Os vinte anos da maior demonstração de metal extremo existente neste fim de Europa prometia alguns dos melhores concertos que passaram na vila de Barroselas nos últimos anos. Naturalmente pela presença de Mayhem (expectavelmente sem os incidentes que num passado já longínquo impediram a estreia dos noruegueses em terras minhotas) mas também pela presença de nomes como Inquisition, Oranssi Pazuzu, Extreme Noise Terror ou Corpus Christii.
O facto da experiência de Barroselas transcender a “mera” qualidade do cartaz faz com que haja sempre uma componente emocional e até quase espiritual a considerar quando se fala dum SWR porque o tão badalado convívio, as tentativas de acabar com stocks de álcool ou o consumo elevado de todo o tipo de drogaria pesam substancialmente nos balanços pessoais: na esmagadora das vezes tornam-nas mais benignas porque depois de uma mini minada ou dum saco de erva desbaratado já há muito pouco que possa repugnar. Procurar uma certa abstracção destas condições é exercício fútil e, sobretudo, artificial.
Tais condições exógenas influenciam tanto a percepção do que se vai passar como qualquer pré-concepção do que a banda A ou B valem em palco: ninguém vai mesmo confirmar que aquela banda de thrash que soou igual a todas é mesmo tão manhosa como parecia… a não ser que a sobriedade já não abunde. Este equilíbrio entre um filtro ganho com anos de concertos que vão mastigando ouvidos e refinando inclinações estéticas; e a vertigem dum momento que trespassa os momentos musicais.
Dia 1 – 28 de Abril
O primeiro dia é de facto o segundo: no anterior já tinha havido o concurso para saber quem ia tocar meia hora ao Wacken e consta que já Test tinha tocado também. Nada de grave que os brasileiros iam voltar, e voltar, e voltar…
O primeiro concerto de que se poderia esperar algo era de Valborg mas o começo foi mesmo em falso já que os alemães tiveram ao nível de alguns dos nomes das suas obras (Nekrodepression… de 2012): previsíveis, escorregadios e a estragar os (poucos) bons momentos com elevadas doses de azeite. O combo “da casa” com Holocausto Canibal e Besta cumpriu a tarefa de elevar a intensidade depois do soporífero alemão, embora só os portuenses tenham realmente entusiasmado porque, e toda a gente devia saber, gore é sempre superior a pose.
O que se seguiu voltou a reduzir a velocidade de forma substancial e é necessário ter o poder de síntese que teria dado tanto jeito no concerto de Pillorian: é basicamente uma tentativa de transformar Agalloch numa banda de “black metal”. As aspas são basicamente porque da mesma forma que a antiga banda de John Haughm tentava disparar em várias direcções, o mesmo acontece com a actual. A agravante é que num estilo tão difícil de reproduzir ao vivo, as limitações dos americanos ainda ficaram mais patentes. Foi sobretudo com enfado que se percorreu Obsidian Arc quase duma ponta à outra, álbum de estreia da banda de Portland.
Os Marginal terminaram de imediato com os bocejos: o ataque foi misturando o melhor do d-beat com death metal violento e cheio de bolor. Embora tenha sido quase impossível não pensar que estava em palco uma certa banda de Birmingham, a aparição dos belgas foi bastante pertinente mesmo tendo em conta uma certa saturação do género no festival.
Após o cancelamento do ano transacto, a primeira confirmação para a edição deste ano proporcionou um dos momentos mais festivos do festival. Aborted terá sido o momento em que o festival esteve mais perto do pop. Não numa apreciação meramente sonora, evidentemente, mas a fórmula usada corresponde a um estado de “maturação” do death metal dos anos 90 que lhe retirou boa parte da negritude anterior em virtude de velocidade, técnica e uma ideia pífia de brutalidade. No fundo o que acontece (de maneiras esteticamente diferentes, entenda-se) quando o pop entra em contacto seja com o que for: estandardização e banalização. É bom referir que nada disto retira a capacidade dos belgas de dar um concerto exemplar: a execução é absolutamente irrepreensível (o baterista Ken Bedene está na fronteira do humanamente possível), a comunicação ajuda a que se faça a festa (daí as imensas incursões em palco) e o repertório é bastante vasto. A ênfase que se dá a virtualidades e defeitos pode variar mas torna-se difícil achar momentos memoráveis no meio de tanta coisa que só lá está para marcar pontos.
As coisas passaram a ficar bem mais sérias quando The Ruins Of Beverast assomaram no segundo palco. Uma das forças mais prolíficas dos últimos anos dentro do black metal atmosférico, o projecto de Alexander von Meilenwald cumpriu expectativas mas fica uma clara sensação de insuficiência face ao que está patenteado em álbum, particularmente em obras como Rain Upon The Impure ou Foulest Semen Of A Sheltered Elite. Em estúdio há uma sensação de sufoco permanente apoiada por momentos que conjugam ritmos quase mecânicos com teclados épicos apoiados por uma nuvem de dissonância que emana do omnipresente uso do trémulo. Infelizmente ao vivo os pormenores perdem-se e a dimensão quase transcendente da música de TROB sofre imenso com isso. É claro que continua a ser uma experiência intensa e com momentos grandiosos mas fica uma sensação de insuficiência quando se percebe que Exuvia se torna, em concerto, num álbum pouco mais do que “bom”.
O que faltou aos germânicos sobrou (e muito) à autêntica instituição que dá por nome de Inquisition. Com um som mais dado a espaços intimistas, os norte-americanos não se incomodaram minimamente com o facto de tocarem no maior palco de Barroselas e proporcionaram mais um momento memorável num sítio onde sempre foram sublimes. Com o mais recente Bloodshed Across The Empyrean Altar Beyond The Celestial Zenith a merecer destaque mas sem esquecer uma discografia riquíssima, a abordagem única ao black metal feita pelo duo foi o melhor que se viu no primeiro dia do festival. Em Inquisition é difícil encontrar algo que não seja único e imediatamente reconhecível: as mudanças de velocidade, o som de guitarra e claro, a voz. Tudo se conjuga para criar uma neblina sonora densa e farta em propriedades psicotrópicas. Na realidade, Dagon percebeu há muito o verdadeiro significado de psicadélico e quem assistiu fica com a certeza que esse não mora nas terras do Ribatejo.
É complicado manter a intensidade num concerto de uma hora, ainda mais quando é de black metal que se fala mas como tudo em Inqusition, isto foi uma excepção. Parece “fácil” quando se tem no alinhamento monumentos como “Desolate Funeral Chant” ou “Astral Path To Supreme Majesties” a sublinhar a excelência e, tão incrível como o tocado, é o que ficou de fora, como por exemplo (e que exemplo, diga-se) “Crush The Jewish Prophet”. Se a noção abundasse nalgumas cabeças que andam a brincar ao black metal há demasiado tempo, este concerto seria responsável pelo fim de milhares de clones.
O que se seguiu foi um desagradável clamor de banalidade na forma dos suecos Antichrist. Aquela banda de thrash igual a tantas que se falou na introdução? Foram eles.
Os Master têm, evidentemente, outro pedigree e a actuação foi competente quanto baste e os clássicos desfilaram como era obrigatório. Tudo muito previsível e automático mas pelo menos já não era Antichrist.
Para o final da noite estavam reservadas duas propostas nacionais: The Ominous Circle e Enlighten. No caso dos primeiros confirma-se que há quase sempre um certo delay em Portugal e isso acaba por pesar na avaliação de colectivos que têm demasiado em comum com certas bandas que têm imenso hype de há uns anos a esta parte. É inevitável a sensação de se estar perante os Portal dos pobrezinhos mas quando a referência são os mestres australianos não podem haver queixas de maior nomeadamente quando a execução é competente face ao que pode ser escutado em Appalling Ascension. No segundo caso já não se pode dizer o mesmo: se em estúdio Illvmantithesis é uma proposta aceitável, o concerto acusou uma certa falta de coesão (de notar que ambas as bandas se estrearam ao vivo) e os momentos mais melódicos foram penosos, algo a que a qualidade do som não foi alheia. E consta que Test tocaram outra vez.
Dia 2 – 29 de Abril
Já depois de Vircator e My Master The Sun terem aberto o dia num ritmo bem mais lento do que aquele que havia marcado o dia anterior, os italianos Fides Inversa fizeram questão de elevar os bpm’s. Mais do que um alinhamento em modo quase all-star (embora, em abono da verdade, muito à conta da hiperactividade do baterista Gionata Potenti), os italianos apresentaram-se consistentes e surpreendentemente multi-facetados uma vez que os trabalhos anteriores ao último EP tinham uma abordagem bem mais directa na sua comunicação com o portador da luz.
O ambiente ritualístico funcionou bem na abertura daquele que seria o dia mais ocupado do festival e isso percebia-se logo quando pouco passava das sete da tarde e já Cobalt subia ao palco principal. A banda do Colorado é um bicho estranho e em permanente mutação na área dos recursos humanos mas também do som. Depois de terem “despachado” Phil McSorley (SJW oblige) e mudado radicalmente desde os tempos de War Metal e novamente em Slow Forever, era com alguma curiosidade que se podia esperar pela actuação. Na verdade, o que se passou foi uma sessão de neo-Cobalt onde só Gin esteve representado para além do álbum de 2016.
Tal facto acaba por obrigar a dar um passo atrás na análise e redobrar as cautelas uma vez que enquanto proposta estética que procura encontrar um outro tipo de obscuridade na vastidão de um estado vagamente populado e dominado pelas paisagens rochosas, dificilmente se consegue arranjar melhor que Cobalt. Fazendo um parêntesis, é necessário notar que o ambiente quase de western que atravessa o último álbum não é propriamente novo (embora agora seja mais prevalente) e é bem diferente daquilo que geralmente domina o USBM produzido nas grandes metrópoles costeiras dos Estados Unidos, e também por isso a banda sempre foi única.
Com estas contingências mentais todas a pesar (a favor e contra), o concerto foi mesmo assim uma demonstração categórica de algumas das melhores qualidades do colectivo: insanidade na forma de riff, um baterista com padrões invulgarmente criativos (que máquina é Erik Wunder) e um vocalista possesso, sendo que neste particular há que dizer que Charlie Fell foi caminhando uma linha fina entre intensidade e melodramatismo, o que acaba por não admirar já que tanto fez parte dos enormes Lord Mantis como dos lamentáveis Abigail Williams. Claro que tudo correu bem quando a doentia “Gin” começou a soar porque nada pode correr mal numa banda que se lembrou disto de “Hemingway save me/ Hemingway get me really fucked up” e fecha com a épica “Slow Forever”. Um dos momentos a recordar da vigésima edição do SWR.
Por motivos bem diferentes, os GoldenPyre também eram uma das bandas mais aguardadas do dia. Se há casa da banda dos Veiga é esta e a história do festival é indissociável do trajecto da banda de Barroselas e o regresso foi bem mais do que nostalgia já que se apresentava o regresso com In Eminent Disgrace. O death metal continua obscuro e pestilento e foi uma transição perfeita para o que seguiria com Dead Congregation. Os gregos fizeram questão de cumprir todas as expectativas com uma demonstração exemplar de Incantation-worship como mandam as leis que só teve o problema de ter passado a correr.
Antes de Venom Inc. tocaram os multi-nacionais Darvaza para ajudar a exemplificar duas coisas: são o tipo de clones que deviam acabar depois de verem um concerto de Inquisition e que juntar membros de boas bandas não faz necessariamente algo que valha a pena ouvir. Avançando para os ingleses: para o bem e para o mal, um concerto deste género vive da nostalgia pelo que depende só da vontade de embarcar numa viagem pelo tempo de uma banda cuja a importância é inegável já que maior que a banda só mesmo a lenda de Venom. Uma hora deu para ouvir ao vivo aquilo que já não há paciência para ouvir em lado nenhum e para trollar os debates sobre quem eram afinal os “verdadeiros” Venom. Bastante relevante em 2017.
Não seria Barroselas sem a inevitável banda de grind a ocupar o cartaz e para isso lá estavam os Nashgul. A coisa até se podia ter composto com Oranssi Pazuzu mas infelizmente os finlandeses parecem ter ouvido a palavra psychedelic em demasia. Depois de Kosmonument o declínio tem sido evidente mas Värähtelijä ainda vale a pena ser ouvido, o que, infelizmente, não se pode dizer da sua reprodução ao vivo. O equilíbrio entre a ortodoxia (ainda que latente) e o psicadelismo foram a chave dos primeiros trabalhos pelo que quando se afastam para um ou outro lado dos polos que norteiam Oranssi Pazuzu, os desequilíbrios são evidentes. Salvou-se a sessão de noise que finalizou um concerto demasiado morno.
Os Grog vieram em missão urgente de reanimação e foram bem sucedidos porque é impossível não ficar uns momentos a olhar para Rolando Barros a desafiar limites de humanidade. Depois é só grindcore mas também não se pede mais.
Para ser totalmente coerente o que se disse de Venom aplicar-se-ia a Extreme Noise Terror, mas o facto de Dean Jones ser essencialmente um velho furioso ajuda muito à credibilidade da coisa. Muito longe vão os tempos em que ENT era uma banda exclusivamente para quem vai para Barroselas numa missão de abrir um canil (até tiveram direito a dedicatória), mas mesmo assim esse imaginário nunca está longe. Foi rápido, foi zangado, foi sujo mesmo com as reservas necessárias, ainda se pode dizer que vale a pena.
O fim da noite pode ser resumido assim: Alcoholocaust (também) é speed mas Systemik Violence foi o speed que faltava.
Dia 3 – 30 de Abril
O terceiro dia do festival era complicado: a aridez do cartaz em comparação com os dias anteriores contrastava com a presença de uns certos noruegueses e a possibilidade de um momento histórico a “encerrar” uma edição carregada de simbolismo.
Contrariando as previsões, os Warfect abriram os palcos principais com uma mistura interessante entre passado e presente. Se por um lado se sentia a violência rítmica tão típica de Slayer, por outro há influências claramente mais modernas (de bandas demasiado más para sequer mencionar). A vontade de distribuir pancada acabou por se sobrepor a qualquer reserva e alicerçados no mais recente Scavengers, os suecos revelaram-se uma agradável surpresa para iniciar o dia.
Seguirem-se os Avulsed, a dar um concerto ideal para se estar a fazer outra coisa qualquer e Gust com uma descarga furiosa de crust e hardcore, que embora tenha sido um claro upgrade face à banda anterior, acabou por perder o interesse rapidamente.
Nader Sadek veio impor algum respeito: liderados pelo artista visual egípcio do mesmo nome, o misterioso grupo apresentou-se com natural cuidado na vertente visual. No entanto, nem só do “poster” se fez a actuação uma vez que o death metal técnico que apresentaram, além de impecavelmente executado, veio embrulhado com momentos mais experimentais e uma queda para a dissonância que assenta na perfeição no registo vocal de Nader Sadek.
Dando continuidade às presenças com peso simbólico, Corpus Christii encheu o segundo palco com uma actuação dividida entre os trabalhos mais recentes e a passagem pelos primeiros álbuns. O contexto favorável de tocar num festival que também foi vendo CC crescer ajudou imenso a uma experiência de revisitação que se constituiu como um dos principais pontos de interesse do derradeiro dia de Barroselas.
É curioso verificar como “Throne Of The Proud” ou “Rape, Torture And Death” envelheceram tão bem apresentando-se hoje como exemplos de um determinado tipo de black metal mais caótico que parece ter desaparecido. “All Hail…” marcou o fim das hostilidades naquilo que teria sido a abertura perfeita para Mayhem.
Infelizmente ainda houve outro regresso na forma de Akercocke. A banda inglesa ficou conhecida durante alguns anos pela formalidade dos trajes com que tocavam em palco e realmente a gimmick fazia sentido visto que não seria de certeza pelo interesse da música que captariam atenções. A coisa melhorou com o encerramento de actividades em 2012 mas no ano passado voltaram a reunir-se numa incompreensível falta de respeito por quem queria mesmo era ver o Attila a explicar como se fazia.
Apesar deste percalço (que ainda foi prolongado com The Arson Project), os noruegueses subiram para a muito aguardada apresentação do lendário De Mysteriis Dom Sathanas, ainda hoje um dos álbuns mais visionários do género. Tal facto não pode apagar o facto de se estar perante um cadáver do que realmente foi Mayhem mas é quase impossível pensar nisso quando estão em palco, simultaneamente, um dos melhores bateristas nesta área e o melhor vocalista que o género já conheceu.
É algo desnecessário reciclar o discurso sobre a importância do álbum ou da banda no contexto do desenvolvimento do black metal, até porque isso obscurece um aspecto fundamental: De Mysteriis Dom Sathanas é um trabalho de avant-garde num sentido que a expressão carregava originalmente, ou seja, um álbum que procurava quebrar fronteiras musicais, mais do que simplesmente transgredir limites. Ainda que se ignore (erradamente) as contribuições que Mayhem fizeram a partir de 1994, o trabalho lançou por si só as bases daquilo que o black metal tem de melhor nos últimos anos: as estruturas “partidas”, dissonância como motor de todo o trabalho de guitarras e um afastamento considerável daquilo que eram uma série de maneirismos que marcam a primeira fase do desenvolvimento do género: no fundo enfatizar black em detrimento de metal.
Claro que isto tem uma importância relativa em concerto, até porque Mayhem se transformou numa banda que ultrapassa largamente o nicho de onde surgiram e isso origina a atenção de pessoas que não percebem o quão ridículo é fazer stage diving num concerto dos noruegueses. O que vale é que Attila Csihar estava lá como veículo para fora do mundo das coisas pelo que as mundanidades passavam a quilómetros mentais de distância. Com naturalidade o ponto alto desta edição de Barroselas: “the past is alive”.
O final da noite foi mesmo este. Sim, Vai-te Foder ainda mostraram que se estão a tornar num caso muito sério com o mais recente álbum e Steel Harmonics mostrou o quão fácil é impressionar “metaleiros”. Antes, Lich King fez questão de tocar “Black Metal Sucks”: ainda bem, se eles gostassem até podia desvalorizar. Ah, e Test tocaram outra vez.
Continua a ser quase obrigatório ir ao SWR porque todos os anos há sempre algo de superlativo a ver e a vigésima edição do Barroselas até foi das melhores considerando os últimos anos. Que continue por mais vinte.
Texto: Filipe Adão
Fotografias de Pedro Roque/Eyes Of Madness!