Foi por entre as brumas da húmida noite de 17 de Julho de 2015, na qual uma chuva miudinha teimava em cair, que veio à memória da ruidosa equipa os caminhos trilhados no ano transacto, rumo à Praia de Quiaios. Bilheteira visitada e tenda montada, ouviu-se o saudoso uivo do lobo; era tempo de assistir ao arranque da terceira edição do WoodRock Festival. Abaixo se testemunha o que se passou, mas que sucintamente se pode resumir em três pontos: menor afluência, maior oferta, a mesma (boa) qualidade. E claro, um ponto extra óbvio: muito, e muito bom, rock!
Dia 1
Os concertos no primeiro dia tiveram início quando passavam 13 minutos das 22 horas; um supersticioso diria que foi o mal-afamado número que trouxe um azar fatal a uma das cordas de Martim Seabra, o virtuoso e estiloso guitarrista dos The Zanibar Aliens. Curiosamente, esta foi a segunda vez que a Ruído Sonoro registou um concerto desta banda, ambas a abrir um festival (a primeira vez foi na 1ª edição do Coz Village Fest).
Sobre o concerto em si, pouco a dizer, pois pouco era também o público ainda, rondando a meia centena de pessoas. Jovens, talentosos, bastante promissores, mais coesos do que no ano passado e com temas originais que, apesar da forte influência do rock clássico na onda de Led Zeppelin, Deep Purple ou The Doors, têm um toque especial na composição que os torna fáceis de recordar. Destaques para Death Is A Celebration, aquela balada lá para o meio com um final em crescendo e para a despedida com New Man. A continuar neste caminho, palcos maiores aguardam estes alienígenas de pés bem assentes na terra.
Saltando de jovens em jovens promissores, seguiram-se os The Black Wizards, que se apresentaram num trio 66,6% feminino, com sonoridade de blues rock e uma pincelada psicadélica; mais uns a juntarem-se ao recente revivalismo deste tipo de som, à imagem dos Graveyard, Kadavar ou Blues Pills. Abrindo com Back In The Town (com a guitarra demasiado baixa para o público cá em baixo), primeiro tema do seu recente EP de estreia, Fuzzadelic, debitaram meia dúzia de músicas de qualidade suficiente para augurar um bom álbum de estreia (e já que a banda lançou um crowdfunding para tal, porque não ajudar?).
Com o ponto alto do concerto em I Don’t Belong Here, numa progressão hipnotizante, foi a voz da Joana Brito que mais sobressaiu ao longo de toda a actuação. Foi bem acompanhada pela Helena e pelo Paulo, isso é inquestionável; mas numa banda que ainda procura a sua identidade, com uma sonoridade demasiado colada às influências musicais, neste momento é aquela voz simultaneamente suave e poderosa que dá o maior recheio ao bolo. Despediram-se passavam 11 minutos da meia noite, deixando no ar aquele entusiasmante cheiro a “novo antigo”. E já agora, ficava ali a matar um órgão, bem ao estilo dos emergentes suecos Luciferian Light Orchestra.
Após um mentiroso uivo do lobo, que nos chamou para a sua toca ainda a banda estava nos últimos acertos, lá arrancou o brilhante concerto dos Asimov. Com uma atitude invejável e autenticidade naquilo que fazem, é raro ver duos que encham desta forma um palco, ainda para mais estando-se perante um projecto com menos de uma mão cheia de anos! Com épicos que podem ser descritos como stoner progressivo, destacou-se, além da presença em palco do vocalista e guitarrista Carlos Ferreira (que não percebi se dançava ou lutava com a guitarra), a cadência de cariz hipnotizador dos longos temas, com destaque para On Through The Night e Running Around In Circles / This City Is Dead.
Ao som de músicas mais instrumentais que cantadas, excepto talvez a Dead Of Night, o público, nesta altura já mais bem composto, assistiu à incorporação a dois daquilo que é o rock. A essência do festival resumia-se àquela guitarra de crua distorção, à voz rasgada de controlada rouquidão e ao incansável martelar da bateria. Foi um dos momentos altos das duas noites, proporcionado por uma banda que já provou o ano passado, no Reverence Festival em Valada, não ter medo de nenhum palco.
Os Stone Dead foram a única repetição do cartaz do WoodRock de 2014. Tendo na altura fechado a primeira noite, num concerto que foi um pálido reflexo da grande qualidade em estúdio da banda, desta feita redimiram-se com aquele que foi, provavelmente, o concerto da noite (sim, já explico mais à frente porque não considero ter sido Miss Lava). Com uma atitude de renovado profissionalismo, mas sem deixar de libertar o seu lado mais selvagem, foram uma presença enérgica e tecnicamente irrepreensível, levando o público a uma maior euforia (mas sem nunca explodir; este ano, em todo o festival, a plateia esteve menos agitada, até mesmo apática por momentos).
Naquilo que eu chamaria de um filho bastardo do lado menos grunge dos Alice In Chains com uns Spiritual Beggars, mas ao mesmo tempo longe de ser cada uma das peças individuais, os Stone Dead mostraram boas composições, não só em temas já conhecidos, como City a abrir e Evil Monkey e Stone John lá mais para o meio, mas também com algumas faixas novas que apresentaram. Três quartos de hora foram suficientes para o público se render à banda de Alcobaça, que faria bem em lançar um álbum de longa duração para consolidar a sua posição no panorama do rock nacional.
A noite já ia longa, mas os lobos são noctívagos (nem todos, mas este era certamente); ouviu-se mais um lamento pré-concerto, o último da noite. A fechar, os grandes Miss Lava, donos de uma década de stoner puro e duro, dois aclamados álbuns e uma legião de fãs crescente, não só por cá mas também lá fora. Talvez por tudo isto, ou talvez pelo cansaço fruto de um longo dia de trabalho antes do festival, o concerto pareceu ficar apenas a meio caminho da grande expectativa criada.
Apesar de irrepreensíveis na atitude e na técnica, demolidores no som e com uma exemplar interacção com o público, faltou algo. Os temas soaram quase como que um só, uma amálgama sonora quase indiferenciável, que teve na incontornável Ride, em Yesterday’s Gone e na nova I’m The Asteroid os únicos momentos que sobressaíram. Já o resto, parece resultar melhor em estúdio. Talvez numa próxima oportunidade tire a limpo o porquê desta pequena desilusão. Não obstante, foram uma escolha acertada para fechar a noite, menos chuvosa de madrugada e prometendo um tempo melhor para o segundo dia.
Dia 2
Refeitos da dose da primeira noite e encorajados pela melhoria no tempo, ainda que o sol tivesse uma presença tímida e intermitente, os woodrockianos deambularam pela praia e pela piscina durante a tarde de sábado. A nossa equipa escolheu a praia, ouvindo ao longe o som do concerto de Drum&Didge na piscina. Ouve ainda tempo para um pequeno passeio pela Praia de Quiaios, uma terrinha bastante simpática que parece ideal para umas férias pacatas.
Com o cair da noite, acordou o nosso amigo canis lupus, meia hora depois das 22. Da terra do bacalhau e do Black Metal vieram os Captain Kill, trazendo consigo um rock psicadélico que oscilou entre passagem mais calmas e momentos de vil explosão. O vocalista Daniel Odda, com uma voz algures entre Ozzy Osbourne e Troy Sanders, bem insistiu várias vezes para o pessoal dançar, mas a audiência atingiu valores recordes pela negativa: quando o concerto começou, eram pouco mais de uma dúzia a assistir, número que apenas triplicou durante a atuação.
Mostrando enorme profissionalismo e confiantes na qualidade do seu trabalho, os noruegueses foram surpreendendo tema após tema, primeiro com duas faixas novas, depois com o single com direito a videoclip Dollhouse, e logo de seguida uma Through The Darkening com um instrumental magnífico e uma letra mais negra. Mas épico mesmo foi o final, primeiro sob a forma da contagiante Dance Mtrfkr e, a fechar, 12 minutos de Into The Wind, de longe a melhor música da banda e de uma qualidade bastante superior ao que seria de esperar de um projecto a dar os primeiros passos. Para mim, a surpresa do festival; mereciam mais público! ♪ we just came to dance, motherfucker ♪
Precisamente uma hora depois da abertura da primeira noite, os V8 Bombs subiram a palco para dar continuidade às hostilidades. O trio explosivo abriu com Love And Game, com um cheirinho de Motörhead no som. Cedo deu para perceber que estávamos perante uma locomotiva de puro rock ‘n’ roll, alimentada pelos vapores do palco e pelo calor do público. Apesar da energia e entrega, ficou também claro que a banda não abunda em originalidade e qualidade, quer técnica quer vocal, fazendo apenas o suficiente para entreter o pessoal sem comprometer.
Com pouco mais de meia hora de concerto, onde se destacou sobretudo Silver Kiss, a banda pareceu divertir-se e transmitir essa sensação para quem assistia. Foi uma Rock ‘N’ Roll Machine de composições simples e directas, letras recicladas mas energia autêntica. Não sendo maus, pelo contrário, não deixaram de ser a banda menos interessante desta edição do WoodRock.
Seguiu-se aquela que foi a actuação mas singular de todo o festival, não estivessem em palco os Souq, um projecto residente em Aveiro que incorpora, além dos instrumentos clássicos do rock, um saxofone e um trombone. Foram uma lufada de ar fresco no alinhamento, trazendo algo diferente e original, algures entre uns Pearl Jam e uns Deadsoul Tribe, com um bem conseguido toque de jazz e uma voz quente de Bruno Tavares.
Com um alinhamento sobretudo baseado no seu último trabalho At La Brava, nome a condizer com o toque southern no seu som, foram destaques músicas como Point Blank, Roy & Lee e Desert Snake Catcher, estas duas últimas a fechar. Pelo meio, um colosso progressivo de nove minutos de seu nome Feathers, com uma entrada a fazer lembrar um pôr-do-sol numa qualquer ilha paradisíaco. Não era bem isso, mas o encanto de Quiaios assentou que nem uma luva, num concerto que só pecou por a voz se perder nalguns momentos na confusão sonora, que denota ainda alguns pontos a melhorar na composição dos temas (ou nos seus arranjos ao vivo).
Aproximava-se o final do WoodRock 2015. O público atingiu o seu máximo, mas ficou longe da enchente causada pelos Bizarra Locomotiva o ano passado. Poucos mas bons, assistiram ao início do concerto dos D3O quando passava meia hora da 1 da manhã. O trio conimbricense apresentou-se sob a forma de um quarteto, com o seu amigo Sérgio Cardoso convidado no baixo. Ai Caramba! quebrou o gelo; a partir daí, foi partir tudo até ao final, naquele que foi o melhor concerto nacional do festival.
Na voz e guitarra, Toni Fortuna parecia possuído pelos demónios do rock, cantando e gritando furiosamente mas sem falhas, assaltado de ocasionais choques eléctricos que o faziam saltar de forma inesperada em múltiplas direcções. Bleed, Go!, Too Late, qualquer música servia para explodir, sempre com um enorme sorriso de prazer naquilo que faziam. Apesar de alguns problemas no som, que frustraram o impulsivo guitarrista Tó Rui, o concerto pode dizer-se, do ponto de vista do público, imaculado, fechando em chave de ouro com Junior Daddy. Haja entrega!
Podia haver algo melhor e mais vibrante que os D3O? Podia, e os norte-americanos de The BellRays provaram-no, quando passavam 40 minutos das 2 da manhã. Com quase 20 músicas no alinhamento, mas sem uma única pausa pelo meio, a experiente banda de Riverside levou o público ao céu inferno do rock, liderados pelo diabo em pessoa, no corpo da incansável Lisa Kekaula. A sua voz ecoava em Quiaios, fazendo vibrar os nossos tímpanos com ondas de puro deleite, qual droga sonora para a mente.
Acompanhada por músicos exemplares, com maior foco na guitarra virtuosa de Robert Vennum, a vocalista foi liderando o espectáculo de forma contínua, falando entre músicas, repetindo incessantemente “we are The BellRays” e “we’re gonna give everything we got to you“; e deram, deram tudo, tocando na íntegra o álbum Black Lightning (cujo tema homónimo fechou o alinhamento antes do encore), destacando-se momentos como That’s Not The Way It Should Be, a balada Anymore, Everybody Get Up e, a fechar, Blues For Godzilla, isto sem esquecer a interpretação única de Whole Lotta Love dos Led Zeppelin.
Melhor final era impossível. Completamente rendidos ao furacão afro-americano, o público dispersou no final (faltavam 10 minutos para as 4 da manhã), certamente deliciado. A fechar a noite, tal como a primeira, tivemos DJ. Foi de resto esta uma das novidades deste ano, que incluíram também melhor restauração e o concerto na piscina na tarde de sábado. A melhorar, o pouco merchandising e, sobretudo, as luzes. Além do excesso de luzes intermitentes viradas para o público, que me forçou a olhar para o lado várias vezes pelo desconforto, em nenhum dos concertos se conseguiu ver os bateristas; eram uma aparição rara, breves segundos antes de rapidamente serem engolidos no fumo e escuridão naquela zona do palco. A reter, uma organização exemplar, concertos na sua maioria a tempo e horas, bom som apesar de ocasionais falhas compreensíveis; boa comida, excelente ambiente e campismo com todas as condições.
É já com saudade que aguardamos pela edição de 2016, esperando que a pouca afluência de público não mate o festival com mais vida do litoral centro.
Fotografia: Marina Silva
Texto: David Matos
Setlists (NOTA: fruto da minha humilde ignorância relativamente aos trabalhos completos das bandas, a maioria das setlists estão bastante incompletas; qualquer pessoa que tenha mais informações, ou mesmo as próprias bandas se lerem isto, poderão e deverão editar as mesmas para o registo histórico ser o mais fiel possível)