Apesar de este atraso ter feito com que o lançamento do álbum (e não a sua gravação) se situe na segunda metade da década de 90 e portanto numa altura em que já várias bandas exploravam os caminhos trilhados pelas bandas escandinavas (particularmente as norueguesas), o impacto de Filosofem é tremendo. Os caminhos explorados por Varg em Filosofem acentuam o que já havia sido feito com os anteriores álbuns e fundam uma série de preceitos que hão-de influenciar de forma decisiva um sem número se tendências dentro do Black Metal. Filosofem estabelece-se como incontornável referência, seja de forma directa como no caso completa criação e moldagem no que concerne ao Ambient Black Metal, ou de forma indirecta como acontece no que diz respeito ao Depressive Black Metal (onde a própria constituição do projecto Burzum é uma influência), passando por um sem número de outras divisões estilísticas dentro do Black Metal onde a vertente atmosférica é importante.
Alinhamento
Versão Norueguesa
01 – Burzum
02 – Jesu Død
03 – Beholding The Daughters Of The Firmament
04 – Decrepitude I
05 – Rundtgåing Av Den Transcendentale Egenbetens Støtte
06 – Decrepitude II
Versão Alemã
01 – Dunkelheit
02 – Jesus’ Tod
03 – Erblicket Die Töchter Des Firmaments
04 – Gebrechlichkeit I
05 – Rundgang Um Die Transzendentale Säule Der Singularität
06 – Gebrechlichkeit II
Ano 1996
Editora Misanthropy Records
Faixa Favorita 03 – Beholding The Daughters Of The Firmament
Género Ambient Black Metal
País Noruega
Banda
Varg Vikernes – Todos os instrumentos e Voz
É partindo (conscientemente ou não pouco interessa dado o resultado apresentado) desta base que Varg opera nova transformação no universo de Burzum incrementando a presença da vertente Ambient em Burzum. Se é bem verdade que desde o início que Varg inovou no que concerne ao uso de teclados em conjunto com o Black Metal e que sobretudo em Det Som Engang Var e Hvis Lyset Tar Oss, a importância dos teclados para o efeito final destes trabalhos é imensa. Neste campo, Filosofem não é uma mudança técnica em relação ao passado do projecto, mas existe antes um acentuar e um aprofundamento do papel ambiental. Há semelhança dos seus antecessores, segue o caminho da exploração Ambient a par do Black Metal (a presença de faixas somente ambientais é um elo de ligação entre o álbum aqui exposto e os dois que o antecedem), mas aqui dá-se o aperfeiçoamento final da integração entre os dois géneros. Uma faixa como Burzum (mais conhecida como Dunkelheit) elucida sobre esta mudança face a algo como Det Som En Gang Var: ambas as músicas (duas das melhores do género) possuem um uso extensivo de teclados mas ao passo em que na música do álbum Hvis Lyset Tar Oss existe uma sensação de justaposição (de notar que este facto não oferece qualquer tipo de crítica negativa dada a mestria como é feito), a música de abertura de Filosofem dá a ideia de continuidade e progressão simultânea entre os riffs hipnóticos e as batidas da bateria e o trabalho da bateria. Une-os o minimalismo de execução, mas também uma percepção de complementaridade que remete para uma composição simultânea (independentemente de ter sido este o processo composicional) dos elementos mais “tradicionalmente” associados ao BM e da parte Ambient. Nada disto coloca em causa todo o brilhantismo de, por exemplo, uma faixa como Det Som En Gang Var (repito, uma obra-prima de Burzum e simultaneamente de todo o género). A progressão de Burzum não coloca em causa a maturidade e intencionalidade de cada uma das obras passadas. Trata-se de uma “pintura” com diferentes secções e que atingem invariavelmente a excelência.
Precisamente para o nível atingido por Burzum em Filosofem em muito contribui aquilo que será, porventura, a maior qualidade de Varg enquanto músico: uma ímpar capacidade de composição. Como referido, a mestria na fusão dos elementos mais tradicionais do Black Metal com a sonoridade ambiental é um destaque ao qual se junta a capacidade de juntar elementos de execução simples, obtendo um efeito tão poderoso e único. A face mais visível desta qualidade são os riffs que invadem o trabalho que têm tanto de terrivelmente simples como de imensamente belos e assombrosos. Qualquer uma das primeiras três músicas possui riffs que conseguem, não obstante a sua simplicidade, transmitir todo um conjunto de sentimentos com uma intensidade incrível. A dificuldade está precisamente neste ponto: os extremos técnicos – seja extrema simplicidade ou complexidade – podem anular o objectivo a que se propõe pelo que para tal não suceder há que ter uma ideia clara de condução das músicas para não se cair em exageros.
Em Filosofem, atinge-se com perfeição o ponto de equilíbrio. A título de exemplo, a primeira faixa Burzum (Dunkelheit) parece pensada ao pormenor em relação à gestão dos tempos em que a repetição dos riffs é feita. Cada um dos elementos tem um tempo de entrada perfeito e que provoca subtis mudanças de ambiente, impedindo qualquer tipo de enfado: os riffs iniciais introduzem a faixa de forma lenta e sombria, com a bateria a seguir a mesma toada até à entrada do riff principal, ao que se segue os teclados que sublinham de forma perfeita a melodia da guitarra. São sete minutos onde estes elementos são conjugados de forma perfeita com a voz arrepiante de Varg e com algumas mudanças quase imperceptíveis, mas que fazem toda a diferença para que não haja uma repetição excessiva na faixa. No entanto, Varg também varia na forma como faz fluir as faixas, não se centrando simplesmente nos teclados para fazer criar momentos interessantes. A segunda faixa, Jesu Død (mais conhecida pela sua versão alemã Jesus’ Tod) é demonstração disso mesmo através de um cortante conjunto de riffs rápidos que é acompanhado pela igualmente furiosa bateria. Neste caso, a própria velocidade dos riffs e cria uma dinâmica que não se torna cansativa durante os mais de oito minutos que a faixa tem. Claro que velocidade por si só não representa nada e Jesu Død é mais um enorme momento sobretudo devido ao riffs memoráveis que compõe a música.
Como já referido, Filosofem constitui-se como uma obra de grande dimensão graças à forma como a simplicidade técnica se transcende em brilhantismo quando tudo está perfeitamente encaixado. As faixas mencionadas atestam da qualidade dos riffs neste trabalho, assim como da forma como os teclados minimalistas sublinham uma atmosfera nostálgica e melancólica. Por outro lado, naturalmente apenas presente na parte Black Metal do álbum, a bateria não tem um papel tão evidente, servindo sobretudo para frisar o tempo das músicas que acaba por variar consideravelmente nas três primeiras faixas. A própria produção acaba por relegar para segundo plano a bateria uma vez que se encontra bastante “enterrada” na parede de som provocada Ainda assim, o som algo “seco” da bateria é uma das características notórias do álbum, seja nos momentos mais acelerados de Jesu Død ou quando o tempo médio de – por exemplo – Beholding The Daughters Of The Firmament (Erblicket Die Töchter Des Firmaments) é dominante. Há semelhança do que sucede com o baixo (poucas vezes audível durante o trabalho devido à enorme camada de distorção), a bateria limita-se a servir da base para todo o aparato criado pelos elementos que se destacam em Filosofem.
Também com uma colocação bastante “distante” na produção encontra-se a voz de Varg. No entanto, este é um dos elementos mais reconhecíveis e importantes para a caracterização do álbum e sobretudo para o seu estrondoso resultado final. De notar, antes de mais nada, que a voz apresenta-se aqui de forma bastante diferente em relação aos anteriores trabalhos de Burzum. Antes deste trabalho a voz de Varg era um gutural extremamente gritado, bastante único e original para o início dos anos 90 e simultaneamente uma das marcas características da abordagem singular do projecto em relação ao Black Metal. Em Filosofem ainda se conseguem discernir alguns traços da voz gutural mas extremamente aguda que foi dos traços principais dos primeiros trabalhos, mas a produção e a forma como a voz está encaixada no som mudam quase por completo. Usando o pior microfone do estúdio onde o álbum foi gravado, Varg obteve um efeito completamente distorcido e crispado que poucas semelhanças possui em relação a uma voz humana mesmo quando comparado com as vozes torturadas dos primeiros trabalhos ou mesmo em relação ao conceito mais alargado de gutural nos subgéneros mais extremos do Metal. Desta forma, a voz acaba por ser uma continuação do som difuso das guitarras, rasgando a parede sonora com um gutural agonizante que quase parece remanescente de um som Industrial, tal é a forma como a voz soa distorcida. O resultado final desta abordagem é soberbo, retendo grande parte dos sentimentos dolorosos que eram transmitidos com os guturais mais gritados dos álbuns anteriores, ainda que a forma como tal efeito é atingido seja consideravelmente diferente.
Em consonância com a emotividade dos vocais estão as letras do álbum. Em relação ao alcance das mesmas, pode-se dizer que não poderiam ter uma melhor presença que não num trabalho cujo título é Filosofem. Não sendo letras complexas num sentido tradicional do termo, deambulam por um mundo de preocupações existenciais através de relatos de um tempo passado e de paisagens desaparecidas. A imagética naturalista é uma constante e serve tanto de descrição simples (como na parte mais ambiental do álbum), como de plataforma para temas que parecem corroer a imaginação de uma mente em permanente viagem interior. A já referida sensação de viagem dá-se em grande parte devido aos mundos criados pelas letras do trabalho mas que mais do que remeterem de forma literal para um conjunto de imagens, se tratam de metáforas para um transporte que ocorre sobretudo interiormente porque esta é sobretudo a travessia que interessa ao “filósofo”. Neste campo, a primeira parte do álbum oferece a porção mais conseguida de Filosofem uma vez que a parte exclusivamente Ambient tem uma abordagem mais directa e menos profunda no campo lírico.
Assim, a primeira faixa auto-intitulada Burzum (mas “popularizada” como Dunkelheit) possui um misto de imagética naturalista e um certo tom pagão que se acaba por surgir de forma mais clara na segunda parte do álbum. Não sendo a temática mais interessante do álbum, acabam por resultar muito bem em toda a faixa, nomeadamente no momento quase falado que acaba por surgir na última metade da faixa. Segue-se Jesu Død (de novo mais conhecida pela versão alemã: Jesus’ Tod) com uma descrição negra da figura de Cristo. “A morte de Jesus” representa o nazareno de forma pouco usual, não como uma figura de paz e tranquilidade mas como uma figura negra e sombria. Mais do que um ataque gratuito à pessoa de Cristo, trata-se de uma retratação que se foca no lado oculto e sobretudo humano de alguém cujo sofrimento e dor se sobrepõe claramente à sua tradicional “reputação”, ainda que tal seja escondido.
No entanto, e sem qualquer desprimor pelas mencionadas letras, o melhor momento neste campo em Filosofem (e em toda a discografia do projecto) encontra-se na terceira faixa, Beholding The Daughters Of The Firmament (Erblicket Die Töchter Des Firmaments). Uma interrogação existencial invadida de melancolia e solidão, de uma alma em permanente convulsão interrogativa provocada pela noção de desconhecimento e vazio face à sua existência. Nada mais perfeito para sintetizar a força emotiva de Filosofem do que a “magnum opus” lírica de Varg:
I wonder how winter will be
With a spring that I shall never see
I wonder how night will be
With a day that I shall never see
I wonder how life will be
With a light I shall never see
I wonder how life will be
With a pain that lasts eternally
In every night there’s a different black
In every night I wish that I was back
To the time when I rode
Through the forests of old
In every winter there’s a different cold
In every winter I feel so old
So very old as the night
So very old as the dreadful cold
I wonder how life will be
With a death that I shall never see
I wonder why life must be
A life that lasts eternally
I wonder how life will be
With a death that I shall never see
I wonder why life must be
A life that lasts eternally
Por motivos naturais, as três primeiras faixas acabam por ser as que merecem uma atenção maior quando Filosofem é abordado de uma forma mais compartimentada e focando-se essencialmente na sua vertente ligada ao Black Metal. Compreende-se este aspecto na medida em que as faixas seguem a linha do BM que Varg aprimorou e seguem uma linha que acaba por ser mais natural dentro do género. No entanto, há que mencionar que sem Decrepitude e Rundtgåing Av Den Transcendentale Egenbetens Støtte, Filosofem não atingiria patamares e ambientes que combinam perfeitamente com aqueles presentes nas primeiras faixas. Decrepitude será, talvez, a mais perfeita integração da vertente Ambient com o Black Metal o que torna a sua primeira versão (quarta faixa) numa passagem perfeita para a longa parte ambiental e a sua versão instrumental (última faixa do álbum) num fecho condizente para um álbum que consegue unir de forma sistemática as duas sonoridades dominantes (embora as referidas faixas tenham um sentimento mais pertencente à primeira esfera ambiental do que ao BM). No meio das duas, surge a monstruosa Rundtgåing Av Den Transcendentale Egenbetens Støtte, a única peça puramente ambiental do trabalho. Percorrida por uma melodia simples e hipnótica, a música vai flutuando longamente pelas suaves notas sintetizadas que percorrem a música por mais de vinte e cinco minutos (um quarto do álbum, aproximadamente). Ainda que possa não fazer sentido de um ponto de vista individual, a quinta faixa fornece a viagem de relaxamento e descompressão perfeita quando se ouve o álbum como um todo, sobretudo devido à forma como contrasta com a emotividade extrema que é presenciada na primeira metade do álbum.
Se é verdade que a compreensão de Filosofem enquanto obra passa obrigatoriamente pela segunda metade do álbum, é inegável que os três clássicos que iniciam o trabalho valem muito por si próprios. A hipnótica Burzum (a primeira faixa escrita por Varg em Agosto de 1991 ainda com a designação de Uruk-Hai) é um dos momentos incontornáveis em todo o movimento norueguês, pelas razões já largamente mencionadas e pela forma como simboliza todo o conceito de Ambient Black Metal. Da mesma forma, Jesu Død lembra algum do trabalho mais rápido de Varg e constitui-se como outra obra-prima, ainda que de uma forma distinta das outras duas faixas mais lentas, o que prova a capacidade de Varg de compor temas de enorme qualidade, com considerável variedade entre si. Depois destes dois monumentos, a terceira faixa é uma “overdose” emocional de sentimentos melancólicos e profundos. Devido a estas características, Beholding The Daughters Of The Firmament acaba por ter óbvias influências em vertentes como o Depressive Black Metal sendo que a sua influência só é ultrapassada em matéria de importância pelo facto de ser o momento alto num álbum que nunca sai de um patamar de excelência.
Um paradoxo em forma de obra de arte, onde a simplicidade quase inocente dos meios contrasta largamente com tudo aquilo que é atingido pela experiência que vai, obviamente, muito além da sua execução per se. As emoções atingidas e os “lugares” são um reflexo de um álbum que “filosofa” através da obra musical por temas cuja complexidade e profundidade retractam uma jornada interior que se processa permanentemente.
Há semelhança do que acontecera no passado com os primeiros lançamentos de Burzum, a criação de Varg lançada em 1996 constitui-se como mais uma demonstração de excelência de Burzum. Não como um isolado momento de grandeza, mas como mais uma prova sistemática de como Burzum se constitui como banda seminal do Black Metal moderno em várias das suas vertentes, mantendo-se ao mesmo tempo actual e não valendo apenas pela ideia “curiosa” de clássico… e sobretudo fazendo-o através de uma série de lançamentos onde é muito complicado encontrar momentos abaixo do patamar de grandiosidade.
Acima de tudo uma obra total que usa o Black Metal como instrumento para deixar fluir uma experiência que transforma a audição numa das melhores formas de visitar caminhos onde o sentimento niilista impera, não de forma puramente destrutiva mas numa perspectiva de constante indagação perante tão funesta existência.