Vodafone Paredes de Coura. A nostalgia eterna do retorno a casa

Fotografia: Ana Ribeiro (Grifus) | Texto: V. Oliveira

A metamorfose do festival realizado em Paredes de Coura, ao longo dos seus mais de 30 anos de história, tem sido um processo gradual e orgânico. Pesando-lhe críticas de snobismo e de perda de identidade, o seu lugar de destaque no panorama nacional continua indiscutível, e o seu legado inegável. Cimentando-se, cada vez mais, como a maior alternativa de festivais de verão a norte de Lisboa,  o Vodafone Paredes de Coura em 2024 renovou votos de equilíbrio musical com alinhamentos mesclados de música para todos os gostos.

14 de Agosto: Simbiose rítmica

Fotogaleria do concerto-surpresa de Samuel ÚriaMilhanas

 

Encetamos a excursão do primeiro dia de festival pelo Palco Yorn, através do Lo-fi garage rock dos Wolf Manhattan (novo projeto de João Vieira, dos X-Wife). O músico e produtor ficou assim,  responsável pela abertura da 31ª edição do Vodafone Paredes de Coura. A abrir as hostes no Couraíso estiveram, também, os Leirienses First Breath After Coma+ Noiserv com a Banda Musical de Mateus, perante uma plateia já muito bem composta e que demonstrou gostar do que viu.

Fotogaleria dos concertos de Wolf Manhattan e First Breath After Coma + Noiserv + Banda Musical de Mateus

 

Deslocados do Palco Yorn para o palco principal, os Glass Beams (banda de Melbourne e liderada por Rajan Silva), esteve muito longe de conseguir empatia junto do público presente. Num concerto instrumental, sem vozes, e com pouca interação com o público presente, foi difícil forjar uma conexão banda-público. Trazendo a Paredes de Coura as canções de Mahal, o seu mais recente EP, a enigmática banda ficou por isso mesmo, um enigma que o público não conseguiu resolver.

Fotogaleria dos concertos de Sababa 5, Glass Beams e do ambiente do dia

 

15 de Agosto: Do indie ao disco-pop francês

O segundo dia do festival em Parede de Coura trouxe uma sucessão de concertos inesquecíveis, cada um com dono do seu próprio universo sonoro.

A subir ao Palco Vodafone esteve a banda Gilsons, que trouxeram consigo o calor brasileiro em jeito de final de tarde. A banda, formada por filhos e netos de Gilberto Gil, ofereceu um concerto pleno de groove, harmonia e mensagens positivas. Com canções como “Devagarinho”, “Cores e Nomes” (que lembrou Juliana Mestre), e “Bateu” — esta última entoada em uníssono pelo público —, os Gilsons conquistaram os corações da audiência. O momento mais marcante talvez tenha sido a interrupção do concerto para prestar assistência a alguém que se sentiu mal no público, um gesto de empatia que foi calorosamente aplaudido. A actuação ficou concluída através dos êxitos “Proposta” “Love, Love”, afirmando com orgulho: «Somos os Gilsons, somos do Brasil. Prazer!» — e o prazer foi todo nosso.

O aguardado regresso dos norte-americanos Wednesday a Portugal — após a sua passagem pelo Primavera Sound Porto em 2023 — fez-se em grande forma e estilo. O modesto Palco Yorn rapidamente se revelou pequeno demais para acolher a multidão que se reuniu para ver a banda de Carolina do Norte pegar fogo ao recinto. Com um som que oscila entre o country distorcido e o noise rock catártico, a banda comportou-se como verdadeiros veteranos. A vocalista Karly Hartmann foi absolutamente arrebatadora, alternando entre melodias melancólicas e gritos viscerais, num desempenho que arrepiou e emocionou.

O alinhamento incluiu temas do aclamado álbum de de 2023 Rat Saw God, como “Chosen to Deserve”, “Quarry” e “Bath County”, intercalados com momentos explosivos como “Bull Believer”, que gerou um moshpit intenso e, ao mesmo tempo, catártico. Um dos momentos mais emocionantes da noite surgiu quando Karly convidou o público a gritar «por aqueles que estão a morrer em Gaza agora». Uma declaração política forte e bem recebida, que reforçou a autenticidade da banda. A cover de “Ghost of a Dog” (Edie Brickell & New Bohemians) foi uma escolha inesperada e sentida, e a energética “Hot Rotten Grass Smell” destacou-se como um dos momentos altos do concerto. A ovação final provou que Wednesday já não são apenas uma promessa, mas sim um nome incontornável da cena alternativa actual.

Fotogaleria dos concertos de Gilsons e Wednesday

 

Pouco depois, o Palco Yorn recebeu também as irreverentes Los Bitchos, cuja introdução em palco foi feita ao som de Cyndi Lauper, sinal sonora que deixou antever o espírito da festa que estaríamos prestes a presenciar; de forma descomplicada e vibrante.  A setlist, que incluiu temas como “Try the Circle!”, “Lindsay Goes Down Under” e a contagiante “Las Panteras”, levou o público a viajar de olhos abertos. Sem terem propriamente uma vocalista ‘principal’, a banda comunicou com gestos, sorrisos e uma presença em palco absolutamente cativante. “Let Me Cook You” e “Tripping at a Party” foram momentos de puro delírio coletivo. Uma actuação que nos deixou vontade de mais.

Fotogaleria dos concertos de Sleater-Kinney e Los Bitchos

 

A fechar a noite com um toque de elegância e hedonismo francês, estiveram os L’Impératrice e que transformaram o Palco Vodafone numa pista de dança retro-futurista. O concerto foi um desfile de batidas disco, sintetizadores brilhantes e harmonias vocais sedutoras. Temas como “Cosmogonie”, “Anomalie bleue” e “Amour ex Machina” criaram uma atmosfera sensual e envolvente. A cover de “Aerodynamic” dos Daft Punk foi um presente inesperado e explosivo. Já “La piscine”, originalmente dos Hypnolove, encerrou a noite com sofisticação tropical.

Fotogaleria dos concertos de L’Impératrice e Protomartyr

 

Fotogaleria do concerto de Slow J e do ambiente do dia

 

16 de Agosto: O retrato perfeito da força da música

Fotogaleria do concerto-surpresa de Nouvelle Vague e concerto de Branko

 

Fotogaleria dos concertos de Nouvelle Vague, Allah-Las e Benjamim

 

A noite de 16 de agosto foi um turbilhão emocional, com momentos de introspecção, libertação e pura catarse coletiva. Três nomes muito diferentes — Cat Power, girl in red e Beach Fossils — dominaram os dois principais palcos do festival com atuações que perdurarão na memória colectiva do público presente.

A noite começou com o regresso sereno e poderoso de Cat Power, que trouxe a sua já aclamada recriação de um concerto histórico de Bob Dylan a Coura. A escolha do alinhamento, que misturou momentos acústicos e eléctricos, foi cuidadosa, emotiva e profundamente respeitosa — mais do que um tributo, foi uma reinterpretação com assinatura própria. Na primeira parte do concerto, Cat Power (ou “Chan” Marshall) apresentou-se de forma contida e vulnerável, vestindo uma t-shirt com a mensagem «Fuck War» e dizendo: «I’m so lucky to be alive and to be doing this with these amazing people». A sua voz inconfundível ecoou nas interpretações acústicas de clássicos como “She Belongs to Me”, “Visions of Johanna” e “Desolation Row”, mantendo a sua essência musical mas com uma cobertura de melancolia mais crua. A transição para a fase eléctrica trouxe maior energia, com canções como “Tell Me, Momma”, “Leopard-Skin Pill-Box Hat” e “Ballad of a Thin Man” a envolver o público numa atmosfera hipnótica. Antes de encerrar com um belíssimo “Like a Rolling Stone”, Cat Power deixou um apelo: «Please continue fighting the power as much as you can».

Se Cat Power trouxe introspecção, Marie (aka girl in red) veio com a energia de quem queria consumir tudo — e conseguiu. Na sua segunda passagem por Portugal (depois do NOS Alive em 2023), Marie Ulven conquistou Coura de imediato, entrando com tudo em “DOING IT AGAIN BABY” e criando um espetáculo explosivo e avassalador. «I’m girl in red, but most and foremost, I’m Marie — and I’m a lesbian, and this song is about girls» — assim se apresentou antes de “girls”, em mais um momento de honestidade desconcertante que marcou a noite. O público respondeu com gritos, braços no ar e muito amor de volta. Entre hits como “Serotonin”, “dead girl in the pool.”, “I’ll Call You Mine” e “You Stupid Bitch”, a cantora demonstrou uma vulnerabilidade constante, e o sentido de comunidade foi palpável em todo o recinto. “Midnight Love” e “Too Much” trouxeram uma pausa emotiva, antes de regressar à euforia com “we fell in love in october” e “i wanna be your girlfriend”, encerrando assim o concerto com músicas que se converteram em verdadeiros hino da cultura queer-pop. Girl in Red deixou absolutamente tudo em palco e nós agradecemos por isso.

A fechar a noite estiveram os nova-iorquinos Beach Fossils, que  trouxeram a suavidade onírica do dream pop ao Palco Yorn. A banda surgiu logo após o furacão girl in red com uma abordagem muito mais contida, mas igualmente impactante. Temas como “Don’t Fade Away”, “Sugar” e “Generational Synthetic” criaram uma paisagem sonora etérea, enquanto “What a Pleasure” arrancou os primeiros sorrisos nostálgicos da multidão. A meio do concerto, Dustin Payseur brindou o público com um «Portugal, let’s dance?», arrancando aplausos e algum movimento entre os mais cansados da noite.

Num encore merecido, fecharam com “Down the Line” e “Crashed Out”, deixando uma sensação de leveza e gratidão. «Portugal, cheers to you. Thank you for hanging out with us, we love you», disse Dustin, encerrando uma actuação na qual a banda foi capaz de contrabalançar um dia feito de sonoridades contrastantes.

Fotogaleria dos concertos de girl in red e Beach Fossils

 

Fotogaleria do concerto de IDLES e do ambiente do dia

 

17 de Agosto: Da intimidade absoluta ao grito colectivo

A estreia de Palehound em Portugal foi íntima, honesta e, acima de tudo, comovente. Num formato totalmente acústico — só El Kempner, uma guitarra e uma cadeira ao centro do palco — a actuação foi um convite à escuta atenta num ambiente de festival que nem sempre favorece esse tipo de entrega. «All my musician friends tell me that Portugal has the best audience in Europe», disse El, entre canções do seu mais recente disco Eye on the Bat (2023), como “Good Sex”, “Eye on the Bat” e “My Evil”.

O virtuosismo na guitarra e a vulnerabilidade nas letras ecoaram pelo anfiteatro natural de Coura, com o público silencioso e receptivo. «Is anyone here gay?» — perguntou com um sorriso, arrancando aplausos e gritos de identificação. Uma performance que, embora discreta no meio da programação do restante dia, merecia maior destaque e, talvez, um outro contexto. No entanto, quem assistiu a esta actuação sabe que presenciou algo de muito especial, numa espécie de anti-show que, justamente por isso, tocou de forma emocional nas almas de todos os presentes.

Alynda Segarra, à frente de Hurray for the Riff Raff, trouxe ao Palco Vodafone uma mistura pungente de folk, punk e activismo. Com um alinhamento centrado no aclamado álbum The Past Is Still Alive (2024), foi um retrato da América profunda — da dor à resistência. Temas como “Snakeplant” e “The World Is Dangerous” ganharam peso emocional em palco, reforçados por uma entrega vocal intensa e cheia de propósito. Foi um concerto com mensagens políticas claras, mas também com espaço para beleza e contemplação — como em “RHODODENDRON” e “Buffalo”. Um momento de alma, entre raízes folk e espírito de combate.

Fotogaleria dos concertos de Palehound e Hurray for the Riff Raff

 

Fotogaleria dos concertos de Slowdive e Still Corners

 

Fotogaleria do concerto de The Jesus and Mary Chain

 

A encerrar o festival, e após uma enchente provocada por The Jesus and Mary Chain, os irlandeses Fontaines D.C. assumiram o palco principal com o peso e a intensidade que se esperava. Com um alinhamento poderoso e sem pausas desnecessárias, a banda foi directa ao assunto — e o assunto era energia crua. A escolher iniciar a sua actuação com temas do seu novo trabalho (incluindo o ainda por confirmar Romance), a banda logo se mergulhou em clássicos recentes como “Televised Mind”, “Jackie Down the Line” e “Big Shot”. A entrega de Grian Chatten foi, como sempre, visceral — caminhando de um lado para o outro do palco, declamando e desafiando o público. O fecho deu-se com “I Love You”,  hinos como “Boys in the Better Land” e “A Hero’s Death”, numa performance avassaladora. A banda saiu de cena deixando Coura em estado de combustão emocional — e provando que são, neste momento, uma das bandas mais relevantes e intensas do circuito indie europeu.

Um último dia à altura da consagração do Vodafone Paredes de Coura.

Fotogaleria do concerto de Fontaines D.C.