Kamasi Washington no Teatro Tivoli BBVA. Há mesmo um novo profeta do jazz

Que entusiasmo se pode guardar sobre os ombros de um homem que inscreveu o nome em dois dos mais aclamados álbuns de 2015? Kamasi Washington assinou os arranjos e ainda o saxofone na obra irrepreensível do rapper Kendrick Lamar, To Pimp A Butterfly, e ainda guardou 172 minutos (!) para o álbum de estreia, o triplo e auto-descritivo The Epic, criando desde logo um invulgar falatório num nome de jazz nas publicações mais populares de música. O californiano estava condenado a não passar despercebido logo na sua primeira digressão mundial, tal como não passou assim que chegou a Portugal para dois concertos em formato de octeto – o primeiro a 6 de Junho na Casa da Música, no Porto, e o segundo no dia seguinte no Teatro Tivoli BBVA, em Lisboa.

Dos habituais fumarentos clubes de jazz para salas e anfiteatros com capacidade para centenas de pessoas vai um salto que Kamasi tem de provar em palco. Mas o saxofonista já está habituado a tamanhas plateias – para além de Kendrick Lamar, também já havia sido convidado para digressões com Snoop Dogg, Nas, Lauryn Hill ou Erykah Badu. Daí se partem algumas das influências do músico de 35 anos. O rock, o soul e o funk são claros elementos nas suas fusões, mas a sua cultura de rua, de um miúdo que cresceu nos subúrbios de Los Angeles, dá leves toques no hiphop. A fluência das suas composições têm a cadência de um John Coltrane e a sua melomania de ópera jazz roça o delírio de um Sun Ra, mas também se sente a admiração pelos ritmos de um George Clinton e pela delicadeza da música clássica, não nos tivesse ele guardado em Lisboa uma rendição de “Clair de Lune”, de Claude Debussy. “Uma das minhas composições favoritas de sempre”, admitiu solenemente o saxofonista antes de a interpretar.

O (estranho) caso de Kamasi Washington estende-se à variação da plateia. Os mais ortodoxos do jazz estavam lá, mais contidos nos primeiros aplausos. Os mais jovens e de universos mais populares também lá estavam, mas juntos se uniram rendidos à força livre do octeto. Desses oito faz até parte o pai de Kamasi, Rickey Washington, a dobrar-se entre o saxofone soprano e a flauta e a contribuir com um par de solos ao longo do concerto. Os restantes também fizeram a sua parte: Miles Mosley fez do seu baixo um electrizante desfile de devaneios, Brandon Coleman fez do piano e de um par de sintetizadores acompanhamentos geniais e dançantes, o trombone de Ryan Porter surgiu sempre bem-disposto, Patrice Quinn sorriu e encantou com a sua voz cristalina e o par de bateristas Ronald Bruner Jr e Tony Austin dialogaram entre si e com o público de forma brilhante. Mas o centro do espectáculo era o saxofone tenor de Kamasi Washington, que mostrou em palco já nem ser possível questionar a técnica nem a criação, como um dos grandes e clássicos do género, escancarando cada vez mais o grande público ao jazz a cada solo a que este se joga. Tanto nos píncaros de “Re Run” como na doce “The Rhythm Changes”, e passando pela bela “Henrietta Our Hero”, verificou-se que, mesmo rodeado de exímios virtuosos, soube liderar uma orquestra de forma sóbria, entregando a sua autoridade às notas mais graves e a sua compaixão nas melodias mais agudas.

Duas horas se passaram com múltiplos aplausos e Kamasi ergueu o punho para fechar o concerto da mesma forma que um juiz fecha uma sentença. Ele sabe-o: quem lança um álbum de estreia de três horas, dá uma primeira digressão mundial no ano seguinte e submete o público ao seu talento e sopro desta forma só pode ser uma espécie de novo profeta do jazz.

Fotografia e Texto: Nuno Bernardo