A fria noite lisboeta do recém-chegado mês de novembro pedia calor humano. À República da Música, deslocou-se uma multidão de proggers, com ouvidos sedentos de sonoridades intricadas. Como nem sempre existe balanço no universo, quis o infortúnio que, nesta noite que prometia ser mais do que foi, encontrassem mais calor e menos música do que esperavam.
Em cartaz, os icónicos Leprous, com o seu catálogo recheado de êxitos e um histórico de prestações ao vivo absolutamente inebriantes, não tendo esta noite sido exceção. Consigo traziam os compatriotas Gåte, nome gigante do folk progressivo, não menos impressionantes ao vivo. A abrir, os finlandeses Royal Sorrow prometiam mostrar a nova fase da banda, depois da mudança de nome, na sua vertente mais progressiva.
Infelizmente, o autocarro de tour destes últimos avariou em Espanha, impedindo a banda de chegar a tempo a Lisboa para atuar. Como um azar nunca vem só, parte do backline dos Gåte e o merch das bandas também vinham nesse veículo. A uma sala praticamente esgotada e já cheia desde a hora marcada (20h15), um representante da organização, completamente alheia aos problemas dessa noite, comunicou precisamente esse estado de situação, quando o público já aguardava há cerca de uma hora.
Apesar da promessa que os Gåte iriam tocar e Leprous não encurtariam o set, foi preciso esperar até quase às 23 horas para se ouvir finalmente música numa sala onde a impaciência por vezes se manifestava audivelmente, não só pela ausência de bandas em palco, mas também pelo desconforto crescente com o calor, que o ar condicionado parcialmente avariado não conseguiu controlar.
Ainda assim, quando finalmente a música trouxe a sua magia, foi com energia que bandas e público se entregaram, para uma noite que fica na história também pelos maus motivos, mas sobretudo pelas incríveis prestações das bandas, que a seguir detalhamos.

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Gåte
Faltavam dez minutos para as 23 horas, quando os Gåte subiram a palco. A correria e visível stress da banda que, momentos antes, montava apressadamente tudo em palco, deu lugar a um quinteto de músicos enérgicos, profissionais e sorridentes, onde Magnus Børmark se destacou como o mais irrequieto. À entrada a capella da sublime vocalista Gunnhild Sundli, juntou-se um loop eletrónico, ajudado pelas palmas do público, num crescendo que continuou com a entrada da bateria e, ao fim de dois minutos, explodiu num refrão majestoso, onde as raízes do folk se fundiram com a modernidade da eletrónica, numa fusão que deixou siderada a plateia.
Depois de agradecerem aos presentes pela paciência em esperar, seguiu-se Oskorsreia, estreada ao vivo apenas cinco dias antes em Rennes, com uma entrega em palco verdadeiramente cativante, à qual o público respondeu em igual medida. Antes de voltar ao seu mais recente trabalho, houve ainda tempo para viajar mais de duas décadas atrás, até Jomfruva Ingebjør do álbum Iselilja, onde a nyckelharpa de John Stenersen teve honras de abertura, à qual se juntou um groove de baixo delicioso do Mats Paulsen. Depois do verso mais calmo, a música crepita num refrão enérgico, com a bateria de Jon Schärer especialmente furiosa, até a música se despedir no breakdown final, com um grito sobre-humano da vocalista.
O momento alto do concerto foi também o seu canto de cisne, com o tema título do álbum Ulveham, entrada norueguesa na Eurovisão 2024. Com um refrão inacreditavelmente contagiante, a música foi tocada na sua versão completa de quase seis minutos, levando a sala ao êxtase naquela amostra concentrada de todos os pontos fortes da banda. Apenas vinte minutos depois de subirem a palco, a prematura mas inevitável despedida dos Gåte deixou vontade de os voltar a ver e inveja de quem podia, no dia seguinte no Porto, assistir ao concerto completo.
Setlist: Skarvane | Oskorsreia | Jomfruva Ingebjør | Ulveham
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Leprous
Quando o número 23 se repetia nas horas e nos minutos, foi a vez dos Leprous chamarem ao palco casa. Apesar de nunca caminharem sozinhos, foi com Silently Walking Alone que deram o tiro de partida. Foi imediatamente perceptível que a banda atravessa provavelmente a sua melhor forma em palco, com todos os músicos exímios na sua prestação, especialmente a voz absolutamente divinal e sempre afinada de Einar Solberg. Depois de iluminarem os olhos dos fãs com Illuminate, o Einar perguntou há quanto tempo estávamos presos de pé naquela sala, antes de Stuck roubar ao público a voz, cantando o refrão em uníssono com a banda.
Depois do estrondoso breakdown final, o quinteto norueguês imbuiu o espírito de halloween e disfarçou-se de noite. Nighttime Disguise, com o seu riff hipnótico, cadência desconcertante, fills de bateria deliciosos e exploração de todo o range vocal do Einar (com os screams cada vez melhores), foi um dos momentos cimeiros da atuação. Apesar de haver vozes na plateia a cantar em todas as músicas, nalgumas a sua manifestação foi mais evidente, como em Below, a balada emotiva que evoca olhares humedecidos.
Logo de seguida, uma lição sobre tentar não controlar tudo com Alleviate, com os agudos do vocalista a subirem a níveis de ridícula perfeição. Seguiram-se dois momentos únicos, que levaram os fãs a novos níveis de interação. Primeiro, com a reinterpretação brilhante da icónica Take On Me dos A-Ha, originalmente produzida num episódio de Covers On The Spot do canal de YouTube da Musora, com participação audível de toda a sala. Mas o melhor estava reservado para um grupo restrito de fãs, que subiram a palco na música seguinte, Faceless, para juntamente com os Leprous cantarem as linhas “never go alone, never the unknown” repetidamente, um projeto de interação que correu na perfeição e tornou inesquecível a noite daquele grupo de 16 pessoas.
De regresso aos riffs imortais de Tor Oddmund Suhrke, The Price foi o êxito que se seguiu, com o “aa ah-aaa, aaa ah” a voltar a juntar as vozes de toda a sala. Os momentos de maior peso do concerto foram os dois temas seguintes, com Like A Sunken Ship afundar os acordes em frequências mais graves, e Rewind a obrigar a incansável máquina humana que é Baard Kolstad a acelerar o ritmo, voltando também os screams. Pausa para respirar, com a emotiva balada Castaway Angels a ser precedida de uma introdução com Einar ao piano, na música mais doce de toda a noite.
Provavelmente o single com maior êxito comercial da banda, From The Flame seguiu-se sem pausa, para um último fôlego de energia do público, a cantar e bater palmas a compasso. O habitual encore foi feito sem a saída de banda de palco, com Atonement do álbum que a banda apresentava, Melodies Of Atonement, a provar que o brilhantismo de composição ainda lhes corre nas veias. A fechar, o final apoteótico da The Sky Is Red, cujo último suspiro ecoou nas paredes da República da Música quando a uma hora da manhã estava quase a chegar. Apesar de todos os constrangimentos desta noite e da sauna sonora que era a sala àquela hora, foram dois concertos perfeitos na sua execução, que nos fazem contar dias para voltar a ver ambas as bandas em solo luso.
Setlist: Silently Walking Alone | Illuminate | Stuck | Nighttime Disguise | Below | Alleviate | Take On Me [cover A‐Ha] | Faceless [c/ coro de fãs] | The Price | Like A Sunken Ship | Rewind | Castaway Angels | From The Flame | Atonement | The Sky Is Red [outro]














































