Fotografia: Ana Ribeiro (Grifus) | Texto: Margarida Dâmaso
Na noite de 28 de Junho, marcada pela comemoração do Stonewall e pelo orgulho LGBTI+, o Musicbox foi o palco de uma celebração única, onde a música se tornou um reflexo das tensões e esperanças de um mundo em constante mudança. O calor abrasador que tomava Lisboa parecia não só reflectir a intensidade do dia, mas também o clima emocional de uma noite voltada para o interior, em que a energia coletiva se fundiu com as palavras e as notas.
Catarina Branco: A solitária profundidade
O concerto de Catarina Branco foi marcado por um tom introspectivo, no qual a artista se entregou completamente às suas canções, com poucas pausas. O público sentiu o peso da sua voz, especialmente em temas como “Já ’tou num poço” e “Solitário Sudoku”, duas faixas do seu último álbum Vida Plena (2024), que exploram a solidão e a busca por respostas num mundo repleto de incertezas.
A cantora também tocou “Não tens razão”, tema emblemático da sua carreira que raramente é interpretado ao vivo, e “Quando é que se muda a cama?”. Mas foi na mudança de registo e após uma sequência onde apenas teclas dominaram o palco, que a sua viola fez a entrada e, com um dedilhado suave, a noite prosseguiu com uma homenagem à música portuguesa, com o tema “Rugas” de António Variações, ícone LGBTI+ que tanto fez pela cena musical portuguesa, e que Catarina não hesitou em evocar.
A sua viola acompanhou ainda uma reflexão política: «Sou privilegiada porque não estou na faixa de Gaza, e se alguém aqui não concordar com isso, que tome juízo», disse, com a voz carregada de emoção. A sua postura, directa e sem rodeios, não fugiu à pressão de um contexto global tenso. Para fechar, duas canções do último disco, “Conto até 10” e “Cintalho”, que trouxe um toque de animação e um coro de palmas, reforçando a energia do Pride Day.
Pip Marinho: A marcha do orgulho rápida e sentida
Pip Marinho, que assistia ao concerto, subiu de seguida a palco, e tirando a sua setlist do bolso da camisa trouxe uma mistura de energia e reflexão. Recorrendo ao humor, partilhou «Não há tempo a perder, é a marcha do orgulho mais rápida de sempre», referindo-se aos concertos de 40 minutos desta noite, sem pausas. Dirigindo as suas canções «para quem está farto de que o mundo seja um local de homem branco, geralmente hetero cis… mas não sempre», construiu como uma meditação sobre o vazio de um mundo que ainda insiste em ser governado por normas opressivas. «Temos de brincar, porque o mundo é uma merda e está cheio de bullies», disse, com um sorriso.
A canção “Cosmic Silence”, dedicada ao movimento enby (não binário), constitui uma abordagem emocional sobre a identidade de género e o reconhecimento de uma nova forma de existência. Pip também falou da sua relação com o irmão, que inspirou a composição de uma das suas canções, um momento intimista e cheio de significado. A performance seguiu com uma crítica histórica, com a canção “Pata de Negreiro”, de Vitorino Salomé, ele próprio representante da hegemonia cis-hetero-branco, uma reflexão sobre os erros do passado, incluindo os descobrimentos.
Surma: Entre o celestial e o underworld
A noite terminou com Surma, uma artista que tem inovado a música portuguesa pela sua abordagem única, onde a experimentação sonora encontra uma profundidade emocional. Sozinha no palco, com uma gama de instrumentos à sua disposição, Surma trouxe uma atmosfera enigmática, algo entre o celestial e o underworld. As suas canções, como “Masaai” e outras faixas mais pesadas, mergulharam o público num conjunto de psicadelia a la Stranger Things, misturado com a ternura, similar às suas grandes inspirações como Björk. As últimas músicas foram acompanhadas de uma energia intensa e convidativa à união.
Surma não costuma manter grandes diálogos com o público, mas durante a sua performance deixou claro o seu sentimento: «A música transmite muito do que se passa no mundo… de merda em que vivemos», disse, com a sinceridade de quem não tem medo de olhar de frente para a realidade. A sua capacidade de criar uma conexão profunda, mesmo sem muitas palavras, fez do seu concerto o ponto culminante da noite.
O evento foi um reflexo claro da diversidade e complexidade do panorama musical português. Com artistas como Catarina Branco, Pip Marinho e Surma, o Musicbox conseguiu ser não só um palco de celebração do Pride Day, mas também um espaço de reflexão e resistência. A música que se ouviu naquelas horas não foi apenas um conjunto de acordes e palavras, mas um grito de quem está cansado das injustiças e desigualdades e que ainda acredita na força da arte para mudar o mundo.
A noite, mesmo com o calor, foi de uma frescura indescritível para quem procurava algo mais do que a superficialidade das comemorações. Aqui, o orgulho foi vivido de forma autêntica, com a sinceridade de quem sabe que a luta continua, em união.