Pelo quarto ano consecutivo, a alcateia do rock reuniu-se e fez-se ouvir por entre uivos e distorção. Naquele que é o maior (em qualidade) dos menores (em tamanho) festivais nacionais, assistimos a concertos memoráveis, sob o céu estrelado da Praia de Quiaios, onde durante o dia se recarregavam baterias com o sol, à beira mar, e à noite… Bem, à noite esgotava-se a energia vivendo intensamente o mais puro e genuíno rock.
Dia 0: receção ao campista
O WoodRock 2016 começou na quinta-feira, dia 21 de Julho, com uma festa de receção ao campista no Englo Bar. O cardápio sonoro começou a ser construído com Mil e Tal Pregos, animando a noite para os festivaleiros que lotaram o bar e a esplanada, nessa primeira noite de convívio e animação.
Dia 1: os extremos tocam-se
Depois do aperitivo da noite anterior e de uma bela tarde passada na praia, o prato principal começou a ser servido na noite do dia 22 de Julho, com pouco mais de uma hora de atraso em relação ao anunciado. No festival dos lobos, foram os pandas que abriram as hostilidades, com o seu stoner psicadélico e progressivo.
Os seis músicos dos Big Red Panda tocaram seis músicas, retiradas dos três lançamentos do projecto, com apenas três anos. Do álbum homónimo de estreia vieram Alligator e, a fechar o concerto, Miles Davis. De Grand Orbiter saltaram o tema título, Milestone e Barefoot. O tema que falta é o novo single, Arrival, Pt. 2.
Apesar de ser um projeto maioritariamente instrumental (o que se percebe, porque a qualidade da voz não está no mesmo patamar dos instrumentos), metade dos temas escolhidos tiveram vocalizações, com destaque para as brilhantes Arrival, Pt. 2 e Alligator. Foi um agradável concerto de 45 minutos, de uma jovem banda com um futuro bastante promissor.
A dez minutos da meia noite subiram a palco 10 000 Russos, apesar de 9997 terem faltado. O trio portuense lançou-se às feras com uma demonstração selvagem de estranhos sons experimentais e psicadélicos, com ocasionais efeitos vocais, numa amálgama musical capaz de evocar estranhas sensações sem necessidade de recorrer a estupefacientes, qual pedrada sonora.
O concerto teve quase uma hora, na qual rodaram temas entre os quais se destacaram Lokomotiv Gobi e Usvsus, perante uma plateia ainda pequena mas que foi crescendo ao longo do tempo. A banda mostrou-se instrumentalmente capaz e cheia de surpresas, proporcionando o concerto mais alternativo da noite.
Uma hora e onze minutos da manhã: chegara a vez de uma das bandas revelação de 2015. O projecto lisboeta Dollar Llama já anda por aí há uma década, mas foi o segundo álbum Grand Union que os impulsionou para um patamar mais alto. No WoodRock mostraram porquê.
Depois de uma entrada triunfal em palco, a explosão do southern rock com The All Seeing Eye. O contraste para os dois concertos anteriores foi enorme: mais energia, mais interação com o público, mais peso. Howl e Massive Aggressive continuaram a loucura, que atingiu o pico em Grand Union, quando foi feito um mosh a pedido do vocalista.
A segunda metade do concerto começou com o longo tema Noisecreep, uma semi-balada a ritmo mais lento. Devorando a plateia com mandíbulas de distorção, seguiu-se Jaws. Incansáveis em palco, os músicos deram-nos ainda mais dois temas antes da despedida: Almighty Red e Deathblow, esta última a única música retirada do álbum de estreia, na qual o vocalista saltou para o público e iniciou ele próprio outro mosh.
Passavam vinte minutos das duas da manhã; o público já estava bem aquecido e bem regado. Em palco, Hugo Andrade introduzia o seu concerto no WoodRock/WoodStock/WoodCaralho, que começou com o ‘tema certo’, The Right Track. O que se seguiu foi estrondoso.
Com um thrash metal agressivo e sem piedade, os Switchtense partiram tudo. Face Off e All Or Nothing já pareciam ser o extremo, mas foi com Super Fucking Mainstream que se atingiu a brutalidade máxima. Com uma grande atitude e um vocalista simpático e líder de palco, a banda parece cada vez mais Unbreakable, no ano em que celebram 15 anos de carreira com o álbum Flesh & Bones, que nos apresentaram.
Não esquecendo o seu disco de estreia, os moitenses debitaram Into The Words Of Chaos e State Of Resignation sem pausas para respirar, originando alguns moshes e crowd surfs na plateia, que atingiu o número máximo nesta primeira noite. A reta final teve quase só temas novos, à exceção de Infected Blood. Ignorance Is Bliss, com aquela introdução grindy, Old Souls com o toque mais hardcore e, a fechar, 48 segundos de Monsters. De facto, os Switchtense são verdadeiros monstros do thrash nacional (apesar de se terem despedido por entre uivos afirmando serem os Moonspell).
Os vinte minutos que passaram entre o fim do concerto anterior até os espanhóis El Paramo subirem a palco viram muita gente recolher às tendas. Menos público e mais afastado do palco não impediram o quarteto de stoner rock instrumental de dar tudo e criar 45 minutos agradáveis.
Alternando entre temas longos de dez minutos e outros mais curtos (cerca de metade da duração), os espanhóis mostraram boa técnica e capacidade de composição, mas a sequência de concertos não pareceu lógica; teriam feito mais sentido e brilhado mais a seguir a 10 000 Russos.
Sem microfones em palco, um dos guitarristas comunicou com o público através do microfone da guitarra, agradecendo a sua presença. Do concerto, destaque para temas como Llano Alto e Jupiter, na prova que o país vizinho também tem bom rock.
A noite já ia bastante avançada; faltava apenas um par de horas para o sol nascer. Mas ainda faltava o apocalipse final. Meia hora depois das quatro da manhã, o experiente e louco trio Plus Ultra subiu do inferno para queimar o público resistente em chamas de puro rock.
Abrindo com Blood In Veins e Like It, cedo deu para perceber que iríamos ter o concerto mais intenso da noite (e de todo o festival). Divertidos e possuídos em palco, os músicos apresentaram rajadas de rock acompanhadas de um improviso teatral e sem fronteiras; eram baquetas partidas, era mosh ao baterista, era o vocalista a tocar bateria com as mãos depois de ter ‘congelado’ na música anterior, era a alma do artista exposta nua e crua em palco.
Já o público também se levou deixar pelo espírito e subia constantemente a palco; num dos casos não para fazer o tradicional crowd surfing, mas sim para praticar a nova modalidade de drunk stage crawling. O concerto só terminou vinte minutos depois das cinco da manhã. Foram poucos os resistentes, que recolheram satisfeitos ao parque de campismo sob o uivar do lobo; os que faltaram perderam porventura o melhor concerto nacional do WoodRock 2016.
Dia 2: da surpresa à consagração
Aproveitando a manhã para repor o sono e curar ressacas, os festivaleiros dividiram-se por entre o campismo, a piscina e a praia durante a tarde do dia 23 de Julho, um sábado quente e ventoso que trouxe uma noite algo fria e húmida, mas bem aquecida por mais meia dúzia de grandes concertos.
O primeiro dos seis foi o dos luxemburgueses Soleil Noir, que contrastando com o primeiro dia começou com apenas 18 minutos de atraso; curiosa e infelizmente, era aproximadamente esse o número de pessoas que estava no recinto quando Ancient Aliens Astronauts Pt. I se começou a ouvir. A hora que se seguiu viu aquela que foi a maior surpresa positiva do festival (excepto, claro está, para a organização, que já provou saber bem aquilo que escolhe).
Talvez o post-rock atmosférico instrumental não tenha encaixado bem nos gostos de todos, mas para os fãs deste tipo de sonoridade foi um concerto surrealmente bom. Depois dos quase nove minutos da primeira música, seguiu-se Kali (The Black Goddess), com uma entrada de sanfona primeiro country, depois oriental, por fim para explodir num negro doom.
O concerto continuou com a monumental Masses, treze minutos brilhantes. No pano de fundo rodavam imagens abstractas e efeitos sonoros que criavam uma atmosfera enigmática, negra, simultaneamente sufocante e libertadora. Splendor Solis, Omicron e Esc fecharam o concerto, que merecia mais e melhor público; deveriam definitivamente cá voltar, noutros palcos.
Passava pouco das onze da noite quando a ‘banda da casa’ pôs pela primeira vez a plateia a mexer. Os Miura são um projeto da Figueira de Foz que inspira rock e expira genuinidade, com composições em português de letras sentidas e música que faz sentir. Apesar de tocarem cedo, o público acorreu e acarinhou a banda, que retribuiu com energia e simpatia.
Já Ninguém Escreve Cartas de Amor, mas ainda há muita gente a escrever boa música. A banda levou-nos pelas Memórias de um Homem Esquecido e por um Labirinto, onde perdeu momentaneamente a voz, fruto de um microfone preguiçoso. A fechar, depois da magnífica Cala a Tua Boca com a Minha e da nova Artífice, o seu grande hit Cerro os Dentes, que contou com a ajuda do público. Simples e eficaz!
E eis que chegava a vez dos russos The Grand Astoria. Esperava-se muito do nome mais sonante do cartaz, mas talvez houvesse quem não esperasse tanto. Foi uma hora de rock clássico e psicadélico com uma técnica invejável e vozes surreais, servidos com uma entrega contagiante e surpreendente.
Começando com Masterplan, lançada o mês passado, a banda impôs um ritmo de rock ‘n’ roll animado. Pale Blue Dot foi a aposta ‘Saganesca‘, com uns screams arrepiantes do teclista no refrão e no final da música. Já Mania Grandiosa trouxe os primeiros momentos mais psicadélicos, progressivos e loucamente tocados, com riffs supersónicos e surpresas a cada esquina de som.
Com um momento para respirar na doce (‘love is’) The Answer, o ritmo acelerado voltou logo a seguir com Game Over. Mas o jogo ainda não tinha acabado: The Story So Far tinha sido genial, mas ainda faltava um solo de baixo de fazer cair o queixo. Ao cair do pano, a banda abençoou o público com Blessed, Cursed And Crucified. Missão cumprida e público mais que satisfeito.
Os Killimanjaro são um dos nomes mais sonantes do rock nacional na atualidade e deles esperava-se mais um concerto bombástico, como nos têm habituado. No entanto, a falta de soundcheck levou a problemas no som que pareceram durar todo o concerto, algo trapalhão no início. Com a magia inicial perdida, o desenrolar do espetáculo soube a pouco para quem costuma dar tanto, mas não deixou de ser agradável.
Com uma plateia já reduzida, que teve o seu número máximo no concerto anterior, New Tricks, Old Dog abriu com energia mas pouca harmonia entre voz e guitarra. As interações do vocalista com o público não foram sempre as mais felizes, público esse que só se ligou verdadeiramente à banda à quarta música, com o conhecido hit (agora) publicitário December.
Após uma pequena brincadeira com meia versão de Wicked Game, Made Of Glass mostrou a qualidade que se esconde no novo EP Shroud, que continuou logo de seguida com Blue Fences, com aquela doce entrada a lembrar Deep Purple. Para terminar o quarteto de temas de Shroud e também o concerto, High Flying Bird, que voou mais alto que os restantes temas num concerto de qualidade em crescendo, mas longe do que já vimos deles.
A última banda nacional a pisar o palco do WoodRock 2016, Keep Razors Sharp, é um fenómeno interessante. Por um lado, são músicos experientes, com composições magníficas, boa técnica e grande atitude. Por outro, e apesar de tudo isso, conseguem passar discretos e manter-se underground. Sempre a abrir e dotados musicalmente, uma hora de concerto soube a pouco.
As doze músicas representaram tudo aquilo que a banda tem para oferecer no cartório, incluindo a versão de Can’t Get You Out Of My Head de Kylie Minogue. Com destaque para as monumentais Sure Thing, The Lioness e 9th, ambas as vozes/guitarra nas pontas soaram imaculadas, com o baixista a tomar o lugar central no palco; no conjunto, um quarteto bem sorridente e com um ar algo alucinado, mas ultra bem disposto.
A comunicação verbal com o público soou algo awkward por vezes, mas a comunicação sonora soou na perfeição. Os músicos com experiências de bandas como Sean Riley & The Slowriders, The Poppers, Capitão Fantasma e Pernas de Alicate mostraram o porquê de fazerem parte de bandas de sucesso, dando ao público tudo o que se pedia: um grande concerto de rock.
Eram quase quatro da manhã. Chegara a vez do derradeiro acto, os aliens noruegueses Spectral Haze, para uma hora de viagem cósmica de stoner psicadélico do outro mundo. 5 músicos, 5 anos de projeto, música 5 estrelas e uma atitude em palco divertida e capaz de prender o público; era o final merecido para todos.
A muralha sonora era impressionante, com distorção em dose industrial e efeitos sonoros a acompanhar as letras espaciais, alienígenas e, simplesmente, estranhas. Triads And Trishulas foi um dos destaques da noite, a meio do concerto. No final, um apelo ao público para manifestar loucura, num final apoteótico dos cabeças de cartaz do festival, que justificaram o seu papel.
Balanço final
O WoodRock parece ter vindo para ficar. Ano após ano surpreende, parecendo ter estagnado o seu crescimento numa dimensão saudável, que lhe permite fazer um trabalho de grande qualidade mas de pés bem assentes na terra, longe de sonhos de grandeza.
A qualidade das bandas e do som é estupidamente desproporcional à quantidade de público, mas é em parte isso que o torna tão especial. Este ano, The Grand Astoria e Plus Ultra levantaram a taça de campeões nos concertos de topo, enquanto que Killimanjaro e El Paramo destoaram, mas sem comprometer.
A edição de 2017 já está confirmada; resta-nos aguardar com expectativa, para saber que desconhecidas maravilhas sonoras os lobos de Quiaios irão desenterrar do seu baú de rock, enterrado na praia todo o ano para ser revelado neste fim de semana de verdadeiro espírito festivaleiro. Auuuu!
Fotografia: Marina Silva
Texto: David Matos