Milhões de Festa. Um décimo aniversário de risco assumido por um festival sem fronteiras

Num ano em que o Milhões de Festa soprou dez velas, fomos uma vez mais até Barcelos celebrar uma edição feita de surpresas, algumas desilusões, de macarrão no Taina e do já incontornável e difícil de descrever encanto desse festival minhoto. Não era, certamente e à partida, o mais forte alinhamento que o Milhões de Festa havia reunido ao longo dos tempos. De entre os nomes que actuaram no Palco Milhões, contam-se por menos do que os dedos duma mão aqueles  que nos prenderam até ao fim. De entre esses, destaque máximo para o concerto duns senhores chamados Enablers, que têm em Pete Simonelli um dos mais carismáticos líderes que vimos subir a um palco em algum tempo. Tal presa nas mandíbulas de um animal selvagem estava aquele microfone nas mãos de Simonelli, dispondo autênticos poemas à mercê de uma guitarra do tamanho de um paredão e de uma secção rítmica saída da sujidade de um beco do norte da Califórnia – e bem que podiam ter tocado num, até porque a meia dúzia de gatos pingados que ali estava teria certamente cabido. Destaquemos também o set de Yussef Dayes, hipnotizante como poucos atrás da sua bateria e do alto do seu Black Focus, um dos mais belos discos que o jazz pariu esta década; num só concerto a três elementos, conseguiu reunir-se ali mais talento do que no que pareceram ser dez anos de concerto dos Graveyard. Os Bad Breeding fecham o pódio do palco principal, com um set de rock barulhento, sem merdas e artifícios e que finalmente fez levantar alguma poeira à beira rio, chutando para lado a deprimente actuação que ali deixaram os Pop Dell’Arte e o sabor amargo do desapontante set de The Gaslamp Killer noites antes.

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Depois de dois primeiros dias especialmente despontadores, e de entre os quais só o supracitado concerto dos Enablers encheu as medidas, foi ao terceiro dia que a 10ª edição do Milhões de Festa pareceu despertar realmente. A colaboração entre MMMOOONNNOOO e Quim Albergaria abriu o Palco Piscina que nem um trovão de drones graves e das contorções de uma bateria que era espancada e engolida pelo meio da mistura. Trovão maior veio ao final da tarde e de bem mais a norte. Oriundos do reino unido e sob a batuta de “MAXIMUM ALE YIELDS MAXIMUM RESULTS”, o que os Sly & The Family Drone deixaram em Barcelos foi nada mais nada menos do que um concerto para a eternidade. De parafernália montada no curto espaço entre o palco e um salto para dentro de água, era dali que partia o assalto feito a power electronics e ruído ensurdecedor, uma cacofonia de fuzz e de percussão anárquica tornada liberação. Voavam copos de cerveja, baquetas e o que houvesse ao alcance de um braço. Tão rapidamente como surgiram montados, haviam bombos e tambores  a ser desmembrados e entregues pela plateia fora. Passado pouco mais de meia hora havia um Matt Cargill em ceroulas brancas no cimo de um Ampeg e uma plateia e uma banda em uníssono quase religioso; os sorrisos na cara não deixavam margem para duvidar, estava ali dado o concerto do ano, nem era preciso ver mais nada.

Horas mais tarde e no aconchego do Palco Lovers, as actuações de Moor Mother e Yves Tumor provaram-se particularmente difíceis para o espaço e hora da noite. Despejando ambos uma intensidade capaz de fazer ranger dentes e de rivalizar com qualquer liberdade poética que se queira tirar ao punk, sofreram os dois por furar um público que parecia pedir outra coisa que não a electrónica densamente experimental que cuspia o PA. Teriam sido arrebatadores, tanto um como outro, num outro espaço e para quem os quisesse realmente ouvir.

 

A tarde do último dia de Milhões de Festa chegou com a infeliz notícia cancelamento de Powell, o que pedia que se afogasse a mágoa em cerveja e putaria variada. E que melhor para putaria variada do que uns tais de Shame a partir tudo em tronco nu?  À boa moda britânica com lúpulo e malte a deslizar no lugar do chá das cinco, os Shame tocam rock fácil e de cara lavada, de garganta feita e de suspensórios aos ombros; uma das boas surpresas desta edição do festival minhoto. Seguiu-se Jamal Moss e o techno cósmico do que é a sua persona como Hieroglyphic Being. Hipnotizante como poucos na sua fusão da techno com o que é uma vertente quasi-jazz, Moss domina a mesa de uma forma que só os anos podem garantir, como um verdadeiro e autêntico mestre na sua arte. Na mesma noite de domingo em que os Bad Breeding abriram o maior pit do Milhões, foram os Meatbodies quem horas antes abriram autênticos buracos nos tímpanos de toda a gente que encarou de frente o rock fumarento do quarteto Californiano. Os Meatbodies são uma daquelas bandas que amplifica em palco, e para proporções verdadeiramente épicas, tudo aquilo que se lhes atribui em disco, juntando-lhe o suor de doses industriais de psicadelia tocada a 120dbs. Mais alto ainda, meus filhos da puta, que assim vale a pena ficar surdo.

Saímos do recinto depois de armados todos os comboios ao som das últimas batidas de DJ Fitz e Quesadilla em modo MC, com a sensação duradoura de que este não é mesmo um festival feito de ideias fixas ou de convenções. Não foram muitos os concertaços mas ainda foram alguns os concertões, com o maior amargo de boca os nomes a ser deixado pelos nomes dos quais mais se antecipava. A décima edição do Milhões de Festa não terá sido o aniversário perfeito. Sobretudo salvo pelos actos que perfizeram a sua segunda metade, este  foi o aniversário possível, um que viveu do risco assumido do que é um festival sem fronteiras.

Texto: Rui P. Andrade
Fotografia: Rafaela Bernardo

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