Eivør + Ásgeir na República da Música. A simbiótica fusão entre vozes celestiais, eletrónica minimalista e nordic noir

Fotos: Nuno Bernardo | Texto: David Matos | Agradecimentos: Free Music

Em pleno feriado de 5 de outubro, implantou-se na República da Música uma noite de inolvidáveis desígnios, onde uma multidão melómana participou num mesmerizante ritual, na encruzilhada entre o folk nórdico, a eletrónica negra e o pop moderno. Em cartaz, a estreia em Lisboa de Eivør, um ícone da música faroesa, cujo dom para a escrita de músicas impactantes apenas encontra rival na sua assombrosa voz. Consigo das Ilhas Faroé trouxe a irmã Elinborg, convergente nos dotes artísticos, cujo disco de estreia Í Ævir será lançado no final deste mês. Este triângulo de impressionantes artistas setentrionais completou-se com o islandês Ásgeir, detentor de uma voz onde uma delicadeza angelical encontra solidez harmónica. Juntos transformaram esta numa daquelas noites que teimam em persistir na memória, onde a quietude minimalista, o folk animalesco e ritmos invocadores de movimento encontraram o seu momento.

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Elinborg

Precisamente a meio da vigésima hora do dia, as luzes de uma sala já bem composta sucumbiram à escuridão. Pela porta do backstage, um baterista e um teclista entraram, perante aplausos tímidos, que ganharam força quando a própria Elinborg os seguiu. A atmosfera inicial emanava paz, enquanto no pano de fundo um ritmo eletrónico se ia formando. Momentos depois, seguiu-se o ritmo da bateria, numa composição que ia ganhando camadas. Toda esta paisagem sonora era recortada por uma voz que viajava entre cativante doçura e imponente poderio. Elinborg brilhou pelo sublime controlo vocal, surpreendeu pela versatilidade e agarrou a plateia com a sua simpatia entre músicas, agradecendo aos presentes e explicando o conceito de algumas músicas.

Depois da entrada mais ritmada e de uma segunda música mais calma e aconchegante, não significasse Trøyst “conforto”, Elinborg pega na guitarra e a hipnótica Sjórok mergulhou a plateia numa sonoridade de misteriosa eletrónica contagiante. Merecidos aplausos depois, a artista faroesa anunciou o seu álbum de estreia para 31 de outubro deste ano, da qual tocou em seguida um tema sobre amor, Kærleikin, de essência etérea e com luzes vermelhas a condizer. A despedida deu-se com Blóð, primeiro single do referido álbum, quatro minutos de pura magia onde a nostalgia eletrónica dos synths da década de 80 encontra o lado mais negro do pop moderno. Pecaminosamente curto, o concerto chegou ao fim, deixando um público manifestamente rendido sedento de mais.

Setlist: [desconhecida] | Trøyst | Sjórok | Kærleikin | Blóð

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Ásgeir

Passavam dez minutos das 21 horas quando um relaxado Ásgeir se esgueirou para palco, sentando-se ao piano e tratando o microfone por tu. Uma composição ganhou vida por entre eletrónica minimalista dançável e harmonias vocais, preparando o público para um concerto de atmosfera descontraída e sonhadora. Falando de sonhos, seguiu-se Dreaming, que entre a doçura da voz, a calma sonorizada e as luzes azuis e violeta em ritmo lento, relaxou o público. Após este par inicial de temas, Ásgeir levantou-se e trocou as teclas pela guitarra, para nos apresentar a comovente balada Julia, tema título do seu próximo álbum, a sair em 2026.

Uma afinação depois, o regresso ao passado com Dýrð Í Dauðaþögn, do seu álbum de estreia. Apesar dos polos discográficos opostos e do inglês dar lugar ao islandês, a transição foi suave. Mais sentida foi a diferença para Fenris Wheel, primeiro single do referido futuro álbum, onde o country pop espreitou alegremente. A incursão por Julia continuou com Sugar Clouds, com Ásgeir de volta ao piano e cuja letra “somewhere in the distance, in the clouds” era a descrição perfeita do estado de espírito da tranquila plateia. Uma curta incursão no islandês depois e chegámos ao derradeiro capítulo do concerto, a apropriadamente intitulada Going Home, onde o electropop e o dream pop se fundiram para remeter quem assistia a um transe onírico.

Setlist: [desconhecida] | Dreaming | Julia | Dýrð Í Dauðaþögn | Ferris Wheel | Sugar Clouds | [desconhecida] | Going Home

 

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Eivør

Numa República da Música apinhada, as ondas sonoras da música ambiente etérea colidiam com fotões de frequência azul escura. Extinta essa luz, surgiu uma batida suave e constante, à qual se juntou um piano magnético. Com eles, a inconfundível Eivør subiu a palco, sorridente e dançante, para com a configuração mais suave da sua voz entoar Jarðartrá. Acolhendo entre mãos um tradicional tambor xamânico sámi, a icónica artista das Ilhas Faroé tocou Salt, causando o primeiro momento de movimento ebulitivo na plateia.

Acompanhada de músicos de excelência, Eivør provou beber da mesma fonte de simpatia da sua irmã, interagindo com o público com uma elegância encantadora. Depois de um “obrigada, boa noite” em excelente português, Gullspunnin levou-a a estrear a guitarra, que se fundiu com um piano delicado e uma voz celestial. O ritmo intensificou-se com Í Tokuni, com vocalizações entre o experimental e o tradicional nórdico, numa alucinante viagem ao ritmo de uma eletrónica desconcertante, que levou o auditório ao êxtase.

Impulsionada na fama pela banda sonora da série The Last Kingdom, Eivør dedicou-lhe uma trilogia de espaços no alinhamento, primeiro com Lívstræðrir, depois com o tema título e a terminar com Hymn 49, esta última mais assombrosa e minimalista, com o teclista a trocar momentaneamente para o violoncelo. Não esquecendo as suas humildes origens, a autora entoou de seguida dois exemplos primordiais da sua carreira, com Boxes e So Close To Being Free, esta última geradora de uma apoteose coletiva, quando explode num rock pesado depois da primeira parte mais contida.

Tão importante quanto não esquecer as origens, é prestar homenagem aos que vieram antes de nós; foi isso que Eivør fez quando decidiu interpretar Us And Them, dos Pink Floyd, com a preciosa ajuda de Ásgeir. Após o longo hino pulsante que é o tema título do seu mais recente álbum, Enn, também a sua irmã Elinborg regressou a palco, para juntas nos presentearem com uma execução incrivelmente intensa de Upp Úr Øskuni. Mesmo ao cair do pano, o tambor sámi voltou para Trøllabundin nos arrebatar em todo o seu esplendor de folk nórdico. A noite não terminaria sem um encore transcendental, com uma arrepiante entrega vocal em Falling Free, um momento inesquecível que corou uma noite já de si rainha.

Setlist: Jarðartrá | Salt | Gullspunnin | Í Tokuni | Lívstræðrir | The Last Kingdom | Hymn 49 | Let It Come | Boxes | So Close To Being Free | Us And Them [cover de Pink Floyd, c/ Ásgeir] | Enn | Upp Úr Øskuni [c/ Elinborg] | Trøllabundin | [encore] Falling Free