Primavera Sound Porto. Há rimas e ritmos latinos, mas sobretudo há vida no parque

Texto: Nuno Bernardo | Fotografia: Hugo Lima/Primavera Sound Porto

Coroas de flores, toalhas de piquenique e um anfiteatro natural de relva para apreciar os maiores concertos. Era fácil listar os principais aspectos que caracterizavam o Primavera Sound Porto, mas o caso mudou de figura. As flores e as toalhas (ou outros itens de merchandise do festival) desapareceram juntamente com o patrocínio da NOS e o palco principal, até 2023 localizado nessa encosta relvada no Parque da Cidade, mudou-se para uma área plana junto a área do Queimódromo. Outro palco favorito dos frequentadores assíduos do evento, localizado numa clareira, deixou de fazer parte do recinto.

Foram várias as mudanças que fizeram parecer o Primavera Sound Porto estar a repensar as suas apostas no mesmo ano em que celebrou a 10ª edição.

Dia 7 de Junho

O primeiro de quatro dias de Primavera Sound Porto teve um grande responsável. O dia extra materializou-se com a possibilidade de um concerto de Kendrick Lamar, mesmo a jeito de se celebrarem as dez edições na invicta. O rapper actuou no festival enquanto nome maior do género, mas já lá tinha passado com um estatuto completamente diferente: em 2014 era uma certeza recente do hip-hop com Good Kid, M.A.A.D. City, disco aclamado lançado dois anos antes, e convenceu mesmo ao vivo. Foi, no entanto, o concerto em Lisboa a propósito do Super Bock Super Rock, em 2016, que serviu de principal termo de comparação.

Pela audiência não era difícil encontrar esse assunto de conversa. Foi com banda e com To Pimp A Butterfly no alinhamento, com o espírito livre do jazz a ladear as rimas e uma brasa a fazer suar toda a plateia. Em disco resultou em pleno, em palco também. Foi memorável e arrasador, um daqueles que «só quem lá esteve é que sabe». Mas como bom artista que não se conforma, Kendrick Lamar mudou as peças do jogo.

Desta vez Lamar surgiu sozinho em palco. “N95”, a abrir, pautou logo a apresentação de Mr. Morale & The Big Steppers, disco lançado no ano passado em que o rapper expõe bastante da sua vida. Os primeiros temas prometeram, com “A.D.H.D.” e “King Kunta” a sacar as rimas sabidas de uma plateia que por esta altura já se dividia dada a lama acumulada no Palco Porto, o novo palco principal montado à entrada do recinto. Mesmo em frente ao palco só dava para ensopar mais os sapatos, enquanto que no alcatrão na zona de restauração era difícil ter noção do que acontecia, em imagem e sobretudo em som. Um claro downgrade visual e de propagação sonora do antigo palco principal, que este ano se apresentou como Palco Vodafone.

A chuva ainda tentou dar tréguas, mas os casacos não-impermeáveis, utilizados pela maioria do público, mostraram-se já bastante pesados e encharcados para uma resposta diferente a “Backseat Freestyle” ou “m.A.A.d city”. A responsabilidade também coube a Kendrick Lamar: as poucas distracções da música resumiram-se à troca de backdrops, do lançamento de meia-dúzia de foguetes e uns quantos bailarinos, isto enquanto “Swimming Pools (Drank)” se ficou pela metade e se debruçou numa maratona de temas de DAMN. e do trabalho mais recente. O concerto nunca passou de morno, aquém de uma prometida grande produção.

Perto do fim, “Alright” motivou a debandada de quem já tinha ouvido o que queria ouvir e na final “Savior” entoou-se «Kendrick made you think about it, but he is not your savior». Um tema que nos compele a pensar e a procurar simbologia, que nos parece cada vez mais diluída e menos incólume num artista que vai reescrevendo parte do seu passado, distante ou recente: bitch e a n-word foram palavras excluídas do seu vocabulário, empurrando a culpa para o público de as entoar como nos versos dos álbuns. Metafórica e figurativamente, no Porto não foi mesmo um salvador e não fez milagres, contra a meteorologia e contra os problemas inerentes ao palco, após sete anos de espera para o ter novamente cá.

O primo Baby Keem, que surgiu no concerto de Kendrick para terminar “family ties”, teve os mesmos problemas. A batida trap e os temas curtos, quais reels ou tiktoks em versão de palco, foram mera ilusão para quem quis gravar uns temas para as suas stories. Foi difícil determinar um fio condutor de uma mensagem que se tentou passar, mas num festival quando não se dá o clique é melhor procurar uma alternativa: coisa que faltou precisamente neste dia, com apenas dois dos cinco palcos a funcionar.

O único plausível milagre do dia coube a The Comet Is Coming. A chuva começou a cair com mais força durante o concerto do trio britânico, mas também parou momentaneamente. A electrónica e o jazz de mãos dadas e ao comando do saxofonista Shabaka Hutchings não concentrou muita gente no Palco Vodafone – especialmente por ter acontecido entre concertos de Baby Keem e Kendrick Lamar, obrigando a atravessar o recinto – mas fez dançar e fazer esboçar sorrisos. A banda prepara-se para entrar em hiato e no Porto pudemos ver uma das últimas ocasiões de receber efusivamente as notas de Trust in the Lifeforce of the Deep Mystery, aclamado disco de 2019. O mais recente Hyper-Dimensional Expansion Beam, lançado no ano passado, pode não ser tão explosivo, mas permitiu estender ao vivo as comparações de King Shabaka com os sopros de Sun Ra ou Fela Kuti. Isso, só por si, já é bastante especial.

O dia foi ainda marcado pelos sintetizadores dançáveis. Georgia, quando o sol ainda brilhava pelo parque, foi fonte de energia contagiante que até pedia umas outras horas, mais tardias, para se entrar no espírito do clubbing. Tal alegria não a deteve, mostrando-se feliz por abrir as hostes do Palco Vodafone, e procurou sucessivamente a interacção com o público, inclusive com Mickey the Frog, que subiu a palco. Presenteou a plateia com “About Work the Dancefloor”, bem recebida, assim como “Running Up That Hill (A Deal With God)”, clássico de Kate Bush que a britânica Georgia Barnes há vários anos interpreta ao vivo.

«Vocês conhecem esta próxima» foi, provavelmente, a frase mais vezes dirigida ao público por Alison Goldfrapp. A artista londrina serviu-se sempre dessa intervenção para introduzir algum tema de Goldfrapp, dupla que formou em 1999 com Will Gregory, e ainda foram alguns a desfilar neste concerto a solo: “Train”, “Ooh La La”, “Ride a White Horse” e “Strict Machine”. Foi no entanto um sintoma da dificuldade em encaixar a sua synthpop com uma plateia nitidamente focada em guardar lugar para os concertos da noite. Tarefa especialmente agridoce quando Alison só surgiu no cartaz para substituir FKA twigs. Não deixamos de lhe reconhecer a jovialidade e o empenho, que juntamente com os graves pesados deram para agitar alguns corpos neste que foi um dos primeiros concertos de apresentação do seu álbum a solo, o recentemente lançado The Love Invention.

Dia 8 de Junho

Os fãs de Rosalía que, ao segundo dia de Primavera Sound Porto, decidiram trocar o seu concerto pela dose enérgica de punk e hardcore com Bad Religion e OFF!, fizeram-no deliberadamente. Era sabido que a artista catalã não ia dar mais do que uma versão lite dos espectáculos de Motomami em Braga e Lisboa em Novembro último, salvas pequenas diferenças. Foi, ainda assim, o Palco Porto o ponto central da noite do festival, motivando um arrastão do set de Fred Again… para um extenso lamaçal emergido de um terreno alagado novamente pela chuva.

Se nos concertos a solo Rosalía utilizou os ecrãs verticais para se aproximar de forma virtual de todos os presentes, já em festival essa aposta parece ter criado um fosso de distância ainda maior. Entre conversas de festival (ou até típicas conversas de café), a experiência de concerto baseada nos ecrãs foi mais ruído de fundo e menos presença eloquente de um bravo talento da música latina, onde até o próprio desenho de palco não parece ter sido optimizado para o público das primeiras filas. A artista ainda assim tentou desculpabilizar-se nas vezes que se dirigiu aos fãs, partilhando “La Noche de Anoche” nas grades e rendendo-se à dança juntamente com os seus coordenados bailarinos.

Enquanto “Despechá”, “Bizcochito”, “Con Altura” ou “Chicken Teryiaki” fizeram elevar os telemóveis, foi a sequência “Beso” e “Vampiros”, do EP RR feito a meias com Rauw Alejandro, que acabou por arrefecer um pouco os ânimos. Ouviu-se o final de “G3 N15”, nas palavras da própria avó de Rosalía, para nos lembrar que não há heróis invencíveis na arte. Nem a custo de uma passagem por “Heroe”, de Enrique Iglesias. Não deixou de ser um concerto com imensos pormenores, estudado e dimensionado para a grandeza do projecto Motomami que merecia palco, espaço, público e clima condizentes.

Quem não se deixou impedir pela imensa chuva foram os The Mars Volta. Quisemos lá nós saber, encarando a chuva como um refresco à fervorosa locomotiva progressiva dos texanos liderados por Omar Rodriguez-Lopez, na guitarra, e Cedric Bixler-Zavala, na voz. Depois de uma efusiva “Roulette Dares (The Haunt Of)” e a loucura virtuosa de “L’Via L’Viaquez”, já íamos em trinta minutos de concerto quando foi introduzida “Graveyard Love”, a única faixa recente de um alinhamento focado na estreia De-Loused In The Comatorium e no seguinte Frances The Mule. «Também estamos à espera da Rosalía», rematou Cedric a dada altura, admitindo que era difícil convencer uma certa fatia do público que já guardava lugar para o concerto no mesmo palco. Bem brindados foram os pacientes com uma “Drunkship of Lanterns” com o krautrock de Can à espreita, antes de “The Widow” ou a final e catártica “Inertiatic ESP”. Há onze anos que a banda não actuava em Portugal. Se valeu a espera? Óbvio.

Quase todo este 8 de Junho foi marcado pela distorção das guitarras. A maior delas foi demandada por Gilla Band, um regalo de jarda sónica instigado por batidas rápidas, graves violentos e guitarra feroz. Do dance punk ao noise, a música do quarteto irlandês provoca ritmos inexplicáveis e ganha ainda mais força em palco, servindo-se da visita ao Porto para apresentar o mais recente disco Most Normal. Deste deram-nos “Post Ryan”, “The Weirds”, “Backwash” ou “Eight Fivers”, mas as anteriores “Going Norway”, “Shoulderblades”, “Lawman” ou “The Last Riddler” também se mostraram capazes de deixar os curiosos de queixo caído. O culto lá foi semeado, já perto do final, quando os impermeáveis se viram a esvoaçar e a trocar de dono quando “Why They Hide Their Bodies Under My Garage?” se fez banda sonora do caos, uma versão de Blawan que se tornou um hino em mãos alheias.

Também irlandeses e também no Palco Plenitude, embora no período da tarde, os The Murder Capital conseguiram arrastar uma boa mancha humana de um dos pilares de todos os Primavera Sound Porto (o concerto de Shellac). As primeiras filas agitadas sabiam já conhecer as palavras de vários singles, ora do primeiro álbum When I Have Fears, ora do novo Gigi’s Recovery, um dos mais interessantes discos de rock deste ano. Em suma foi nem uma dúzia de temas que passaram a correr e que pedia uma hora mais tardia. Mas a julgar pelo que vimos em palco e pela resposta do público, será apenas uma questão de tempo para ver a banda de Dublin em voos maiores.

No período tarde na encosta do Palco Super Bock foram recebidas mais guitarras. Os The Beths, liderados pela voz Elizabeth Stokes, chegaram de Auckland, do outro lado do globo, com músicas aparentemente fáceis e orelhudas. Talento nato com o sol a brilhar pelo relvado à hora que actuaram, tal como a sua música cintilou ao leme de Expert In A Dying Field, álbum merecedor de um enorme adereço de palco: um enorme haku, denominação maori para o peixe olho-de-boi. Já os canadianos Alvvays, com Molly Rankin a chegar-se à frente, tiveram outros cuidados com a imagem: os ecrãs transmitiram apenas imagens desfocadas e a imprensa não foi autorizada a captar imagens. «A última vez que tocámos em Portugal, um rapaz disse que eu devia passar melhor as minhas roupas, portanto esta é para ti», disparou Molly a dada altura debaixo de um arco-íris tímido, guardando algum rancor misturado com humor sobre o concerto dado em Paredes de Coura há alguns anos. A nível musical, a história teve mais altos do que baixos, tanto pela bastante aplaudida “Marry Me Archie” como os vários temas de dream pop de Blue Rev, disco que apresentaram no Porto e cuja produção não faz justiça à qualidade das suas composições.

Já no final da noite ainda houve quem se tenha concentrado junto ao Palco Plenitude para a dupla Jockstrap. Taylor Skye assumiu totalmente os sintetizadores e as batidas em ponto fixo, dando uma grande porção do palco para Georgia Ellery brilhar na voz, no violino, na dança e no outfit dourado. «Imaginem que sou a Madonna toda de rosa», brincou, procurando mais vezes a dança do que o microfone em claro contraste com os deveres que tem quando sobe ao palco com os seus Black Country, New Road. De I Love You Jennifer B ficaram marcados temas como a faixa-título, “Glasgow”, “Debra” ou “Greatest Hits”, salvando-se aplausos especiais para “Concrete Over Water” e momento de ‘partepistismo’ em “50/50”.

Dia 9 de Junho

Foi para espectáculos da dimensão de Pet Shop Boys que a organização do Primavera Sound Porto projectou o relvado e a localização do novo Palco Porto. A icónica dupla londrina foi nome maior no terceiro dia do festival e vimo-los atingir o palco com pompa e circunstância, com direito a um cenário provocado por luzes coloridas e máscaras que cobriram temporariamente os rostos de Neil Tennant, na voz, e Chris Lowe, nos teclados.

Para uns foi uma viagem pelos anos da adolescência, para outros foi repetir as cassetes dos pais que se ouviu na infância. Os anos 80 foram lembrados como uma memória cada vez mais distante, mas com o distanciamento certo para reconhecer a influência que o duo deixou a inúmeros nomes que já pisaram o palco do festival ao longo de uma década.  «Hoje vamos para um sítio de sonhos e música», antecipou Neil numa das vezes que se dirigiu ao público, atirando-se rajadas de nostalgia às batidas de “Heart”, “West End Girls”, ou “It’s A Sin”, hinos que foram intercalados com as suas versões de “You Were Always On My Mind”, “It’s Alright” ou “Go West”. Mesmo incursões mais recentes, como “Dreamland”, mostraram que uma década consegue ser eterna se os sons da época estiverem presentes.

“Being Boring” marcou o fim do concerto. Aborrecidos os Pet Shop Boys não foram de todo, apesar de não entusiasmar a mesma fatia de público que apertou os largos metros do palco principal em Kendrick Lamar ou Rosalía nas noites anteriores. Valeu pelo Primavera Sound Porto ser (e esperemos que continue) um espaço em que o novo e o velho se entendem e dialogam livremente. Por esse mesmo motivo, foi pena os conterrâneos Depeche Mode terem sido exclusivos das edições do festival em Espanha.

Outro concerto que marcou este 9 de Junho foi o de St. Vincent. O projecto de Annie Clark provocou uma enchente pela encosta do Palco Vodafone como se de um headliner se tratasse, avistando-se ao longe a forma como saltou para o público em “New York”, já depois de ter recordado o seu homónimo álbum com “Digital Witness” e “Birth In Reverse” no arranque do concerto. Em palco sente-se a influência de David Byrne, com quem até gravou um álbum em 2012 intitulado Love This Giant, pela forma como tenta incorporar a teatralidade, por vezes demasiado despida de espontaneidade. O cunho pessoal é feito a dedicar temas ao público feminino, como “Cheerleader”, antes de nos jogar as brilhantes “Year of the Tiger” ou “Marrow”.Noutro gesto meticulosamente ensaiado, Annie afirmou «nós somos tudo o que temos, cuidem de vocês»: palavras medidas a tornar uma interacção mais pessoal para que, entre aplausos, tentássemos tirar as nossas próprias lições.

No Palco Super Bock a influência de Le Tigre parece ter passado demasiado ao lado do que deviam ter sido os focos do festival. O movimento riot girl gritou presente na sua génese através de Kathleen Hanna, de Bikini Kill, e em catorze faixas foi apresentado um pedaço de história que foi replicado na Rússia uns anos mais tarde via Pussy Riot, por exemplo. Houve um peso acrescido de 2023 marcar a primeira digressão da banda em 18(!) anos, mas o rock electrónico e dance punk mostraram-se mais actuais do que nunca face à permanente luta pelo direito das mulheres e da população queer. Um concerto que pareceu curto, a constratar com as duas horas a que os Darkside tiveram direito no Palco Vodafone às portas da madrugada. O projecto de Nicolas Jaar e Dave Harrington somou ainda os esforços de Tlacael Esparza na bateria para um set hipnótico ancorado nos dois álbuns lançados até à data: Psychic de 2013 e Spiral, oito anos depois. As volumosas batidas ecoaram pelo parque e subiram a encosta, assim como uma luz eclipsante a passar pelas brechas de uma estrutura circular montada sobre os três músicos: estilhaços físicos de uma electrónica fragmentada mas muito cintilante.

Existiram neste dia três doses distintas de guitarras para encher o ouvido. Ainda no período da tarde e na encosta do Palco Vodafone, os Wednesday perguntaram-nos se gostávamos de música country enquanto se avistavam as célebres toalhas amarelas ou laranjas de (há) muitos anos atrás estendidas no relvado. A influência de Mitski foi bastante sentida, ou não tivesse sido esta a força motriz para Karly Hartzman começar a tocar guitarra, e houve tentativas de criar bonds fáceis. Questionando a presença de público americano no Porto, Karly dedicou um tema às mulheres do seu país natal e ainda respondeu a um fã que perguntou por merchandise nas primeiras filas. «Trazemos numa próxima e aproveitamos para passar uma semana ou assim para conhecer a cidade», contou-nos, agradada pelo sol que brilhava na invicta após dois dias de chuva.

De lap steel para um desfile insano de guitarras, os My Morning Jacket tiveram no Palco Porto uma posição agridoce para tentar agarrar mais do que os fãs que aguardaram a tão ansiada estreia em Portugal da já veterana banda de Kentucky. Famosos pelos seus longos concertos, houve aqui pouco tempo para convencer através da persistência face a um público que se concentrou mais para as rimas e batidas de Pusha T na ponta oposta do festival. Já na hora de jantar e no Palco Plenitude, os Built To Spill de Doug Martsch divagaram por sete dos nove álbuns de uma já longa carreira. Em formato trio, foi com indie rock consagrado que se passou por “The Plan” e “Stab” a abrir, “Reasons” no miolo e “Carry the Zero” a fechar, lembrando um período furtífero da banda na década de 90.

O primeiro concerto que o Palco Porto testemunhou neste dia foi o de Deixem o Pimba em Paz, projecto que reformula a música pimba e celebra o cancioneiro popular português. Não deixou de ser algo deslocado do festival e agridoce quando, por exemplo, não foi dada até à data a oportunidade a bandas como Clã (da própria Manuela Azevedo, aqui presente) ou Mão Morta de subir a um palco deste festival. Para outros foi momento para não pensar muito no assunto, levantar mais uma cerveja ao lado do telemóvel a gravar uma story. Até porque não é todos os dias que ouvimos o Bruno Nogueira a cantar versos como «quando eu nasci a minha mãe não tinha leite».

Dia 10 de Junho

Dez anos depois, os Blur voltaram à cidade do Porto quase com os mesmos argumentos. Se em 2013 a reunião da banda de Damon Albarn, Graham Coxon, Alex James e Dave Rowntree era motivo suficiente para desfilar êxitos de britpop e rock alternativo, desta vez trouxeram à invicta um misto de celebração da carreira com um vislumbre sobre a página seguinte do trajecto. Foi assim mesmo, de jeito algo célere, que a banda subiu ao Palco Porto com “St. Charles Square”, tema do novo álbum a lançar, The Ballad of Darren.

Nesta noite, ninguém pareceu mais feliz do que o próprio Damon Albarn, que não demorou jogar-se ao público em “There’s No Other Way”. Seguiu-se uma autêntica viagem pelos temas para unir vozes, de “Popscene” a “Beetlebum”, “Trimm Trabb” a dar eloquência e o pacotinho de leite de “Coffee & TV” a trazer boas memórias da adolescência ou infância dos anos 90 de muitos. Parklife foi o disco central do alinhamento e foi bastante condizente: o Parque da Cidade, mesmo despido de relvado neste palco, foi o cenário ideal para celebrar a vida e a boa disposição.

Se “To The End” foi sílaba tónica de uma palavra mais solene, “Girls & Boys” ganhou contornos mais estratosféricos nos dias que correm. “Advert” e “Song 2” foram, como esperado, dois momentos electrizantes com Graham Coxon aos pulos, mas haveria de chegar “Tender”. «O amor é a melhor coisa que nós temos», deixou passar Albarn entre sorrisos, antes de um «vocês são boas pessoas». As peças estavam todas colocadas no lugar certo, à excepção do som que nunca esteve realmente elevado para um concerto quando comparado com outros palcos do festival. Mas ainda houve tempo para a nova “The Narcissist”, instrospecção bela para a despedida em “The Universal”, a 20ª canção do alinhamento.

Não sabemos dizer quando tempo irá durar o estado de graça e o saudosismo de Damon Albarn perante os Blur. Pelo menos haverá The Ballad of Darren para registar e os indicadores apontam para uma banda mais segura de si do que o fez em The Magic Whip, disco anterior categoricamente excluído do alinhamento do concerto. Aproveitemos a onda enquanto dura. O amor pode ser a melhor coisa que nós temos, mas será sempre preciso uma boa banda sonora para o acompanhar.

Meses após ter sido revelada a totalidade do cartaz, a adição de New Order ao Primavera Sound Porto foi uma agradável surpresa. Nenhuma outra banda encapsula de forma tão perfeita a transição das guitarras rainhas da década de 70 para os sintetizadores que marcaram os anos 80. Das cinzas do post-punk de Joy Division, após a morte de Ian Curtis, para o boom pós-“Ceremony”, os New Order partiram à descoberta dos sons que viemos a apelidar de new wave e synthpop. Um mergulho na história, evidenciado em projecções no fundo do Palco Vodafone cuja área se preencheu como nunca nesta edição. O concerto, que no início até se mostrou auspicioso, cedeu-se à monotonia de Bernard Sumner e companhia, que se fazia valer pelo espectáculo de luz mas pouco pela intensidade sonora. O piloto automático, porém, poderia fazer-se valer a pena com os singles orelhudos deixados para a segunda metade do alinhamento.

Foi já depois de “Bizarre Love Triangle” que “True Faith” não teve mínima sorte, com falhas totais de som, recomeçada duas vezes e eventualmente encurtada. O sinal de que o som não voltou rapidamente ao nível exigido e esperado fez com que até “Blue Monday”, logo a seguir, tivesse outra entrada em falso na linha de voz: um marco da música electrónica, a celebrar os seus 40 anos, merecia outra atenção e menos passividade. Para terminar e já muita gente de costas voltadas a caminho de Blur, o Porto foi brindado com a faixa mais New Order dos anos de Ian Curtis, “Love Will Tear Us Apart”, mais uma vez com um entusiasmo monocórdico de quem está a fazer um frete. No dia em que o Manchester City foi campeão europeu de futebol, não foi a música dessa cidade industrial a ter a mesma coroação.

Durante o período da tarde, houve escolha a fazer. Fosse pelo legado de Sparks, que tomou o Palco Porto, ou pela novidade de Nation of Language no Palco Super Bock, somaram-se motivos para se apreciar a música com base de sintetizadores. Optámos pelos segundos e pela música actual, ainda que altamente influenciada pela estética new wave dos anos 80. As linhas de baixo viciantes, o recurso às drum machines e a presença do vocalista Ian Richard Devaney, que se deixou dançar incessavelmente, foram suficientes para aglomerar pessoas para escutar temas da estreia Introduction, Presence e também do mais recente álbum A Way Forward. Sinal mais, tal como a presença de Julia Holter no Palco Plenitude umas horas depois. Com nova formação, com destaque para o habitual Tashi Wada nos synths, a artista norte-americana actuou no Primavera Sound Porto in between assignments, sem novo álbum anunciado mas com temas novos incluídos no alinhamento. Talvez uma forma de ver como estes funcionam ao vivo, intercalados com “Sea Calls Me Home”, “Silhouette” ou a experiência catárctica que é ver “Betsy on the Roof” ao vivo: a impressão foi bastante positiva e é sempre um prazer.

Em sinal menos, Yves Tumor fez da sua pop abrasiva e experimental como contraste da produção industrial de Halsey, que à mesma hora no Palco Porto potenciava até fogo em palco. No Palco Super Bock, a música difícil de catalogar de Sean Lee Bowiem, que trouxe consigo o longo título Praise a Lord Who Chews but Which Does Not Consume; (Or Simply, Hot Between Worlds), fez do exagero a sua arma e a dada altura o próprio admitiu este ter sido «o seu último concerto de sempre» e que estavam a separar a banda. Pouco de valeu, com Chris Greatti a procurar algum conforto a jogar solos de guitarra junto do público com outras palavras além-compreensão. Ficou o conceito.

O período da tarde permitiu duas propostas diferentes de novo rock. O punk rock dos canadianos PUP, em estreia nacional, apresentou-se com uma dose extra de energia naquele que foi o último concerto da sua digressão. Houve mosh constante, criaram-se elos de ligação entre as pessoas que jogavam jactos de cerveja ao ar a cada tema e avistou-se uma bandeira trans na amplificação, sinal de apoio nos dias que correm. Houve tease de “Back In Black” de AC/DC para mostrar a devoção ao rock, mas foi muitas vezes de pop punk que se falou nos temas de The Dream Is Over, intercaladas com as mais violentas de Morbid Stuff. Do Palco Plenitude para o Palco Porto, coube aos Yard Act provar porque são um dos novos nomes sonantes do post-punk britânico. Houve um atraso substancial de quinze minutos, faltando-lhes a pontualidade característica, mas houve palavreado logo na introdução da primeira faixa, “Dead Horse”. «Tenham paciência, é a primeira vez no vosso país», jogou James Smith, debaixo de um sol abrasador. A dimensão do palco não permitiu melhor encaixe com o público e perdeu-se o imeatismo necessário para demonstrar os bangers de The Overload, álbum de estreia lançado no ano passado.

O Primavera Sound Porto terminou com um milagre. Ver os Unwound de regresso aos palcos vinte anos depois já era assinalável o suficiente, mas testemunhar em formato parede de som tornou-o ainda mais memorável. A reduzida plateia, talvez movida pelo clubbing pós-Blur ou pela caça de táxis e ubers no regresso a casa, foi brindada no Palco Vodafone com jardas de New Plastic Ideas, Fake Train e Repetition, três discos que potenciaram o post-hardcore e o noise rock da banda do Noroeste Pacífico na década de 90. Durante o feedback da final “Were Are and Was or Is”, foram distribuídas as flores que repousaram em jarros de água ao longo de todo o concerto junto dos monitores de palco. «Finalmente, música!», gritou-se de braços abertos neste momento. Ficou o perfume floral de uma dádiva que durante vários anos foi o mote principal do festival: saber que se testemunha o irrepetível e os cúmplices acenam entre si. Foi com a aposta em raridades destas, para fãs devotos de longa data, que o Primavera Sound ganhou a sua marca tanto em Barcelona como no Porto.