Fotografia por: Marina Silva
Texto por: David Matos
ENTREMURALHAS: único no mundo e aqui tão perto
Já não é novidade. Já não é underground. Pelo quarto ano consecutivo, Leiria é a capital mundial do gótico. Já é tradição. Já é ritual. Caras conhecidas reencontram-se, num mar de risos e abraços; outras novas juntam-se à família, tímidas e discretas. Portugueses e espanhóis constituem grande parte do público, sendo que o resto do mundo fornece os corajosos de terras distantes, que vêm a Portugal testemunhar o festival com o ambiente mais singular em todo o planeta. Este ano, destaque para o número considerável de crianças: eram dezenas! A lotação limitada a 737 pessoas, que esgotou num dos dias e quase o fez no outro, permite uma união única entre o público e não só.
Os membros das bandas deambulam por entre a multidão, assistindo aos concertos um dos outros (e como vibrou a vocalista dos Roma Amor no concerto dos Qntal!). O grande Carlos Matos, ícone máximo da associação responsável pelo evento, cumprimenta humildemente as pessoas e assiste quando pode aos concertos (e como vibrou ele no concerto dos Kap Bambino!). A Igreja da Pena esteve igual a si mesma, este ano com uma Fénix ensanguentada a vigiar o público. O Palco Alma foi o expoente máximo da beleza em forma de música. O Palco Corpo, esse, viu a loucura das almas góticas vir ao de cima, onde o lema “dançar, dançar, dançar” foi mais do que respeitado.
Pequenos detalhes por limar continuam a necessitar de atenção, sobretudo a escassez de casas de banho. Problemas de som na Igreja da Pena mancharam as brilhantes actuações de Roma Amor e Die Selektion; acontece. Tudo o resto esteve impecável, dando a Fade In uma verdadeira lição de organização e profissionalismo a muitas promotoras de eventos que parecem só pensar em dar condições às bandas e não ao público. Decerto todos os que estiveram no Entremuralhas 2013 concordam comigo quando digo que, mais do que o cartaz, mais do que o local, o grande segredo do sucesso deste festival é o ambiente, a civilidade de todos os intervenientes e a preocupação da organização em criar uma harmonia perfeita entre público e bandas. Quanto falta para Agosto de 2014 mesmo?
DEINE LAKAIEN: abertura solene
A grande novidade do Entremuralhas 2013 foi a extensão do festival além muralhas. Este ano, o centro de Leiria assistiu a uma maré negra no Teatro José Lúcio da Silva, que recebeu nada mais nada menos que os gigantes Deine Lakaien, no seu único concerto este ano em formato acústico, um apetitoso exclusivo para o Entremuralhas. “Boa noite, bem vindos a Leiria. We are Deine Lakaien“; passavam 40 minutos das 21 horas quando o carismático Alexander Veljanov proferiu estas exactas palavras, num português quase perfeito. Abrindo com Where You Are, Alexander prometeu, na sua primeira de muitas interações com o público, que a banda iria percorrer toda a sua discografia, dançando para frente e para trás enquanto visitavam um pouco de todo o seu vasto leque de êxitos, que se acumularam naturalmente, dado a qualidade única da banda, ao longo de 28 anos de carreira.
Foram duas curtas horas de concerto, numa sala praticamente esgotada e com um intervalo de 15 minutos pelo meio. Brilhante, brilhante execução técnica, não só na voz mas também e sobretudo no piano de Ernst Horn, com um espectáculo particularmente vistoso no tema Mirror Men (coitado daquele piano!). O palco estava pintado em tons de roxo e verde, pouco iluminado, criando uma intimidade entre a banda e o público, que aplaudia calorosamente no final de cada tema, retribuindo Alexander com um repetido “muito obrigado“, substituído por um “merci beaucoup” no final do tema Vivre, o único em francês (música que teve um início acidentado na voz, obrigando a uma segunda tentativa).
Poderia destacar vários momentos, mas não o vou fazer. Foi um concerto que valeu pelo todo, pelo brilhantismo omnipresente em cada som. Foi com uma execução memorável da Dark Star que a banda se despediu do público, que aplaudiu e aplaudiu durante uns bons 3/4 minutos sem parar, até que o duo germânico regressou a palco para um encore com duas pérolas finais, que voltaram a ser coroadas com um grande aplauso de pé. Esperemos que a tradição do concerto solene de abertura seja para manter para o ano!
Setlist: Where You Are | 2nd Sun | Who’ll Save Your World | The Game | Follow Me | One Night | A Fish Called Prince | Mirror Men | Return | Gone | Without Your Words | Fighting The Green | 2nd Act | Vivre | Over And Done | Away | Blue Heart | Dark Star | Wunderbar | Love Me To The End
CASTELO DE LEIRIA: os concertos
Seis estreias em solo nacional (Nachtmahr, Merciful Nuns, TriORE, Lebanon Hanover, Die Selektion e Roma Amor) em doze concertos únicos, escolhidos a dedo. Este foi mais um ano onde aconteceu magia dentro das muralhas do Castelo de Leiria. Aqui fica a análise a cada um dos concertos.
DIA 24
DIA 25
MURALHARTES: além som
Nem só de música vive o Entremuralhas. Há que alimentar as almas góticas, sedentas de cultura, nos intervalos, com atividades fora de palco, algo que torna este um festival ainda mais singular e especial. Este ano, o leque de ofertas, em exposição permanente durante os dois dias no castelo, foi intitulado de Muralhartes, sendo dividido em seis itens únicos, que completaram a paisagem e emanciparam a beleza das muralhas.
A exposição mais marcante foi porventura a escultura Fénix de Ana Costa, uma visão imponente de uma mulher nua manchada de sangue mesmo à entrada da Igreja da Pena. Ficaria lá bem para anos vindouros! Destaque também para a original e misteriosa escultura e instalação Hímen Mortis de Gonçalo Sousa de Reis, com cabeças de pedra suspensas numa base de corrosão, um visão adequada ao local onde decorria outra das atividades complementares, a habitual projeção de filmes na muralha da Torre de Menagem, que voltou a não ter muita adesão devido aos horários das bandas, mas sempre surpreendente pelo efeito único que causa.
As restantes três obras de arte encontravam-se em Paços Novos, um espaço amplo onde as pessoas deambulavam sobretudo no intervalo entre o último concerto na Igreja e o primeiro no Palco Alma. A ilustração Amor de Pai de Patrícia Guerra era simples mas enigmática, enquanto que a ilustração e instalação Love Will Tear Us Apart de Elsa Pedrosa despertava os sentidos, com as suas caixas de madeira onde sombras negras ganhavam forma. No entanto, o que mais me agradou foi mesmo a fotografia da exposição Reflection Of Humanity de Bloody Countess e Amon Tron, imagens fantasmagóricas assustadoras cuja delícia para a vista era acompanhada com um mimo para os ouvidos, com uma banda sonora simultaneamente calma e sinistra.
Voltando aos filmes, de mencionar que as obras primas intemporais Frankenstein (James Whale, 1931) e O Fantasma da Ópera (Rupert Julian, 1925) podiam ser vistas com uma qualidade surpreendente e com um efeito único; pergunto-me se alguém no mundo inteiro alguma vez viu estes filmes projectados na muralha de um castelo, nos seus quase 90 anos de existência. É lindo!
Agradecimentos: um grande abraço a todo o pessoal da Fade In, em especial ao Carlos Matos, pela acreditação que permitiu à Ruído Sonoro estar pelo terceiro ano consecutivo neste evento singular.
Special thanks to Die Selektion for kindly sending me their setlist. Danke schön!