NOS Primavera Sound. Um jardim pautado pela diferença dos extremos

Três dias de NOS Primavera Sound são sempre muita matéria para digerir. Das corridas pela colina fora na troca de palcos ao suor largado pelo calor das primeiras filas, o cansaço é geral quando a ressaca domingueira pós-festival se torna uma realidade. Para trás ficam experiências singulares, rotas distintas e um Primavera Sound de coração cheio – e também esgotado, verificando-se a maior enchente do Parque da Cidade do Porto desde a primeira edição do evento em Portugal.

O NOS Primavera Sound, ano após ano, tem-se desmarcado aos poucos do seu grande irmão. Em Barcelona circulam os nomes maiores da música, mas é no Porto que as flores desbotam para os acordes. É no Porto que se troca o extenso line-up pelo conforto de um jardim numa espécie de oferta gourmet e mais apurada: enquanto uma boa parcela do público-alvo volta a chamar por mais nomes de letras gigantes, esta edição portuense responde com vários nomes que dificilmente vemos ou há muito não vemos noutros festivais por cá. E foi mesmo em certos extremos da oferta deste ano que a diferença foi feita num mar de atractivos distribuídos por quatro palcos.

8 Junho

O dia inaugural desta sexta edição do NOS Primavera Sound manteve os moldes a que nos habituou: os dois principais palcos, Palco NOS e Palco Super Bock lado a lado, a alternar entre si os únicos nomes do dia numa maratona mais curta que a dos dias seguintes. Se muitas línguas diferentes já se ouviam falar pelo recinto na quinta-feira, 8 de Junho, foi em português que a música se curvou perante a Primavera – a palavra cantada de Samuel Úria deu, no Palco Super Bock, o primeiro passo de uma longa caminhada pela música nova ou de referência que desfilou pelo Porto.

Do sorriso de Samuel depressa se passou à sobriedade de Cigarettes After Sex, mais exigentes nos tons invernais do que propriamente primaveris. A um dia de lançar o seu álbum de estreia, homónimo, a banda de Greg Gonzalez tentou justificar em palco o fenómeno em que se tornou pela internet com uma dream pop gélida, acabando vitimada pelas circunstâncias do espaço e, de certa forma, pela monotonia de “K.”, “Apocalypse” e “Each Time You Fall In Love” como singles de referência. Seguiu-se a combo Rodrigo Leão & Scott Matthew, parceria luso-aussie já com rugas de expressão e indicado para uma parte mais adulta da audiência. As composições de Leão encontram na voz de Matthew as mesmas tranquilidade e emoção que estas procuram numa via instrumental, respondendo-se aos aplausos do Porto com a estreia de um novo tema, “Abandoned”.

 

À falta de energia contagiante, a fuga pelo jantar combateu-se com a agitação quente de Miguel. Em palco o cantor norte-americano é outro “animal”, duplicando ou triplicando em magnitude todas as boas indicações dadas desde a estreia All I Want Is You em 2010. A evolução constante encontrou em Wildheart, de 2015, uma incrível simbiose de funk, soul, R&B e psychedelic rock, fazendo-se gritar guitarras pela colina acima. Recordou-se Bob Marley e “samplou-se” Kendrick Lamar enquanto o sol dava o primeiro beijo no horizonte deste Primavera. Saiu de cena um músico de créditos firmados em palco e com boa aclamação da crítica… adivinha-se uma gradual popularização em Portugal se o ritmo não baixar?

Depois de se amenizar o espírito com a terceira vida dos escoceses Arab Strap, de Aidan Moffat e Malcolm Middleton, numa fuga à euforia imposta pelo slowcore dos autores de Philophobia, a resposta surgiu de mãos no alto, imitando uma arma e cerrando-se o outro punho para acolher um colar virtual para receber os Run The Jewels. Um duo completamente diferente e com laços cada vez mais fortes com Portugal em geral (mas com o Porto em particular, segundo os tweets de El-P durante o fim-de-semana), tornou o seu regresso ao festival numa consagração. A celebração essa foi feita há dois anos, na altura com Run The Jewels 2 aplaudido como um dos discos de hiphop dos últimos anos. Mas a diferença de um concerto para o outro não residiu apenas nos vários milhares novos fãs, mas sim no mediatismo construído à volta de El-P e Killer Mike. Podem não ser celebridades do género e não ter a mesma força dos holofotes (afinal de contas, tanto um como o outro já estão nisto há muitos anos), mas encontrou-se a cada disco RTJ a mesma consciência de instant classic que outrora se verificou nuns Beastie Boys ou Public Enemy. E se logo no início do concerto as vozes responderam em uníssono à chamada de “Legend Has It”, rapidamente se antecipou um concerto explosivo e bem disposto. As visitas foram quase todas ao terceiro e novo disco do duo, mas o tempo dedicado aos dois discos anteriores foi valioso e até “Nobody Speak”, tema de DJ Shadow em que são protagonistas, foi razão para festa no Porto.

 

Anti-climático para uns e experiência transgressora para outros, o set que Flying Lotus impôs ao Porto na hora que se seguiu teve de tudo menos consenso. Aos que entenderam a estética desde início (e que bem ajudou conhecer os seus trabalhos de estúdio), sobreviveram numa bolha em que as nuances dos graves tiveram outro travo. Steven Ellison, agora também cineasta, só interrompeu a transe extrema da sua exposição dupla de ecrãs para afirmar que Kuso, o seu primeiro filme, será lançado brevemente. Foi nesta fina linha da extrema desconstrução e da extrema descontracção que FlyLo desafiou a paciência de um público dividido, servindo-se de uma abordagem semelhante a uma obra de David Lynch para testar limites fingidos. Com boa conta o fez – e nos deu o genérico de Twin Peaks de forma quase despercebida, tal como um acenar a Aphex Twin e uma secção de “discos pedidos” perto do final – para ser o primeiro a desmarcar-se nos pontos extremos deste NOS Primavera Sound.

Depois de uma jornada pela electrónica mais exploratória, o set dos franceses Justice teve alguma dificuldade em tomar partido do enorme poderio sonoro e visual que esteve ao dispor. Jogados dois dos singles maiores logo ao início, “Safe and Sound” e “D.A.N.C.E.”, seguiram-se largos minutos em que pareceu que qualquer tema da dupla era submetido a um filtro de homogeneidade. Coerência? Sim, mas e a longevidade? A componente musical foi perdendo o interesse pela escassez de diversidade e a parte visual roubou o espectáculo, permitindo a adereços de palco e a instalações luminosas a serem o motivo maior dos aplausos numa altura em que “Phantom Pt. 2” e “We Are Your Friends”, tema a meias/remisturado de Simian, tentavam recuperar o público.

 

9 Junho

No arranque a tempo inteiro deste NOS Primavera Sound, a tarde teve início com os acordes dos leirienses First Breath After Coma no Palco Super Bock. Determinados a mostrar porque estão na mó de cima, como viagens bem sucedidas ao centro da Europa para apresentar o mais recente Drifter, o turbilhão de guitarras de post-rock (bem sacadas à banda que os inspira até no nome, Explosions in the Sky) depressa tomou conta de um anfiteatro natural preenchido pelos “madrugadores”. Prontos para uma apresentação digna do referido álbum, houve até tempo e espaço para “Umbrae” com o convidado David Santos, mais conhecido como Noiserv, para completar um cartão de visita com boas indicações e dar certeza que a abertura do dia foi bem entregue.

Já habituados a tocar com o Sol bem no alto, os australianos Pond são cada vez menos um spin-off ou um projecto à parte de Tame Impala para serem aquilo mesmo que querem ser: os Pond. E os Pond são espontaneidade e são veículo de expressão de um Nick Allbrook endiabrado – este saltou pelo palco e desceu até ao público com a leveza do rock psicadélico de melodias fáceis e orelhudas. De “Elvis’ Flaming Star” até a “Paint Me Silver” foi um instante de boa disposição e não tenhamos dúvidas que “Sweep Me Off My Feet”, single mais recente de The Weather, ainda ecoa, lá no fundo, nos ouvidos de quem prestou atenção ao concerto. Igualmente num campo leve da música nova, foi permitido aos Whitney um terceiro concerto em Portugal em menos de um ano. O motivo desta proximidade observou-se nos dois lados do palco, com versos decorados a marcharem contra uma tensão libertadora e musical que culminou com a participação espontânea de Ambrose Kenny Smith a emprestar a sua harmónica de King Gizzard and The Lizard Wizard.

 

A maior dificuldade em agarrar o público prendeu-se no sorriso e na melancolia de Angel Olsen. O chegar lá foi fácil, ainda para mais “High & Wild” e “Shut Up Kiss Me” a abrir o concerto da menina bonita da folk de Chicago. Aposta grande feita em My Woman e todos os seus momentos mais calmos, de onde se destacou “Sister”, não foi motivo suficiente para agarrar uma audiência cada vez mais despida para um concerto morno. Fosse para ver as palavras cuspidas dos brits Sleaford Mods ou para procurar uma refeição, Olsen ficou aquém do tamanho do Palco NOS que lhe foi atribuído e ouviu-se um anjo muito ao longe.

Com o fôlego máximo, os concertos que se seguiram obrigaram a dividir o público ao máximo. A encabeçar o dia, Bon Iver de Justin Vernon esteve em combate com os fãs de Julien Baker – questão que foi levantada algumas vezes desde o anúncio dos horários – pelo concerto íntimo da noite. Mas quem voltou costas à folk e aos falsettos encontrou uma barreira sonora do tamanho da órbita terrestre: Swans. Michael Gira reuniu as forças de The Glowing Man, a mais recente tese discográfica de um dos colectivos mais singulares e intrigantes, e submeteu a moldura humana ao exame que esta pediu. Uma catarse em forma de ruído e de ondas propulsantes devastadoras de duas horas dividas por cinco faixas – cada uma delas, sucessivamente, a receber um maior número de decibéis e a provocar um êxtase desmedido em vários presentes.

 

A distorção das guitarras – na verdade, a distorção de todas as coisas – encontrou nos beats de Skepta o seu antídoto natural. Cinco anos depois de Doin’ It Again, de 2011, Skepta conquistou o Mercury Prize com Konnichiwa, o seu quarto álbum e coroação definitiva do grime londrino que pecou por tardia. O hiphop britânico há muito que caminha numa estrada à parte e Joseph Adenuga, o seu nome real, serviu-se desse argumento e do aclamado recente disco para fazer saltar um mar de gente nas grades junto ao Palco Super Bock, para nos fazer sentir, durante uns bons minutos, num clube de Tottenham. Que melhor memória se poderia guardar?

Porém a recordação nem sempre se faz para um exercício positivo. Em 2014, na Garagem EPAL que serve de palco no Vodafone Mexefest em Lisboa, gravou-se uns dos mais energéticos concertos de estreia em solo nacional dos últimos anos. Os responsáveis? King Gizzard and the Lizard Wizard. Portanto tendo esse método de comparação torna-se difícil ignorá-lo sempre que a banda por cá surgir. Certo é que nesse ano não existia o soberto Nonagon Infinity, de onde saltaram os melhores temas para o alinhamento deste concerto no NOS Primavera Sound no início da madrugada, mas existiu uma imparável locomotiva de rock cuja única estação foi a terminal. Menos selvagens mas mais técnicos, não deixou de ser impossível dançar logo nos primeiros segundos da inaugural “Rattlesnake” impulsionada pela guitarra de microtons de Stu Mackenzie, ficando marcado para muitos o fim do segundo dia de festival.

 

10 Junho

Disse o compositor norte-americano George Gershwin que conseguia frequentemente ouvir música no coração do ruído. Volvido quase um século é oportuno sublinhar os milhares de fãs que são guiados pelos murros invisíveis que o som pode dar, socando as notas em tempos impróprios e questionando os limites impostos pelo ideal fantasma do que deve ou não ser música. Assim se explica a enchente do derradeiro dia deste sexto NOS Primavera Sound, encabeçado por Aphex Twin.

Ao longo do dia ficou também marcado que diferentes origens geográficas resultam em abordagens e processos distintos. O início da tarde reconheceu os malianos Songhoy Blues como um veículo de inevitável animação, concentrando por entre as árvores do Palco . um sarau trabalhador de discípulos da influência do ícone Ali Farka Touré. Não muito depois coube à brasileira Elza Soares, mais abaixo na colina do Palco Super Bock, encher o coração. A mulher, a cor da pele e a carne como palavras-chave d’A Mulher do Fim do Mundo, rainha no seu trono da idade e da circunstância, ordenou à Primavera que se interrompesse para se ouvir cantar o fardo e a angústia até ao fim dos dias.

 

O final da tarde ficou marcado pelos comportamentos díspares do rock psicadélico. Primeiro uns Wand com medo de meter o pé no acelerador (terá sido uma miragem aquela “Floating Head” no início?), muito aquém do potencial do fuzz avassalador que conhecemos da escola de Ty Segall. Depois uns The Growlers a reclamarem o Palco NOS para apresentar City Club, um disco mais próximo do garage e de um surf rock lo-fi, e nitidamente mais próximos do público apesar da difícil hora – a mesma que condenou Angel Olsen um dia antes. O resultado foi a banda sonora ideal para um pôr-do-Sol quente com Brooks Nielsen, na voz ao comando da trupe californiana, a repartir o suor múltiplas vezes com o público. E já com a tarde transformada em noite, a hora de jantar estendeu-se ainda a um concerto da japonesa Mitski no Palco Pitchfork, a «nossa melhor rapariga americana» parafraseando um single que diz ainda não odiar. Num alinhamento dividido entre Bury Me At Makeout Creek e o mais recente aclamado Puberty 2, foi dada uma lição de indie rock de estrutura fácil mas bem-parecido e lustroso, de lírica complexa e emocional.

 

A montra final deste NOS Primavera Sound voltou a arrastar dois públicos distintos a dois pontos diferentes do recinto. No quasi-cavernoso espaço imposto pela noite da clareira do Palco . gritou-se a desconstrução sónica. Death Grips, fúria e pânico de mãos dadas, arrebataram a ânsia da sua estreia em Portugal em meio-segundo e não mais pararam. Faixa atrás de faixa, sem pausa entre elas e com um Zach Hill em alta rotação a castigar a bateria, MC Ride foi ministro da desordem, palavra da hecatombe e corpo da ruína. De “Whatever I Want (Fuck Who’s Watching)” a “Guillotine” foi uma chispada tanto em palco como à sua frente. Strobes, incontáveis bpms e uma quantidade absurda de graves propiciaram um concertão em que toda a violência e emancipação se resumiram a «YUH»’s gritados aqui e acolá. Livrou-se do estalo quem encheu o palco principal para um sempre aplaudido regresso de Metronomy, agora com Summer 08 para apresentar e os habituais temas de The English Riviera e Love Letters conjugados para a dança conjunta entre a pop e a electrónica.

 

E questões que realmente interessam. O que é mesmo uma garagem e o que é isso do rock? Mais importante ainda: quão alto podemos tocar? As respostas foram dadas pelos Japandroids. Brian King e David Prowse, guitarra e bateria respectivamente e ambos com papéis na voz, tomaram de assalto o Palco Super Bock para múltiplas camadas de amplificação. Som alto, definido e rock. ROCK. Daquele puro, selvagem, desconcertante e de rápida aprendizagem. ROCK com tratos de punk, que faz cair umas partículas de pó do tecto da garagem e que prova que uma dupla é tudo aquilo que o rock precisa para ser realmente rock. Na cabeça ficaram as faixas do novo Near To The Wild Heart Of Life, mas foi com a inevitável “The House That Heaven Built” que se celebrou o rock, se empoleirou na bateria e se desejou uma boa noite de sono à maneira canadiana. Que tipos valentes.

Também com tudo no rock apesar de numa veia menos directa, mais calculista e psicadélica, os The Black Angels trouxeram-nos Death Song, provavelmente o disco mais consistente desde a estreia Passover, para declarar que em condições espaço-temporais condizentes podem mostrar aquilo que são. Depois de um ingrato concerto como headliners do primeiro Reverence Valada, a banda texana teve à sua disposição os ouvidos de um público menos saturado do que aquele que encontrou em 2014. E mesmo sem projecções no fundo de palco por motivos desconhecidos o quinteto tornou seu aquele pedaço de recinto junto ao Palco ., isolados de toda a luz e autores de uma massa psicadélica de tons negros.

Richard D. James, numa plataforma que o centrou no palco, apresentou-se como Aphex Twin. As duas horas que se seguiram, de maneira nenhuma, podem ser resumidas em palavras. Porque até as palavras são legíveis e até um texto pode ser previsível. Já a explosão de luz e som e uma longa fragmentação de temas elevaram James a um patamar semelhante a um hacker daqueles dos filmes ou das séries, em que parece que é só correr um software malicioso e um dispositivo-alvo se desintegra em zeros e uns. O seu set serviu a uns para descoordenar todas as tentativas de dança e a outros para se submeterem a um novo extremo teste de resistência. Duas horas, lasers verdes, dureza de bits na forma de techno e padrões inarráveis. A elegância em jeito de opressão. Ou vice-versa. O esperado, portanto.

 

Terminado o NOS Primavera Sound ficou o eco extremo a planar sobre a colina do Parque da Cidade do Porto. Não beneficiando da coesão do cartaz do ano passado, foi precisamente nas edificadas paredes de som que se fez a diferença. Novamente, como se tornou um hábito ano após ano, dificilmente se vão encontrar duas pessoas com uma resposta clara sobre o melhor concerto, fosse esse da via mais catártica ou de uma linha mais acessível ao grande público. Também é verdade que se tornou um hábito o tomar partido do festival na sua íntegra. Embora lotado, e algumas filas à parte, a transição entre palcos nunca se tornou um inferno e o recinto permaneceu verde – e limpo, lembrando a aposta nos copos ecológicos do ano passado. Já todas as outras cores são marca deste NOS Primavera Sound, que volta sempre agarrado à memória e consegue saciar o estado de espírito festivaleiro umas boas semanas antes de este se pronunciar.

Texto: Nuno Bernardo
Fotografia: Rita Bernardo