Milhões de Festa. Barcelos, casa para milhões de mundos

Perante um panorama de festivais cada vez mais recheado, parece mais e mais difícil ver para além dum acumular de cartazes que se repete em ideias ano após ano. O que Barcelos vê brotar há largas edições é um autêntico oásis cultural de seu nome Milhões de Festa, um festival curado com ousadia às vontades dos seus promotores e, acima de tudo, um daqueles raríssimos festivais que ainda nos faz sentir na fronteira perante algo novo e de certa forma único no mundo. A romaria essa tomou lugar no Parque Fluvial de Barcelos entre os dias 21 e 24 de Julho e a Ruído Sonoro picou o ponto.

Sejamos honestos, a ideia de um dia zero existe praticamente só para montar a tenda, fazer os últimos ajustes e preparativos e ter um primeiro vislumbre de caras familiares. Num primeiro dia em que o palco Taina foi o único a carburar com nomes como Jibóia, Aggrenation ou Eat The Turnbuckle, não foi mais do uma boa oportunidade para a despretensão e carregar baterias, para acima de tudo respirar fundo perante a beleza que envolve o Rio Cávado e por tudo aquilo que estaria para vir.

Mesmo sem compreendermos de todo o fenómeno que alimenta os Goat, sexta-feira chegou carregando o que era provavelmente o maior conjunto de expectativas, e difícil era não ter cumprido. Primeiro brilhou o talento de Shabaka Hutchings e o jazz criativo e vivaz dos seus Sons Of Kemet, mostrando uma vez mais ao mundo que é um nome para ter muito em conta no que é o futuro do género. Pouco mais tarde foi hora de nos submergirmos no azul que emanava do Palco Lovers e na parede sonora montada pela colaboração entre HHY, Varg e Marshstepper. Num dia em que a fasquia pareceu não querer deixar de subir, foi do outro lado do canal da mancha que nos chegou o dono de um novo máximo. Depois de ao ano passado ter arrasado um Palco Milhões e disparado alarmes por meia cidade de Barcelos, foi desta feita vez para que Kevin Martin nos assaltasse os sentidos com os ritmos quentes de Acid Ragga. Em parceria com uma explosiva Miss Red e perante uma plateia igualmente trepidante, cada beat operado por The Bug era uma sacudidela nos corpos que enfrentavam a parede de som do britânico. Se é que haviam dúvidas, rapidamente se percebeu que, apesar de se tratar da apresentação dum set bem distinto, este estaria bem longe de ser menos agressivo ou incisivo. O ragga e o dancehall às mãos de The Bug adquirem contornos verdadeiramente apocalípticos, e se é que o que se ali viveu pode ser facilmente resumido, teríamos obrigatoriamente de falar numa rave para o final dos tempos.

Depois de ter subido ao palco para colaborar com Kevin Martin no dia anterior, Gaika operou o que foi porventura a mais mágica das performances do festival. Ainda nos primórdios da sua carreira e no seguimento do lançamento recente de Security – somente a sua segunda mixtape –, o jovem de Brixton parece mais que prometido a um futuro assombroso. Quase que se parte de uma premonição maior que ele mesmo, Gaika arrastou-nos pela garganta até ao submundo da sua Londres, um no qual reclama o direito ao trono por entre o espaço morto entre o dancehall, o grime e o r&b, numa autêntica viagem monocromática que não viu paralelo em intensidade ou peso emocional. Um verdadeiro tiro para a história.

Se existe um palco icónico ao Milhões, esse será inevitavelmente o Palco Piscina. Aberto tarde fora e oferecendo uma solução óptima para fugir ao calor insuportável, a Piscina viu por lá desfilar mais do que biquínis e barbas torcidas do cloro. Tanto Nicola Cruz como Nan Kolè até das marés fariam virar pista de dança. As cumbias ‘suavecitas’ de Cruz acertaram o relógio do coração ao sabor dos ritmos da América Latina, enquanto que Kolè nos puxou para o continente irmão com a sua house embriagada por um frenesim sul-africano. Um dia depois foi a vez dos We Are Match operarem as tardes de banhos com a sua rock açucarada mas sem invenções, mostrando que são banda para palcos grandes e outros tempos de antena. O melhor estava ainda para vir com um senhor que há muito trata a dub por tu. Adrian Sherwood deu-nos quase duas horas de óptimas razões para dançar sobre uma ponte de graves gostosos, como perdidos algures entre Londres e Kingston, lá entre o que de mais maravilhoso há nas duas.

O que se sente no Milhões de Festa é de certa forma especial. Desde o cenário mágico à beira-rio à organização do espaço, este é um festival pensado à escala e dimensões certas para o triunfo. A deslocação é fácil, as filas são inexistentes e mesmo o labirinto de desníveis do recinto é contornável sem esforço. O cartaz é sim extenso e a festa longa e rija, mas a ponto nenhum o Milhões parece um festival maçudo.

Tendo sido obrigado a cancelar o seu concerto na última edição do festival, Islam Chipsy desta feita cumpriu mesmo. Ainda nem há um ano o vimos no Maus Hábitos, também com esses dois extraterrestres de seu nome EEK, e o que Chipsy arrancou da cartola nessa noite portuense não foi mais do que o que o vimos repetir em Barcelos. É electro chaabi; é frenético, intenso, furioso, e tão troteante como um autêntico acto de hipnotismo que não nos deixa tirar os olhos do palco nem que seja por um minuto. Dissemos na altura que não deverão existir muitos como ele(s) num bom punhado de sistemas solares cá próximos. Não devem mesmo.

Como não consegue nunca deixar de ser, fomos logicamente tropeçando em alguns concertos menos interessantes aqui e ali. Os The Heads pareceram uma banda gasta e antiquada e os Evil Blizzard uma panóplia de bizarrices que não cativa para além disso. Já os Sun Araw sofreram com os problemas técnicos que se prolongaram por largos minutos, tendo oferecido pouco ou nada depois de refeito o regresso ao Palco Milhões. No final de contas foram sempre boas oportunidades para descansar os pés e o corpo, até porque deus nos livre se tudo nos prendesse de fio a pavio.

Num último dia em que tanto estivemos imersos na pop gulosa dos El Guincho quanto nos riffs fumarentos dos Part Chimp, a lição de intensidade coube a um trio de norte-americanos de Nova Jérsei. Os Ho99o9 são daquelas bandas que saltam bem mais alto que os muros de género, como se nos chegassem saídos da mais ensebada das caves com a sua fusão tenebrosa de hip-hop e hardcore. Fazendo passar as suas pistas pela sombra de uma parede de amplificadores, a arena para que estes tocam é a de um mundo bem menos sonhador do que aquele em que nos deixou a electrónica de Dan Deacon momentos antes, numa transição que duvidamos ser possível em mais nenhum festival do mundo, tão estupidamente brusca que resulta.

Tão rápido quanto veio, vimos também chegar ao fim mais uma edição do festival minhoto. Foram dias de muito calor em Barcelos; de tardes a petiscar à sombra no Taina, no refresco duma cerveja à beira da Piscina, de comboios à luz do Palco Milhões e de madrugadas de graves furiosos no Palco Lovers. O Milhões de Festa está já bem longe de ter algo a provar e vive mesmo de algo que não merece ou precisa de ser explicado, um festival em que tanto artistas como promotores e plateia vivem em comunhão para celebrar uma paixão maior. Do alto dos seus quatro dias e deixando para trás um Parque Fluvial bem mais triste, deste lado o que fica é a marca da multiculturalidade e a da música sem fronteiras e sem merdas, não fosse o Milhões um daqueles festivais que se guarda com saudade num cantinho especial do coração; pelo menos até ser novamente hora do regresso.

Texto: Rui P. Andrade
Fotografia: Rafaela Bernardo