Halloween United. O coração do lobo na negra tranquilidade da noite sinistra

Fotos: Marina Silva | Texto: David Matos | Agradecimentos: Free Music

Há tradições que evocam elas próprias tradições, como uma serpente que se esgueira pelo fio do tempo, numa sinuosa linha que une o passado, o presente e o futuro. Do Samhain ao Halloween, à anual celebração dos Moonspell no dia 31 de outubro, 2025 fez cumprir mais um ritual dos lendários lobos lusitanos. No dia em que o seu aclamado álbum de estreia Wolfheart soprava trinta velas, fãs de todas as idades, da velha guarda aos jovens, dos homens de barba rija às mulheres de contornos delicados, todos acorreram ao LAV, para participar na celebração das celebrações.

A acompanhar os lobos, os gigantes suecos Dark Tranquillity, pioneiros do death metal melódico encabeçados pelo mítico Mikael Stanne, amigo de Fernando Ribeiro. Consigo trouxeram também um trintão, o álbum The Gallery, mas percorreram grande parte da discografia com clássico atrás de clássico, num dos seus melhores concertos em território nacional.

Com honras de abertura, os portugueses Sinistro são uma força consolidada do metal nacional, com crescente projeção e a construir uma discografia sólida e de contornos magistrais. Como seria expectável, estiveram à altura do desafio, fazendo ecoar nas paredes do LAV o seu doom trágico e melancólico.

Quem infelizmente não teve à altura foi a própria sala. Uma avaria no ar condicionado tornou um LAV apinhado de gente numa sauna involuntária, onde a certo ponto tudo era suor e sufoco. A festa fez-se, a celebração foi memorável, mas as condições impediram este pedaço de história de ser ainda mais marcante e, fora isso, imaculado, como poderão deduzir pelas minhas palavras sobre os concertos, que se seguem.

✦✦✦

Sinistro

Após breves minutos de som ambiente condizentemente sinistro, emergem em palco, ao som de Ruas Desertas e com pontualidade suíça, os portugueses Sinistro, na metade das 20 horas. As teclas celestiais deram lugar ao retumbante riff de abertura de Partida, que ecoou nas paredes do LAV qual tremendo trovão de doom. Após este tiro de partida, semente singular do álbum Semente, a restante meia hora teve como protagonista sonoro o álbum Vértice, o mais recente trabalho da banda e o primeiro com a vocalista Priscila da Costa.

Com uma voz poderosa, segura e com laivos de fado, Priscila declamou Elegia, onde se destaca o riff introdutório de Ricardo Matias e a intensidade do refrão, onde a sombra dos instantes pairou sobre uma plateia onde não havia espaço para distâncias consentidas, pois a lotação da sala já estava a atingir o seu apogeu. Depois de um “somos os Sinistro de Lisboa”, seguiu-se O Equivocado, com teclados mais dominantes e um doom mais arrastado, onde a bateria de Paulo Lafaia marca ritmo numa lentidão implacável e hipnotizante.

O momento culminante do concerto foi a despedida, com a obra-prima de seu nome Templo das Lágrimas. A letra de sofrida angústia encontra um instrumental de opressiva melancolia, onde a entrega da banda encarnou a dor e nem as paredes ficaram indiferentes à avalanche de emoção. Nos últimos suspiros da música, os músicos abandonaram o palco um a um, ficando apenas Priscila ao centro até o som se calar, e com um “obrigada” finalmente recolher, deixando no ar o som de guitarra portuguesa.

Setlist: Ruas Desertas [introdução em backing track] | Partida | Elegia | O Equivocado | Templo Das Lágrimas

✦✦✦

Dark Tranquillity

Vinte minutos passavam das 21 horas, quando numa LAV completamente lotada e crescentemente suada, Mikael Stanne e companhia interpretaram Punish My Heaven, o primeiro de muitos clássicos num concerto pautado pela energia omnipresente. Sempre muito comunicativo, o frontman desejou feliz halloween à negra massa humana, continuando o festejo dos trinta anos do lançamento de The Gallery com The Emptiness From Which I Fed. O trio de temas de abertura deste álbum ficou completo com Lethe, provavelmente o primeiro grande êxito da banda, um hino melancólico dos primórdios do death metal melódico.

Saltando uma década num piscar de olhos, seguiu-se a vez do álbum Character brilhar, com The New Build a encabeçar um quarteto de temas de um dos mais amados registos discográficos dos suecos. Logo de seguida, Through Smudged Lenses evocou a destruição pelo fogo, aquecendo ainda mais uma sala já fervente. Para acalmar um pouco o ritmo desta locomotiva de melodeath, My Negation fez brilhar o lado mais melódico da banda, para logo de seguida explodir de novo no lendário single Lost To Apathy, onde o público se manifestou mais entusiasticamente.

A segunda metade do concerto arrancou com mais um salto de gigante, desta feita de quase duas décadas até ao Endtime Signals de 2024. Not Nothing trouxe consigo a voz mais melódica do Mikael, com os teclados de Martin Brändström a ganharem relevo adicional. Mas foi com o tema título de Atoma que o público entrou em êxtase, cantando com a banda até ao fim do nosso tempo e para o resto das nossas vidas.

O vulcão humano que era a plateia voltou a entrar em ebulição com a ferocidade de Unforgivable, sem piedade para com os perdidos. E como um velho amigo sonoro, a introdução eletrónica de Terminus (Where Death Is Most Alive) continuou o momento apoteótico, com a nostalgia da obra-prima que é Fiction a embrenhar-se na alma. Já o único momento dedicado a Moment foi com Phantom Days, onde a fúria do fogo do entendimento não se tornou menos real quando sentida pelos fãs exultantes, que deram uma bandeira de Portugal ao vocalista.

Com um dos mais icónicos riffs da história do death metal melódico, ThereIn entrou pela sala adentro, com o refrão cantado a plenos pulmões por grande parte da moldura humana. Mas com a mesma velocidade que chegou e fúria com que perdurou, o concerto acenou adeus, implorando para que a coroa de miséria não caísse sobre nós. Mas caiu, e após a emotiva Misery’s Crown, a banda despediu-se quando passavam 35 minutos das 22 horas, prometendo regressar em breve.

Setlist: Punish My Heaven | The Emptiness From Which I Fed | Lethe | The New Build | Through Smudged Lenses | My Negation | Lost To Apathy | Not Nothing | Atoma | Unforgivable | Terminus (Where Death Is Most Alive) | Phantom Days | ThereIn | Misery’s Crown

✦✦✦

Moonspell

Nesta grande festa de halloween, não se pode dizer que os Moonspell fossem a cereja no topo do bolo. Eles eram o próprio bolo, pelo qual a maioria das pessoas estava ali. Já o aniversariante era Wolfheart, álbum de estreia dos gigantes lusitanos, que completava três décadas de existência. Um a um, os membros com coração de lobo entraram em palco, vestindo Fernando Ribeiro as peles do temível predador, para Wolfshade dar início à mascarada mitológica.

Love Crimes continuou a viagem pelo clássico álbum, com Eduarda Soeiro a ter o primeiro de vários momentos de protagonismo ao longo do concerto. Of Dream And Drama realçou o lado mais gótico tradicional dos Moonspell, que fizeram de seguida uma pausa no Wolfheart para recuarem ainda mais no tempo. Serpent Angel mergulhou o LAV numa avassaladora onda de black metal, para logo de seguida o primeiro andamento de Tenebrarum Oratorium o fundir com notas orientais e um curto espetáculo de fogo.

Numa sala sufocante, Lua d’Inverno fez respirar o público, que se preparava para os dois momentos mais fisicamente exigentes da noite. Trebaruna é mais do que um hino folk, é uma verdadeira celebração onde banda e público comungam nas crenças da mitologia lusitana. O borbulhante caldeirão humano ainda vibrou mais com Ataegina, que continuou no mesmo registo e transformou o LAV no palco de uma grande festa pagã.

Mas a noite era de halloween, e os vampiros já espreitavam desde o cair das trevas. Personificando um, Fernando Ribeiro entrou vestido a rigor, num momento de vincada teatralidade, com o fogo a voltar a grassar as fileiras fronteiriças do palco. Depois do público clamar Moonspell, a viagem por Wolfheart continuou com An Erotic Alchemy, em novo momento de destaque para a Eduarda dos Glasya, com o teclado de Pedro Paixão a dar notas finais de melancolia.

O álbum primogénito fechou o seu ciclo com o hino dos hinos, Alma Mater, com o regresso da glória antiga a marejar os olhos de novos e velhos fãs; por mais vezes que se assista, este momento nos concertos de Moonspell é sempre como entrar numa dimensão alternativa, num elevar da comunhão entre banda e público, onde a uma só alma todos cantam com uma emoção arrepiante.

Interpretado na íntegra que estava o álbum em destaque, foi a vez da banda partir para clássicos de Irreligious na reta final da noite. A dose de ópio foi tão intensa que Opium apagou todas as luzes, tendo que ser repetida quando finalmente a sala recuperou a energia, trazendo consigo o tão necessário mas irremediavelmente tardio ar condicionado. Awake! não acordou ninguém, porque toda a gente estava ligada à corrente, como provou o mosh pit na sempre intensa e misteriosa Mephisto.

O ritual dos lobos termina sempre sob o feitiço da lua, com a loucura de Full Moon Madness a arrancar uivos da gigante alcateia. Uivante foi também a guitarra de Ricardo Amorim, sempre exímia, mas especialmente hipnotizante no solo final. Os Moonspell agradeceram e despediram-se, mas voltaram ainda para um encore em jeito de homenagem, lembrando o príncipe das trevas Ozzy Osbourne com Mr. Crowley, que contou com o guitarrista convidado Johan Reinholdz dos Dark Tranquillity.

Passavam 45 minutos da meia-noite quando os concertos chegaram ao fim, selando com nostalgia, prestígio e muita emoção uma noite que fica para a história da banda e dos fãs. Um dia, vamos sentir saudades destas noites ritualescas, onde sonhamos com a maior das bandas portuguesas no que à música pesada diz respeito.

Setlist: Wolfshade (A Werewolf Masquerade) | Love Crimes | … Of Dream And Drama (Midnight Ride) | Serpent Angel | Tenebrarum Oratorium (Andamento I) | Lua d’Inverno | Trebaruna | Ataegina | Vampiria | An Erotic Alchemy | Alma Mater | Opium | Awake! | Mephisto | Full Moon Madness | Mr. Crowley [cover Ozzy Osbourne]