Bizarra Locomotiva no Sabotage Club. Duas noites de cheiro a máquinas

As Reverence Underground Sessions foram o pretexto para uma dupla paragem da Bizarra Locomotiva pelo Sabotage em Lisboa. A divisão era simples: na primeira noite a discografia seria revista até 2003 e na segunda noite tudo o que fosse daí em diante.

Dia 1

Por ser de maior raridade nos dias que correm (ainda para mais depois do lançamento de Mortuário no ano passado) a revisita aos primeiros tempos do histórico colectivo lisboeta revestia-se de especial interesse. Afinal, não é todos os dias que dois verdadeiros marcos como o auto-intitulado primeiro álbum e Bestiário têm tamanhas honras de ocupação num alinhamento crescentemente difícil de fazer devido ao longo percurso de BL.

Foi facilmente aferível o comprometimento com os primórdios quando a icónica “Sobre Os Teus Ombros” abriu caminho para “Growth Pains” naquela que será porventura a melhor maneira de abrir qualquer concerto da locomotiva desvairada. A partir daí o desfilar de clássicos e onde se destacam “Apêndices”, “Candelabro do Amor” e “Ultraviolência” com uma roupagem mais condizente com os trilhos desbravados pela banda nos últimos anos. Pelo meio esse mamute que é “Grifos de Deus” fez notar que Bestiário é também um clássico de pleno direito.

“Fear Now” – uma espécie de ex-libris de Bizarra – seguiu um caminho ruidoso e disforme antes de “Câmara Ardente” inundar o ar com um “cheiro a mortulho” que apesar de tudo adocicou as arestas de uma actuação em trote imparável até “Cavalo Alado” e o saudoso regresso de “Cada Homem”.

Já em registo de encore a surpresa maior foi a cover de “Se Me Amas” antes do encerramento habitual com “O Escaravelho” já em plena apoteose. O momento final com uma cover de “Purple Rain” do recentemente falecido Prince serve bem para demonstrar as múltiplas influências e a riqueza discográfica que atravessam o colectivo forjado nas franjas lisboetas.

Dia 2

No segundo dia o Sabotage encheu-se ainda mais para assistir à segunda parte desta “mini-residência” que trouxe ao Cais do Sodré um cheiro a máquinas e fumos tóxicos ainda assim bem mais convidativo que os perfumes que nos dias que correm empestam ruas cor-de-rosa e afins.

Se no dia anterior o começo já tinha sido um dos pontos altos, quando se começa com aquela que é a mais demonstrativa face da “nova” Bizarra Locomotiva, a dose repetiu-se: “Procissão dos Édipos” é um monstro gigante e de cara disforme sem paralelo nos territórios industriais. A lírica agreste e aliterada oferece ao tema uma tensão ainda maior que só é libertada depois dos “sinos tocarem”. Ainda mal refeitas as forças e já Ódio fazia uma aparição com o combo habitual de “Desgraçado de Bordo” e “Buraco Negro” a revelarem o momento mais cru da banda.

Os grandes momentos do último trabalho seriam bem mais lá para a frente visto que antes houve direito a momentos incontornáveis como “O Frio”, o épico “Ergástulo” ou “Coisa Morta” – tema há muito tempo e injustamente afastado dos alinhamentos. O frenético “Egodescentralizado” e o coro de “Engodo” deram lugar a “Sudário de Escamas”, quiçá o tema mais conseguido de Mortuário onde a máquina fica novamente mais lenta e arrasta-se por caminhos que parecem definir muito do que é BL hoje em dia. Já no final destaque para “Remorso”, também um regresso há muito esperado, antes de “Anjo Exilado” dar oportunidade de intervenção às muitas gargantas que se apinhavam no Sabotage.

O encore fez-se em ritmo mais acelerado com “Na Febre de Ícaro” antes da insidiosa “Moscas”. A única repetição deu-se com “O Escaravelho” já em pleno esgotamento de baterias. Pode-se afirmar sem pejo que a aposta foi ganha de imediato com o saudoso “Sobre os teus Ombros”.

Texto: Filipe Adão
Fotografia: Joana Jesus/Wav Magazine