OUT.FEST. Uma viagem exploratória entre o rock e o jazz

A linha de continuidade do OUT.FEST, o Festival Internacional de Música Exploratória do Barreiro, permite-nos começar a dissertar sobre esta edição exactamente onde ficámos na anterior. O festival voltou a propor expedições sónicas nas suas mais diferentes variantes, questionando até a vulgar utilização do instrumento musical. Do jazz centrado no icónico Evan Parker ao rock psicadélico de Acid Mothers Temple, a cidade do Barreiro voltou a receber uma viagem exploratória difícil de definir.

Dia 1 – 6 de Outubro

Por força do hábito, da persistência ou da tradição, o OUT.FEST arrancou num Velvet Be Jazz Club esgotado. Os lugares limitados tornam privilegiada uma fatia do público do festival, podendo-se sentar ao lado de ilustres do jazz contemporâneo para o dia inaugural. Evan Parker esteve ali mesmo encostado a uma das paredes da enquanto o espanhol Agustí Fernandez revelou a sua sensibilidade auditiva através dos interstícios das cordas do piano. O pianista mostrou como explorar todos os argumentos não-convencionais do instrumento, assinando um registo pertinente e hipnotizante a escassos centímetros das várias dezenas de olhos da sala.

Também explorador activo do instrumento, adicionando-lhe diversas ferramentas e uma enorme dose de improviso, o francês Lê Quan Ninh foi mais do que um percussionista durante a sua actuação. Foi um pêndulo entre a paciência e a êxtase, entre a pacatez e a urgência, colocando-se como um pivot criativo ao fundo de uma segunda sala desta noite – a da Escola de Jazz do Barreiro, no piso de cima.  A improvisação como disciplina já foi por ele assinada em livro, Improviser Librement. Abécédaire d’une experience em 2014, mas nada é mais libertador do que uma instrução sem amarras como esta que deu no Barreiro.

Se de improviso era esta noite, o momento mais aguardado só poderia ser um improvável encontro entre Jamal Moss, Orphy Robinson, Yaw Tembé e Evan Parker. Improvável porque só aconteceu por convite do OUT.FEST a Jamal Moss, que actuou no festival dois dias depois enquanto Hieroglyphic Being. Uma formação em estreia absoluta e a revelar a mestria do improviso do jazz de fusão. A camada electrónica atmosférica de Moss encontrou no vibrafone de Orphy Robinson o balanço perfeito para alicercar as eventuras mais transversais do saxofone de Evan Parker e do trompete de Yaw Tembé. A terminar, Jamal revelou ter sido uma honra terem-no colocado ao lado de talentos tão célebres do jazz. A sua ingenuidade custou a reconhecer que a honra, e o prazer, foi de quem aplaudiu no final. Uma aposta grande do OUT.FEST mais do que ganha.

 

Dia 3 – 8 de Outubro

Ao sábado, o terceiro dia deste festival, reconhecido pelo seu cariz experimental, foi o dia de ocupar as instalações da ADAO – Associação para o Desenvolvimento de Arte e Ofícios, no antigo quartel de Bombeiros do Barreiro. O espaço, que ganhou uma decoração nova para a sua renovada função, que mistura inspirações e funde estilos, num estado de completa e progressiva mutação, espelha a manta de retalhos musical que a noite de 8 de Outubro nos reservava.

À chegada, na Sala da Oficina, o amontoado de cabeças de um dia francamente esgotado e a ausência de uma elevação de palco no centro da sala, impediam-nos de ver Hans-Joachim Irmler e Jaki Liebezeit, dois pilares que representam duas instituições do krautrock dos anos 70, na Alemanha, Faust e Can, respectivamente. À terceira tentativa de atravessar a densa multidão, lá nos foi possível vislumbrar as figuras de ambos os músicos em cima do palco. Irmler à esquerda, a tomar conta dos frios teclados cósmicos, e Liebezeit à direita, na bateria a assegurar a cadência dos ritmos e melodias hipnóticas e miméticas.

Van Ayres destoou por completo da frigidez alemã. O que inicialmente parecia ter uma certa aura sinistra, dado o DJ que aparecia de cara tapada no fundo do palco da Sala Grande, rapidamente e transformou num espectáculo animado de luz, cor e movimento mal Rafael surgiu, coberto por uma tapeçaria, acompanhado de duas bailarinas. A apresentar o registo de estreia Sorry Stars, contagiou os presentes a dançar e a pular como ele, no que culminou numa actuação animada e fora da norma, que acabou por marcar a noite.

Dada a elevada lotação, que tornava difícil a circulação entre salas e pisos da ADAO, ficámos pela Sala da Oficina, a tempo de ver começar os japoneses Acid Mothers Temple, um dos nomes mais esperados desta edição do festival barreirense. Começando com um estrondo e com volume digno do bom rock’n’roll, somos desde logo apresentados às incursões psicadélicas do quinteto, que expõe, simultaneamente, a sua veia experimental, a sua extravagância – não esquecendo um dos elementos, que, com vestes femininas, subiu para uma coluna, puxando pela audiência – e a energia sentida, enquanto na máquina vertiginosa eram adicionadas malhas clássicas do rock, de Black Sabbath a Joy Division. Depois de uma alegre festa e grande parede sonora que se prolongou além do programado e esperado, a guitarra de Makoto Kawabata foi pendurada nos holofotes, e deixada em cena até à próxima actuação.

Jamal Moss, um nome que já tinha aparecido em anteriores dias do festival, fechou a noite sob a insígnia de Hieroglyphic Being, uma persona que através da qual explora a música electrónica e de dança singular, com a qual animou a composta pista, ao final de um dia que consumou e confirmou o crescimento a olhos vistos da afluência ao OUT.FEST.

 

Na tarde de 9 de Outubro o OUT.FEST despediu-se com os escapes sonoros de André Gonçalves no Convento da Madre de Deus da Verderena. Uma ligeira sobremesa para quem atravessou três dias – no nosso caso foram apenas dois – de refeições de difícil digestão mas de singular sabor. O festival barreirense, cada vez mais procurado e esgotado por quem atravessa a barreira psicológica que é o rio Tejo, é já um porto seguro para quem não se identifica ou contenta com as fórmulas repetidas e estandardizadas pela maioria dos festivais de música. E há um ano apontámos a possibilidade do Barreiro arrebatar o título de capital do som exploratório. A julgar pela enchente verificada e pela efusividade do público, não parecem sobrar dúvidas quanto a isso.

Fotografia: Nuno Bernardo
Texto: Nuno Bernardo e Rita Bernardo