Amplifest. A sinergia perfeita na banda sonora do apocalipse

Porto, a cidade que nos faz apaixonar pela sua melancólica beleza escondida nas pequenas ruas onde nem o sol consegue alcançar. Porto, a quem todos chamam de Invicta e a quem todos encanta. Dez anos de Amplificasom, dez anos que prometiam dar o melhor presente, a toda uma comunidade que tem vindo a agradecer cada vez mais o trabalho de uma promotora que sempre tentou realizar sonhos dentro do mundo dos concertos e dos festivais, podendo criar assim experiências e memórias que ao longo de dez anos, e dos mais dez que virão, nunca irão desaparecer.

Com os melhores dez anos, só poderia vir o melhor fim-de-semana. Um entusiasmo crescia à medida que se descia as pequenas mas longas ruas do Porto que nos faziam apaixonar pelo rio que nos esperava ao longe. Mas estes caminhos não nos levavam à tão aclamante ribeira do Porto, mas sim ao Hard Club que se recheava de rostos curiosos, “mas afinal, o que vai se suceder aqui?”. O Amplifest. O festival que trazia rostos de várias nacionalidades, e que trazia aos repetentes mais uma experiência para relembrar até ao próximo ano.

20 de Agosto

A experiência começava, um olhar curioso pelo corredor do Hard Club que se compunha à medida que o tempo passava. As malas pesavam com CDs e t-shirts que nunca eram suficientes, o ruído de fundo fazia-nos estremecer por conta dos gongos em exposição que chamavam os mais curiosos. As cervejas circulavam à medida que as conversas enchiam os espaços silenciosos, conversas que nos faziam relembrar anos passados, concertos que cortaram a respiração, e conversas que nos faziam ansiar mais pelo que se avizinhava.

A Sala 2 chamava-nos, com cada vez menos espaço para ocupar. Aguardávamos ansiosamente para o concerto que ia abrir o fim-de-semana. As luzes apagam-se e eis que uma luminosidade apodera-se do nosso olhar com imagens intensas e indiscretas, o sludge e o doom acolhem-se em apenas uma nota e eis então que começa Redemptus. As cabeças faziam-se voar à medida que a batida nos obrigava e quando damos por nós, já estamos a voar ao som de Minsk numa outra sala a partilhar a experiência com pessoas diferentes à nossa volta.

O tempo voa quando se aprecia o momento, e o único caminho que existia entre os intervalos era aquele que nos permitia ir saborear mais um pouco de música. Escondidos por debaixo de mantos pretos, respiravam os Altarage. Uma sonoridade assoberbante em conjunto com luzes que nos faziam cegar, veemente, um concerto dentro de um manto escuro.

O sol ia descendo à medida que os concertos corriam, os olhares desgastavam de desejo as paredes embelezadas pelo artwork das bandas que se escondiam por entre as cabeças mais bisbilhoteiras. Numa destas paredes ouvia-se uma guitarra que se transformava num grito de chamado, “Your Best Years” era a música que estávamos a ouvir. Kowloon Walled City convocava-nos à medida que nos aproximávamos da sala e prendeu-nos naquelas quatro paredes com uma sonoridade lenta mas ao mesmo tempo aflitiva, num diálogo connosco.

Sinistro, um sinónimo e um nome. Sinistra a voz feminina que se sobressaia numa sonoridade psicadélica. Hipnotizante Patrícia e a sua sinistra voz. Uma voz que dançava em conjunto com todos os elementos em palco que mostraram que o português falado, cantado, gritado preenche e embeleza qualquer espaço.

Anna. Anna Von Hausswolff. O nome pronunciado sempre que se falava de curiosidade. O nome pronunciado sempre que se falava no que viria a seguir. Eu podia usar uma ópera de Wagner ou um poema de qualquer escritor que me remeta ao barroco. Podia usar pinturas, danças, histórias e até mesmo gestos para descrever o que se sucedeu naquela sala ao som de Anna Von Hausswolff, mas deram-me palavras. Uma voz aguda que assombrava-nos da sua fria beleza, um grito que nos fazia estremecer da sua linda dor. Um concerto repleto de beleza e arte, uma experiência única, ao estilo do Amplifest.

Oriundos dos Estados Unidos, os Kayo Dot de Toby Driver presentearam-nos com a sua magnética sonoridade repleta de sonhos abstractos mas com cuidadosos toques de ocultismo. Diferente de tudo o que havíamos visto o dia todo, mas uma agradável surpresa perto de um dia repleto de emoções.

O sol já se havia escondido, a melancolia da noite cobria as ruas do nosso Porto que se compunha ainda mais belo. O Hard Club deixava-se sufocar pelas pessoas que nele criavam novas memórias, e a Sala 1 preparava-se para receber aquele que viria a ser o concerto que conseguiria calar qualquer um.

O soundcheck já fazia palpitar, e eis que as luzes se apagam. Uma leve guitarra apodera-se da sala, atrás dela uma batida que se preparava para falar sozinha. “Death in Rebirth” foi a música que os Mono escolheram para nos prender de imediato a atenção, do novo disco Requiem For Hell, que já nos enfeitiçava apenas com aqueles minutos. A beleza das suas músicas instaurava-se como uma memória melancólica, de uma vida passada. Desconhecida. Os olhos não se deixavam abrir, e o nosso corpo dançava e seguia cada nota que era proferida. Estamos a sonhar. Dentro do Hard Club sonhamos e viajamos por onde nunca estivemos. Mono, a banda que sente a sua própria música mais do que qualquer um, e que em palco, se transforma nelas. Transformam-se nas músicas. Podíamos passar dias, meses neste estado de transe, mas heis que as luzes acendem-se com o final de “Everlasting Light”, e as palavras que ouvimos, são palavras que mencionam o regresso da banda ao nosso tão amado país em Novembro ainda deste ano.

O ambiente era traumático após o concerto de Mono, mas o Amplifest é o Amplifest, e por mais emoções que tenhamos a noite reserva-nos ainda mais surpresas. Roly Porter teve o papel de quebrar o feitiço criado pelos japoneses, e com a sua criatividade sonhadora mas ao mesmo tempo inquieta, terminou o primeiro dia de Amplifest como deveria ser acabado, com a música a encher-nos por completo, e satisfeitos para esperar até ao dia seguinte por mais.

21 de Agosto

O sol nascia para mais um dia de Amplifest, o Hard Club esperava ansiosamente para a chegada dos seus convidados, e nós, aguardávamos impacientemente todos os concertos do dia.

À medida que o café perdia as mesas vagas e que as escadas perdiam o seu pouco espaço, a Sala 1 preparava-se mais uma vez para abrir a sessão de concertos que nos prometia dar o melhor dia que o Amplifest já havia tido. Tiny Fingers enchem a sala com o seu entusiasmante rock electrónico misturado com um psicadelismo demasiado apetitoso para os nossos ouvidos. Os corpos mexiam-se e a sala compunha-se cada vez mais à medida que as batidas mudavam por vontade própria. Energético. Tesa preparavam-se para entrar em palco enquanto as últimas notas de Tiny Fingers ecoavam por entre as paredes, e não havia tempo a perder. A banda subia a palco e o tornava-se imperativo mudar para a Sala 2, onde as cabeças esvoaçavam e faziam-se confundir com a própria sala ao som das poderosas notas lançadas pela banda de Riga.

Os belgas The Black Heart Rebellion, após a sua última visita à capital para o Burning Light Fest, não podiam deixar de voltar para deixar a sua marca na Invicta. Ainda antes de subirem ao palco, a sala já se rendia à sua música da mesma forma que se rende aos multi-disciplinares projectos da Church Of Ra. No momento em que entram em palco, calam-nos com a sua quase frieza que nos fez estremecer e obrigar a assistir cada minuto do concerto.

Falando de frieza, os Névoa proporcionaram um quente inverno na sua poderosa actuação. Um vento de ar frio foi o que levamos, mas ao mesmo tempo tão acolhedor e aliciante que nos fez viajar pelo mar que se apresentava em palco. Uma viagem sonora que se misturava com vários estilos, mas que distinguia os próprios Névoa e o seu Re Un.

Sem fôlego, foi aquilo que retiramos do concerto de Caspian que se apressou a começar após a brisa gélida de Névoa. O post-rock mágico e sonhador da banda norte-americana obrigava que todos os cantos da sala fizessem parte da própria música. Nós tomámos o corpo da música – tornava-se física e os nossos sentidos direccionavam-se apenas para aquele momento.

Os concertos da noite aproximavam-se, mas antes não podíamos deixar de dar uma olhada nos australianos Hope Drone, que destruía o Hard Club com a preponderante voz de Chris Rowden. Para além de intenso, um black metal cru e nu que nos atravessava como um vulcão. Em palco fizeram dominar o álbum Cloak of Ash, prometendo e mostrando ser o primeiro de muitos, uma vez que a banda ainda tem muito para dar.

Pertencentes ao novo álbum a sair este ano, “10:56” e “Second Son of R.”, foram as músicas que deram abertura aos tão acarinhados Oathbreaker que, por muitas que sejam as vezes que pisem o nosso território, deixam sempre uma saudade. Caro Tanghe quebra o silêncio da sala com uma voz delicada. Frágil. Estamos a ouvir uma sinfonia que é quebrada com a voz a que estamos habituados, uma voz sôfrega que grita, grita e que não se deixa calar. De caras escondidas pelos longos cabelos, a única figura que se destaca é o manto gélido de Caro, que esvoaça à medida que esta faz pequenos ou longos gestos. Sofrida. Um concerto que rasgou a nossa pele com o próprio som.

Os germânicos Downfall of Gaia eram uma das bandas que mais gente ansiava ver do festival, contando as cabeças da sala e lembrando a passagem pelo festival em 2013. Com o seu crust punk que apropria elementos tanto do black metal mais atmosférico como do post-metal mais intenso, o concerto evocou um manto negro que puxou toda a gente para as entranhas da Terra, sufocando-nos na parede de som que debitavam.

O belga Colin H. van Eeckhout, voz de Amenra, tocou para uma audiência meio despida devido à posição ingrata de tocar antes de Neurosis, mas nem por isso se coibiu. Com o seu projecto CHVE apresentou-nos um drone hipnótico, distante daquilo que faz na sua banda principal, mas com a mesma profundidade e emoção, com faixas do seu novo álbum. A sua voz, meio cantada, meio sussurrada, aliada às projecções, fizeram-nos viajar e relaxar.

O Hard Club esgotava-se. Por onde quer que olhássemos um mar de gente interrompia a nossa visão, e obrigava-nos a ficar quietos. O que se está a passar? Por fim, o concretizar do sonho de muita, imensa gente. Os Neurosis pisavam finalmente um palco português, e as pessoas não se fizeram rogadas, fazendo fila à porta da sala e esperando ansiosamente o momento de entrar. Por fim, as portas abrem e toda a gente se apressa lá para dentro, à procura do melhor lugar. As primeiras notas tocam e a viagem começa. Todo um espectro de emoções correu o público. Desde há uns tempos que os Neurosis deixaram de parte as suas famosas projecções, mas nem estas foram precisas. O filme passava na nossa cabeça, uma autêntica trip psicadélica e demolidora. A idade nota-se ao observar as figuras em palco, mas ao debitar o seu post-metal monolítico, apercebemo-nos que a sua energia, e a sua sinergia, meteria inveja a muitas outras bandas mais recentes. No público, a entrega era total. Braços esvoaçavam, cabeças abanavam e alguns, mais apaixonados, acompanhavam na perfeição cada palavra. Vozes e instrumentos, banda e público, uma sinergia perfeita para a banda sonora do apocalipse.

Pouca gente teria vontade de ouvir mais alguma coisa depois daquele concerto, mas mesmo assim, quem se dirigiu à Sala 2 terá tido uma bela surpresa, se não mesmo um choque. Prurient apresentava-se pela primeira vez em Portugal, e ao olhar para Dominick Fernow em palco, muita gente terá esperado uma espécie de uma leve synthpop. O que se seguiu teve realmente momentos de synth, mas de pop ou de leve nada tinham. Fazendo jus aos mitos criados à volta das suas actuações, Dominick largou um noise abrasivo, com uso e abuso da distorção no microfone. Gesticulando de tal forma que o fio do microfone parecia um chicote, berrando de tal maneira que podia sentir-se a raiva, raspando o microfone na coluna para distorcer ainda mais, a actuação foi sem dúvida a catarse final necessária para este festival.

Após uma lavagem cerebral, o fim-de-semana havia chegado ao fim. O ambiente era de despedida, nostalgia e principalmente de agradecimento. A Amplificasom conseguiu novamente criar um cartaz irresistível e apaixonante, juntamente com a celebração dos seus dez anos de existência. Quem vos escreve é uma principiante nos fins-de-semana de Amplifest, e tudo o que lêem é sincero e sentido, assim como foi sincero todo o empenho da Amplificasom para nos proporcionar concertos e experiências inéditas. Obrigada Amplificasom, obrigada Amplifest por me terem mostrado o que andei a perder estes anos todos.

Como se diz, não é um festival mas sim uma experiência.

Texto: Mariana Pisa
Fotografia: Carolina Neves