Anohni no Coliseu do Porto. A canção pop também grita

A canção de protesto mudou; mudou porque mudaram os tempos, as vontades e as razões, mas mudou também porque mudaram os meios e a actualidade do veículo que transporta a mensagem. Precisamente em  Hopelessness – disco lançado em Maio do ano corrente e alvo de apresentação nestas duas datas por Portugal –, Anohni faz espelhar o contexto sociopolítico contemporâneo em contornos do que é a electrónica moderna e do que se pinta facilmente ao lado da música de dança, daquela que aguça os caninos antes da investida, da que não tem medo de nos bufar ao pescoço e que nos agarra pelos colarinhos para nos dizer alguma coisa.

O rugir de ondas intercaladas a estática durou até que se fosse compondo a sala e até ao diminuir das luzes. As mesmas vagas que se arrastaram até que a figura duma Naomi Campbell que vimos dançar durante largos minutos desaparecesse em pano de fundo;  a tons de preto e branco e de linhas graciosas, a imagem da modelo lembrava a de uma estátua da liberdade vestida a lingerie negra, no que era uma sala de betão fria e vista a luz fluorescente. Em palco, espaço apenas para se vislumbrarem duas mesas que se confrontavam de frente em lados opostos da penumbra, e que não tardaram a ser ocupadas por Daniel Lopatin e por Christopher Elms (fica a dúvida se este segundo era não o habitual colaborador de Björk, mas sim Ross Bichard, sendo que este actuou pela primeira vez nesta digressão há somente alguns dias e no contexto do festival Sónar, em Barcelona). A voz de Anohni ouviu-se primeiramente e precisamente na faixa título de Hopelessness, só para então depois surgir encarnada como um corpo envolto a prateado, com a cara encoberta a tecido negro e gesticulando ante a montanha percussiva que se ergueu para a receber em “4 Degrees”.

Sabíamos que ela lá estava porque a conseguíamos ver, mas a presença de Anohni em palco foi sempre irrelevante perante a força da mensagem que transporta Hopelessness. O disco – co-produzido de forma soberba por uns já supracitados Daniel Lopatin (Oneohtrix Point Never) e Ross Bichard (Hudson Mohawke) -, é ao vivo acompanhado por uma série de pequenos filmes mostrando a face de incontáveis mulheres, todas elas de idades e etnias distintas e que iam esboçando com os lábios os versos que se escutavam da garganta da autora, de forma tal que Anohni parece dizer-nos que aquelas lágrimas e palavras não lhe pertencem só a ela, deixando-as sim adquirir um senso de universalidade que supressa a ideia de um criador.

Esse sentido de globalidade e transversalidade é precisamente aquele que nutre e faz aqui mover a canção, a que vive entre a agressividade e a impotência perante os tempos. Da tortura à violência física ou sexual, passando por questões de vigilância, espionagem ou de cariz ambiental ou bélico, Anohni grita a revolução por entre os piscares de olhos que se apagam a cada ataque de drone. Quando nem sempre a canção pop é vista como uma força motriz válida, tanta vez rejeitada e desconsiderada pela simplicidade ou menos pertinência do seu conteúdo, o que é alcançado em Hopelessness é um marco representativo do que pode – mas não tem obviamente de ser -, a assertividade e carácter afirmativo do meio que essa representa.

Numa actuação composta pelo alinhamento integral de Hopelessness, ouviram-se ainda cinco outra faixas que pareceram pertencer ao mesmo espaço criativo mas que não couberam no corte final do disco. Destaque entre essas para “Paradise”, uma sublime pista de dança cujos graves arrebatadores são aqui descontextualizados perante a violência gutural de um verso como “My mother’s love/Her gentle touch/My father’s hand/Rests on my throat”. Uma outra – “Indian Girls” -, um autêntico desfile de horrores que Anohni faz culminar de forma arrepiante com “You burned Indians at the stake/Drove the stick from anus to mouth/And raped girls in bleeding lines”.

Não só a pertinência do que aborda ou a veemência com que o faz, Hopelessness é importante pela forma como o canaliza. A complementaridade entre o material produzido por Lopatin e Bichard – que tanto se agiganta a proporções verdadeiramente épicas como se vai encaixar no tamanho de um sussurro -, é sempre parte conexa do que é a fragilidade que se faz trespassar na voz de Anohni, conjugando-se numa aura que mesmo sendo brutalmente dolorosa nunca deixa de ser belíssima, denotando-se de forma particular na sensualidade latente de uma canção como “Crisis” ou no experimentalismo duma notororiamente desafiante “Obama”.

Se Anohni tinha já pintado em Hopelessness um dos mais vultosos e importantes registos do panorama musical moderno, a quase que desfiguração da artista perante o que é a sua obra como performance, exponencia-a para lá do pessoal e até ao humanismo, indo inserir de forma meritória o nome da intérprete ao lado de outras visionárias e provocadores artistas pop como M.I.A. ou Beyonce. Para o final ficou o single avançado para o disco e que acompanhou o seu anúncio em Março passado. Em “Drone Bomb Me” somos movidos pela tragicidade da sua misericórdia romântica, a de uma rapariga afegã que olha os céus implorando o fim por uma bomba que a ela fizeram dirigir; em tons de amante em cavalo branco, a um horizonte longe e cor de violeta. Rapidamente as últimas notas de sintetizador pingam sobre a sala e escoltam a voz de Ngalanka Nola Taylor. “What are we doing to the Earth?” – as luzes apagam-se uma vez mais e rolam os créditos sobre um palco já vazio – o aplauso tomando o silêncio.

Texto: Rui P. Andrade

A fotografia utilizada não corresponde ao concerto no Porto. Fotografia de Drew Gurian/Red Bull Content Pool.