É difícil perceber, por questões intergeracionais, se quem inicia a leitura deste texto se lembra da frustração de não receber o Ozzy Osbourne no seu Ozzfest no Restelo, no longínquo ano de 2002. Quem preencheu na passada segunda-feira, 2 de Julho, as bancadas e plateia da Altice Arena, em Lisboa, foi uma curiosa mistura de faixas etárias que muito revela sobre o estatuto de uma lenda viva – o “velho” Ozz para uns ou o “tio maluco” para outros, mas sempre o eterno frontman do evangelho do heavy metal doutrinado pelos seus Black Sabbath.
Disposto a despedir-se do mundo dos palcos e das extensas digressões, Ozzy, que caminha para o seu 70º aniversário, partiu para a “No More Tours II” a incluir Lisboa no capítulo europeu. Sabe-se que o caso é sério quando a banda de abertura convidada é quase tão influente e histórica, trazendo consigo os Judas Priest para um farto banquete de heavy metal britânico. Pontuais como ditam os rótulos, foi às 20h00 certas que incendiaram a sala com “Firepower”, faixa-título arrancado ao seu mais recente álbum. A banda de Birmingham vive um período curioso da sua carreira, contrastando a vitalidade recente da sua carreira com as saídas dos guitarristas K.K. Downing (substituído em 2011 por Richie Faulkner) e Glenn Tipton, afastando devido à doença de Parkinson e substituído em palco por Andy Sneap.
O heavy metal musculado e oleado, carregado de cabedal e brilhantina, continua lá por inteiro. De outra forma não se poderia percorrer uma carreira tão recheada de hinos do género, como o caso de “The Ripper” e “Turbo Love” logo na primeira metade do alinhamento e a motivar interessantes projecções no fundo do palco. Sem meias medidas tanto a nível cénico como em termos de performance, os Judas Priest tiveram palco e espaço para um concerto só seu, fazendo cair esse prejuízo das primeiras partes com uma identidade inalterada. A recta final com “You’ve Got Another Thing Comin’”, “Hell Bent For Leather” e sobretudo “Painkiller” fizeram ferver a plateia com um frenesim de solos de guitarra e de oitavas escaladas por Rob Halford, que ainda é dono de uma invejável capacidade vocal. Uma Harley em cena e Glenn Tipton a surgir discretamente no lado direito do palco para o encore foram dois dos momentos mais altos de uma actuação que terminou com “Metal Gods” – que o são – e “Breaking The Law”, para ficar a ecoar no desejo de que os Priest ainda cá voltem, para efeitos de despedida ou não.
A longa espera para finalmente receber Ozzy Osbourne em Lisboa só foi ganhando proporções bíblicas com o aproximar da hora. Assim se justificou o estrondo com a entrada de “O Fortuna”, obra clássica de Carl Orff, a acompanhar imagens do percurso infantil, juvenil e adulto da vida do músico, culminado com a apoteótica recepção assim que o músico entrou em palco. O pequeno bate-papo cordial que se seguiu, de quem achou necessidade de dizer «olá» em formato de lamentação, a plateia uivou para “Bark At The Moon” para iniciar uma dimensão de espectáculo carregado de detalhes e que incluiu, maioritariamente, temas de Blizzard Of Ozz e No More Tears, dois dos seus mais icónicos álbuns a solo. Do primeiro não tardou a dar-nos “Mr. Crowley” e “I Don’t Know”, mas ao quarto tema nova glorificação chega na forma de “Fairies Wear Boots”, na primeira memória arrancada de Black Sabbath.
Ao longo do concerto várias noções transformaram-se em evidência. Ozzy Osbourne não é apenas uma figura de respeito, mas também um símbolo de entretenimento e boa disposição. Vimo-lo despejar um balde de água sobre a cabeça antes de o direccionar ao público e vimo-lo assumir-se como figura secundária, isto em prol do descanso, para distribuir os holofotes sobre a banda que o acompanha nesta digressão de despedida. “Suicide Solution”, “No More Tears” e “Road To Nowhere” abriram caminho para a longa “War Pigs” num dos momentos da noite, inteiramente ligada um medley protagonizado pelo baixista Rob “Blasko” Nicholson, pelo teclista e guitarrista Adam Wakeman, mas sobretudo por Zakk Wylde e Tommy Clufetos. O primeiro desceu ao público e percorreu os gradeamentos de guitarra às costas (e até com os dentes) para um longuíssimo e quiçá exaustivo solo de milhares de notas, fazendo-se valer pelas fotografias que permitiu aos fãs presentes no Golden Circle da plateia; já o segundo protagonizou, como ordena o cânon de um grande concerto de rock, um virtuoso solo de bateria.
Este longo medley, constituído por “Miracle Man”, “Crazy Babies”, “Desire” e “Perry Mason”, terá permitido a Ozzy revitalizar um pouco as suas baterias para afirmar “I Don’t Want To Change The World”. A despedida de cena deu-se com “Shot In The Dark” e “Crazy Train”, claro, para regressar quase de imediato para um encore a troco de um «ONE MORE SONG» requisitado por si próprio. Uma emotiva “Mama, I’m Coming Home” e uma rapidíssima e pesada “Paranoid” resultaram numa saída gigantesca que deixou de pé toda a bancada da arena.
À saída constata-se que em palco não se está perante o Ozzy das séries familiares, das polémicas televisivas ou das letras gordas da imprensa especializada que lhe cita mais uma frase controversa. Estamos perante um redentor, que cai sobre si uma cruz e que se agiganta perante a exigência da idade, das críticas e da morte constantemente anunciada (e adiada) do rock clássico. Não se trata de uma referência só para os que vestem de negro, pois a Música não tem cor e as lendas são universais – em Lisboa celebrou-se a sua carreira em pleno mas, sobretudo, a sua vida.
Texto: Nuno Bernardo
Fotografias cedidas pela promotora Everything Is New