Spiralist e Icosandria no CMMG. Contrastes emotivos de experimentalismo irreverente

Texto: David Matos | Fotografia: Marina Silva

Foi no passado dia 22 de abril, sábado ameno em vésperas de liberdade, que dois projetos de futuro auspicioso desceram da Cidade Invicta à Capital do Vidro, numa visita tão inesperada quão bem-vinda. Inesperada pelo espaço que os acolheu, o Clube dos Músicos da Marinha Grande, um palco improvável (porventura uma estreia) para sonoridades que pendem para o extremo; bem-vinda porque ambos os projetos provaram que há futuro no underground nacional.

A juntar ao local invulgar, uma promoção do evento aquém do ideal (apenas a cargo das próprias bandas e círculo próximo) e ainda o desconhecimento dos nomes, reflexo da sua curta existência; tudo somado, uma sala com apenas três dezenas de pessoas, que acabou por encher não em moldura humana, mas em talento e energia.

Marcado para as 22 horas, o primeiro concerto arrancou quase uma hora depois, enquanto os últimos curiosos entravam na sala. O quinteto Icosandria abriu as hostilidades com a primeira de duas partes de A Scarlet Lunar Glow, mostrando desde logo atitude e energia. O público foi reagindo positivamente aos contrastes sonoros entre peso e melodia, que fazem jus à origem do nome da banda. Por entre Neverending, Yggdrasil e a segunda parte de A Scarlet Lunar Glow, os jovens músicos foram trilhando um saudável caminho no seu post-metal reminiscente sobretudo de Deafheaven, mas juntando à fórmula outras influências como Alcest e Opeth (mais evidentes na última música, Event Horizon, a melhor do alinhamento).

Da meia dúzia de temas apresentados, apenas um está disponível para audição pública, o single de 2022 Roshinu, onde os versos de agreste brutalidade se diluem num refrão melódico de beleza contagiante, uma simbiose perfeita de extremos que pautou todo o concerto. Com o aproximar da meia noite, a atuação findou e o vocalista e guitarrista Tiago Pereira fez os agradecimentos em nome da banda, deixando vontade de rever estes Icosandria num futuro próximo.

A principal atração da noite era o projeto Spiralist, do multi-instrumentista e compositor Bruno Costa, que se fez acompanhar em palco por um trio de músicos de outros projetos. Confesso ter-me apaixonado pelo álbum Eternal Recurrence em 2022, pelo que as expectativas eram altas, embora com algum receio da complexidade e ambição de alguns elementos sonoros poderem não resultar tão bem ao vivo. Passavam quinze minutos da meia noite quando, depois de um “shhhh” ignorado e de um “não vai a bem, vai a mal” assertivo, a Apocalypse Song tomou a sala de assalto, numa fusão sonora de post-black com bases industriais e pinceladas eletrónicas; não foram precisos outros tantos minutos para declarar os meus medos como infundados.

Toda a performance de Spiralist transpirou dedicação e atenção ao detalhe; Sun Ra foi a mesma viagem ao vivo que me tinha conquistado na versão de estúdio, com aquele riff contagiante na abertura, a passagem quase Dream Theateresca, a inquietude da eletrónica experimental e o crescendo do caos organizado que transpirou para o pouco mas enérgico público presente. Com The Church Dyed Black, metade da história do concerto ficou contada, mas a totalidade da vida de um dos amplificadores se consumiu, tendo sido a banda levada a um intervalo forçado.

O regresso foi com o tema título de Eternal Recurrence, na sua versão abreviada, um momento mais melódico e de aura hipnotizante. Blood Moon foi a faixa representante do disco de estreia Nihilus, um registo de post-black mais agressivo mas com nuances progressivas. A explosão final foi com a imponente Deus Ex Machina, uma viagem alucinante que rouba um pouco de todos os elementos que tornam este projeto único.

Oito minutos após a uma da manhã, os últimos acordes ecoaram, e o bicho de palco Bruno voltou à sua versão afável para agradecer ao espaço e ao público, ambos longe daquilo que ambas as bandas mereciam em termos de condições e número. Mas algures na inegável qualidade de Icosandria e Spiralist, tanto em composições como em entrega ao vivo, está a promessa que palcos mais dignos e compostos virão. E nós, quando pudermos, estaremos lá com admiração redobrada.