jeito. Mas aconteceu, primeiro em Lisboa e depois no Porto. Lá iremos.

Uma sexta-feira na capital, 23 de Junho, e planos para sair à noite encurtados pela adição de outras duas bandas ao line-up para o RCA Club. A aumentar os primeiros graus de intensidade (e temperatura) estiveram Somber Rites, uma espécie de supergrupo do hardcore nacional que junta partes de For The Glory e Reality Slap num palco. Mas se a temperatura não seria para oscilar muito, a intensidade disparou em quantidades errantes e desmedidas com os britânicos Carbine, “sacados” quase à última hora para este cartaz e a garantirem um estranho rebuliço de estalos, caras feias para breakdowns levianos e uma discrepância de rotações entre o público e a banda. Quem avistou o concerto das varandas da sala lisboeta, pouco terá colocado os olhos no palco.

Se os karate kids não ficaram satisfeitos com os britânicos, a dose correspondente acabou nas mãos de Code Orange. Já não são miúdos, que o sufixo -Kids caiu após o primeiro álbum, e esse período acabou esquecido no alinhamento e na memória de uma batuta Deathwish Inc. que assinalou Love Is Love // Return To Dust. Os graúdos, agora ao colo da Roadrunner, jogaram-se à industrialização do breakdown – há um Fordismo absoluto de palm mutes. Há ainda riffs virulentos e passagens noise em I Am King e a fórmula reescreve-se com o novo Forever, editado no início deste 2017. A incitação a um circo de feras de punho cerrado, de óculos a sobrevoar máquinas fotográficas e de pés ao nível da garganta levou uma coreografia edificada por decibéis de distorção, cada vez menos focados na musicalidade e mais na barbaridade.

Os pontapés no peito e a pancada distribuída como panfletos à saída de um apeadeiro depressa se tornaram em abraços, em assinaturas em vinis e em bilhetes já meio-rasgados, molhados pelo suor (e algum sangue?). Os Code Orange assim acabaram desarmados, quais gladiadores sem instrumentos, para distribuírem os sorrisos aos fãs.

 

A correlação entre público e banda conheceu parâmetros mais equilibrados logo aos primeiros minutos de Touché Amoré. “Flowers And You” abriu o concerto e a apresentação de Stage Four, quarto disco e cimentada consagração caso tenham sobrado dúvidas após Is Survived By, mas tamanha estreia não podia esquecer o disco que colocou a banda no radar. Parting The Sea Between Brightness And Me foi igual destaque ao longo da noite, fazendo uma ponte na temática lírica sobre a deterioração de relações e o conforto das distâncias também abordada, de certa forma, no novo álbum.

«Like a wave, like the rapture», gritou-se por toda a sala no refrão de “Rapture”, como se gritou a plenos pulmões em todas as faixas anteriores e nas seguintes. Por esta altura já Jeremy Bolm se havia mostrado surpreendido pela recepção e já Nick Steinhardt havia dançado muita melodia de guitarra nas mãos, mas o público permaneceu constantemente voraz, agarrando o microfone sempre que foi permitido e a dar cambalhotas sobre si numa correria de stage diving que só os clubes de música não gradeados permitem. Mas foi aquele refrão de “Rapture”, tão fortemente ligado à temática central de Stage Four, que se quer recordar – a fase final, o quarto estágio do cancro que acabou por vitimar a mãe de Bolm, estabelecendo uma eterna relação à distância de uma vida.

Jeremy Bolm não deixou de criar ligações com quem quer que lhe tocasse nas primeiras filas. Cedeu o microfone, sorriu de mão no peito e de olhos postos em todas as cabeças, inclusive as que aplaudiram das varandas, e até parou o concerto ao identificar um fã muito parecido com o seu melhor amigo. O amor pode ser transmitido sem ser entrelinhas e é impossível ignorá-lo quando este é tão correspondido como foi no primeiro concerto que os Touché Amoré deram em Portugal. É que não se tratou de fazer valer a espera, tratou-se de fazer valer esta brecha de luz.

Fotografia e Texto: Nuno Bernardo