Prurient – Frozen Niagara Falls

Por entre trabalhos tanto como Vatican Shadow e Prurient (os seus principais cavalos de carga) como tendo vindo a desempenhar um papel colaborativo no synthpop sombrio dos Cold Cave, Dominick Fernow arrasta duas mãos cheias de outros aliases pelo submundo da música experimental faz já 20 anos. Sob a bandeira de Vatican Shadow e com títulos como “Remember Your Black Day” e “Kneel Before Religious Icons” olhamos para Fernow a pulverizar uma pista de dança rançosa com um techno potentíssimo, altamente maquinal e rasgado de influências de pioneiros do power electronics e cena industrial britânica como os Throbbing Gristle, Whitehouse e mesmo SPK. Techno que nos faz pensar estar barrados do lado de fora da sala, a banda sonora a uma rave trancados na casa de banho da cave, a bater com a cabeça no chão de azulejos ao ritmo do cobertor de graves que vem lá da cima. Como Prurient a aproximação ao ritmo e à melodia tem vindo a ser marcada nos anos recentes em lançamentos como “Through The Window” (não deixem passar a sublime “You Show Great Spirit”; é um autêntico hino de música de dança) e  sobretudo desde “Bermuda Drain” de 2011, mas foi em registos anteriores e tendo como exemplos máximos álbuns como “Pleasure Ground” de 2007 e “And Still, Wanting” de 2008, que Fernow colocou em cima da mesa o lado mais feio e menos clínico da sua discografia, um poço selado a paredes de distorção e feedback maiores que o mundo. Em “Frozen Niagara Falls” dá-nos a impressão de olhar para Fernow a juntar o retracto duma carreira sob o signo de um monstro com pouco para dar certo, um álbum duplo que ao longo de hora e meia carrega o artista para o pináculo da consagração.

Dos maiores, se não mesmo o maior triunfo de “Frozen Niagara Falls” é um que fica connosco logo após uma primeira escuta. É logicamente possível que se olhe para o álbum como um portentoso abismo proporcional à insignificância da condição humana, um monólito da cor da noite; a verdade é que existem aqui momentos de beleza tragicamente rara, e é entre esses dois mundos e no balanço que Fernow consegue criar entre ambos os espectros que este disco respira fundo. Há mais elementos acústicos e orgânicos do que nunca na música do norte-americano, e esse é outro dos aspectos que rapidamente aqui se desconstrói. É através desses que aqui se faz criar a ilusão de ver um espelho partido a ser reconstruído de novo numa bola amorfa de cristais.

Nas primeiras oito faixas que perfazem a metade inicial do disco, parece haver mais a acontecer um pouco por todo o lado (para o bem e para o mal, por vezes fica-nos a ideia de aqui faltar conexão em alguns momentos). Mesmo em faixas como “Dragonflies to Sew You Up”, em que somos verdadeiramente pontapeados por uma drum machine incessante e saída dum qualquer inferno sonhado por Justin K. Broadrick, há espaço para notas de piano que surgem de forma esporádica e quase desconectada do bombardeamento maquinal à sua volta. A colar todos os elementos está em loop uma pista de sintetizador quase nauseante; a sirene duma ambulância como táxi para o outro lado.

Suprajacente a tudo, haverá sempre a voz de Fernow, como se arrancada a ferros dos confins da sua garganta e despejada sobre os nossos tímpanos até a um ponto de quasi-submissão. A faixa acaba a transportar-nos para o meio duma multidão. Estaremos a percorrer uma avenida lotada ou num bar com somente 20 ou 30 pessoas? A claustrofobia inerente a um contexto urbano é palpável e certamente quereríamos estar noutro sítio qualquer. A melodia de sintetizador muda ligeira mas tragicamente e com ela regressa a drum machine. Fernow grita um perceptível «I promise I will only fuck prostitutes». Há um fade out rápido e quase de imediato a segunda faixa do disco acaba.

Tão depressa estamos perante uma parede de violência impenetrável como sobre uma cama de sintetizadores sublime (veja-se “Jester In Agony”, por exemplo). Liricamente não tarda em revelar-se uma ansiedade latente, frágil mas não menos marcada, um nevoeiro mental que só parece dissipar-se ao percorrer quilómetros de rua em cidades moribundas e não menos fumarentas. Há um estranho sentido de narrativa que por aqui se vai construindo com o acumular de outra e outra faixa; o inevitável censo da necessidade da conexão com o outro, de que forma seja. Fernow referiu isso mesmo em entrevista a Brandon Stousy da Pitchfork quando questionado sobre o romanticismo inerente à musica de Prurient: «At the end of the day all we really want is just another person. It’s very truly rare that people ever really want to be alone.» A intensidade grotesca que transborda em Prurient como veículo para a inevitabilidade da paixão desmedida e do amor, dos nossos falhanços e desilusões.

É na sua segunda metade, e com “Greenpoint” em particular, que “Frozen Niagara Falls” brilha verdadeiramente. A faixa abre com umas inevitavelmente surpreendentes guitarras acústicas, prontamente acompanhadas por uma pista de sintetizador desoladora. A partir daqui as coisas vão-se tornando mais e mais e sombrias. Marcado o passo lento por um beat despido até ao osso, vão surgindo erupções de noise e feedback por entre a mistura que vão crescendo em intensidade e frequência. A um ponto tudo isto cessa e somos confrontados de novo com aquele mesmo drone de sintetizador que foi deixado a pairar em plano de fundo desde há instantes. Simultaneamente surge a voz de Fernow: «You don’t want to hurt anyone / you don’t want to burden anyone / you just want to disappear» – diz-nos em spoken word, de forma pausada. A narrativa prossegue com a descrição dum alcoólico que de forma bizarra deixa as cinzas da mãe no apartamento dum amigo. Sobre a possibilidade e anteriormente mencionado desejo do próprio de que estas fossem espalhadas pelo East River (Greenpoint é o nome dum bairro no norte de Brooklyn na marginal deste mesmo estreito), Fernow volta a dizer-nos: «The East River isn’t romantic anymore you know / That’s where suicides go» – uma descrição assombrosa da passagem do tempo e da inércia da mudança, enquanto notas belíssimas de sintetizador pingam que nem chuva e se transformam em vapor quase por magia. A nossa ligação aos outros encarnada em espaços partilhados. Eles mesmo não menos susceptíveis à mutação e a contextos temporais que as relações humanas: uma demolição controlada perdida na escala geológica. A beleza trágica de “Frozen Niagara Falls” é tão perfeitamente resumida naquelas duas frases na voz de Fernow que parecem quase ridicularizar estes quatros dígitos de caracteres.

Frozen Niagara Falls” será certamente lembrado como um dos álbuns menos acessíveis de 2015, tanto pela duração monstruosa para o género como pela natureza que ostenta, mas para os que contemplam o abismo como forma de catarse pessoal, este será sim recordado como um dos mais bonitos e sombrios espelhos que a música viu nascer em anos recentes, e como um disco a que marcarão regresso durante outros mais.

Autor: Rui P. Andrade

Álbum. Profound Lore. 18 Maio 2015

Classificação

8.4

Tão depressa estamos perante uma parede de violência impenetrável como sobre uma cama de sintetizadores sublime.