Jameson Urban Routes. O rock em português sob o peso industrial

O Jameson Urban Routes é já há largos anos – há mais de uma década – uma passagem de referência na rota dos festivais da meia-estação, fazendo a ponte perfeita entre a rentrée de algumas salas da capital e a intensidade daquele mês de Novembro que sempre nos preenche a agenda. Neste 2018, mais uma vez, o JUR foi isso mesmo na sua casa de sempre, o Musicbox. Foi um ponto de visita de alguns artistas consagrados ou emergentes a passar por Portugal (Iceage, Damien Jurado, Boogarins, Author & Punisher, Brodinski) e também veículo da canção made in Portugal, entre novos e velhos da cena (Mão Morta, B Fachada, Keep Razors Sharp, Sean Riley) num total de oito sessões divididas entre concertos e clubbing.

A primeira sessão que visitámos foi ao segundo dia do festival, a 24 de Outubro, encabeçada por Mão Morta. Mas antes que o legado da banda de Braga triunfasse naquele refúgio do Cais do Sodré, foi Tristan Shone a subir ao palco enquanto Author & Punisher. Engenheiro mecânico de formação e dado à transformação literal da música industrial, opera a sua maquinaria singular para beats ferozes e texturas hediondas, testando à brava os graves do espaço. Foi a primeira sessão esgotada do Jameson Urban Routes – muito por culpa da banda que se seguia – mas facto é que nem Adolfo Luxúria Canibal e companhia, a marcar presença nas primeiras filas, não quiseram perder a oficina sonora de Tristan. Com uma catadupa de frequências dissonantes a serem castigadas pela dureza das batidas, Tristan figura sozinho em palco mas tem trabalho para mais um par de pessoas no controlo de fios e de distâncias entre eléctrodos pendurados. Estreou-se em Lisboa e apresentou temas do novo Beastland, editado em Outubro pela Relapse Records, que ganha novos contornos melódicos a nível vocal. Foi no entanto “Terrorbird”, sacado do álbum Ursus Americanus, que conseguiu a maior resposta de um público sedento de vigor e fúria fabris.

A desmontagem de palco de Author & Punisher e a consequente preparação da mesma área para Mão Morta não aborreceu. Ao mesmo tempo que a ansiedade foi aumentando, também o ouvido ficou quente depois da experiência anterior. E importante era, de facto, estar quente. Foi “Frio”, novíssimo tema e provisoriamente (ou não) assim intitulado, que serviu de entrada de Mão Morta em palco. «Hoje estamos mais apertadinhos, vai dar para aquecer», rematou Adolfo antes de tremer e afagar de forma expressiva. Um crescendo quase pendular com o protagonismo a dividir-se entre a massa de delays na guitarra e o discurso do distanciamento que divide o mundo. Um bom sinal para o trabalho que aí vem antes de abrir o livro ao passado. Não demorou a chegar “Tiago Capitão” nem “Chabala” para finalmente recordar os 30 anos do lançamento do primeiro trabalho, homónimo, de onde saíram “Carícias Malícias” e “Sitiados”.

O passado distante encontrou-se com o passado recente em “Pássaros a Esvoaçar”, com a voz a ser carregada sobre braços naquela cadência de melodias que tornaram este tema um clássico instantâneo da sua discografia, e finalmente ficou derrubada a barreira público/banda. Assim sendo houve todo um duplicar de entusiasmo para “Destilo Ódio” e “Tu Disseste”, momentos persuasivos de expressão corporal pela maioria do público. A banda, visivelmente bem disposta e brincalhona com «as novas tecnologias» que pontualmente atrasaram o início de um dos temas, mantém-se agarrada a temas marcantes mas distantes da sua carreira, como foi o caso de “Penso Que Penso” e “Aum” antes da sua despedida de palco. Mas com “Velocidade Escaldante” regressaram, admitindo uma mera formalidade, antes de espetarem “Facas em Sangue” para o fecho de um alinhamento vertical sobre a sua discografia. Para os Mão Morta nunca são precisos temas óbvios – nem mesmo “1º de Novembro”, sempre entoada pelo público – e essa liberdade permite que cada um dos seus concertos se distinga dos anteriores. Talvez seja por isso que é sempre um privilégio refrescante, por mais anos que passem e vezes que o façamos, testemunhar os Mão Morta em palco.

A nossa segunda e última visita ao Jameson Urban Routes fez-se no dia seguinte para a terceira sessão, com Keep Razors Sharp e Boogarins. A primeira é já uma consagrada super-banda que escolheu este Musicbox como local de apresentação do seu segundo capítulo da carreira, Overcome, quatro anos depois do lançamento do seu álbum homónimo de estreia. Os Keep Razors Sharp juntam membros de Sean Riley & The Slowriders, The Poppers e Pernas de Alicate, por exemplo, e celebram o rock de leitura psicadélica com rasgos de shoegaze ou pós-rock tão evidenciados em singles que saltaram logo ao ouvido na estreia, como “I See Your Face” e “The Lioness”. Neste segundo disco há “Always And Forever” e “Dead On Arrival” prontos a atacar as rádios com um rock ainda mais atrevido. Atmosfera fria, pujança rítmica, guitarras esvoaçantes e um sentido melódico vocal são ingredientes que, tanto em estúdio como em palco, fazem parte da identidade desta banda.

Do frio para o quente, os Boogarins chegam da brasileira Goiânia e o Jameson Urban Routes foi um dos locais de passagem da sua mini-digressão em solo português. Um fenómeno de popularidade e prontos a somar mais e mais visitas em diversos festivais e salas de norte a sul do país, os Boogarins prosseguem o seu percurso no rock psicadélico aliado à doçura do sotaque do Brasil. Com eles Lá Vem a Morte, como dita o nome do mais recente álbum, juntamente com os discos anteriores, Manual (2015) e As Plantas Que Curam (2013), e uma hora de sorrisos e reconhecimento de uma banda que já nada tem a provar depois das consecutivas presenças por cá. Nem a propósito tal aconteceu com o seu regresso já entretanto marcado – no mesmo Musicbox a 12 de Novembro – onde poderão ser tocados os temas que inevitavelmente acabaram de fora do alinhamento, como o caso de “Lucifernandis”.

Texto: Nuno Bernardo e Filipa Valente
Fotografia: Ana Viotti/Musicbox Lisboa