Milhões de Festa @ Praia Fluvial de Barcelos, 24 a 27/7/2014

Chegando a Barcelos para a 7ª edição dos Milhões de Festa, este destaca-se logo pelo ambiente, principalmente no campismo: um parque municipal central onde o natural chill festivaleiro se alia. Parece que o festival se quer fundir com a cidade, mas não de uma forma forçada – antes, orgânica: O sol sorri a Barcelos, ao invés de, pelo menos, ao Porto. Será um bom pressentimento?

 

Dia 24 de Julho

17

O palco Taina, situados uns metros acima do Cávado, cristalizava o fim da tarde de uma forma doce. Após o açúcar polvilhado de Gonçalo, que abriu os concertos de forma felicíssima, seguiram-se os Modernos.

Este projecto resulta de um desmembramento dos conhecidos Capitão Fausto num trio. Sem as intenções psicadélicas claras da banda original, tocam rock linear, sem adornos estilísticos maiores. A bateria revela algum delay aqui, há um solo de órgão eléctrico acolá, mas nada que supere seriamente o que está estipulado no estereótipo rock. A precisarem de mais maturação, pode ser que a encontremos no álbum que em breve estará entre nós. Aguardemos.

Caindo o fim-de-tarde e o seu brilho quase inocente sobre o Taina, o anoitecer faz-se ao som do indie dos Alek Rein, enquanto o público aproveita para se deliciar com caldo verde, vinho loureiro e outras especialidades regionais.

São 22h40 e acontece a primeira grande metamorfose neste estrado campestre. Há o boneco de um burrinho à frente das grades, bóias no meio do recinto, e o baixo está coberto de penugem vermelha: são os Serrabulho, e querem reinventar o grindcore. Não o género mas, diga-se, a abordagem: o convidado da banda é um Borat semi-nu a tocar numa guitarra insuflável.

Eles não deixam de tocar o típico género – sujo, raivoso, com distorção nas guitarras e ganho no bombo em demasia – mas com uma vestimenta muito… particular. Porque Serrabulho, antes de ser grindcore, é festa. O público reagiu muito bem, levantando-se na totalidade e fazendo um mosh grandioso que deixou os instrumentistas felizes. Houve romaria no palco Taina: foi o primeiro grande concerto do festival.

O ambiente deslizava bem neste dia zero do Milhões, e à 1h30 sobe ao palco Ghetthoven, rapper que se destaca logo pelo seu nome suspeito. Artista à la Thug Unicorn, podia perfeitamente ser a banda sonora do Tumblr de um miúdo fascinado pelo brilho da vida urbana de uma Nova Iorque. Em palco estava acompanhado por duas voluptuosas dançarinas, que com Ghetthoven gesticulavam, praticavam coreografias etc. Nesta vertente de entertainer o rapper demonstrou-se implacável, ao invés das letras – a grande força do hip hop – que em palco não tinham grande impacto, e dos beats, que não primavam pela criatividade.

Acabando Ghetthoven, houve a montagem de dois sistemas de pedais e microfone nos dois extremos do recinto, separados por um mar de gente. E estando as pessoas a perguntarem para que era aquilo, uma mulher com os seus 40/50 anos monta um baixo eléctrico no posto ao pé do palco e, tendo volume no P.A., começa a se atirar ao público a tocar, qual fera a mostrar quem manda na sua jaula. Do outro lado, um guitarrista acompanha-a: eles não se conseguem ver, mas ouvem-se. Musicalmente, os Putan Club são uma misturada de rock, blues e muito ruído sobre uma bateria sintetizada. Eles brilham, antes, pela atitude: cara a cara com o público, selvática, muito suada (perguntem ao homem da guitarra), bestial.

Mais uma agradável surpresa da parte da organização, que interessantemente não se sobressai pela componente musical. Mas o Milhões está só a aquecer: segundo o cartaz, esta questão resolve-se facilmente nos próximos dias.

 
 

Dia 25 de Julho

04

O verdadeiro primeiro dia do Milhões de Festa começa com calor a assombrar desde cedo as tendas dos campistas. A resposta natural destes é procurarem a frescura da Piscina, cujo palco da curadoria do Red Bull City Gang abria com os Bispo. Foi para lá que nos dirigimos, a seguir o povo.

Depois da narração lenta e cautelosa dos Dear Telephone, subiram ao palco os Riding Pânico, com caras conhecidas de PAUS e de Linda Martini, que desde cedo se assumem como uma banda ofensiva, confortável na linha de ataque. Arpejos e outras linhas de guitarra lânguidas, percussão cerrada, o baixo sempre duro e consistente de Makoto Yagyu (If Lucy Fell, PAUS) um nord a culminar. Juntos fazem uma civilização de pós-rock, fresca e brilhante o suficiente para soar a algo inovador.

Há sequências menos intensas, mais meditativas e espaciais, mas em todas elas a banda tresanda a potência e a inteligência. Makoto vai bailando a perna, ao mesmo ritmo que os nossos ouvidos também bailam. E quando estes pedem por mais, temos que lhes renegar a satisfação para ir ouvir Mother Abyss no Palco Taina.

Esta banda tocava um sludge/doom metal com a ferocidade normal que não se sobressaia muito, sem contar com o baterista que não conseguindo responder com a distorção fazia-se mais à vida nos breaks. E este desinteresse reflectia-se no público, que aproveitou grande parte do concerto para meter a conversa em dia.

Os concertos recomeçam no palco Milhões, este já rente ao rio num anfiteatro verdoso. Quem têm a honra de o abrir são os sul-coreanos Jambinai, que tocam pós-rock com instrumentos tradicionais da Coreia: logo na primeira, uma espécie de intro sem secção rítmica, perfilava um “primo do violino” com um som ainda mais magoado, um outro instrumento de cordas esquisito com 1,50 m de comprimento tocado na horizontal e percutido com um pauzinho e um aerofone com um timbre desengonçadamente bonito. Em conjunto, estes artefactos exóticos trazem a maresia coreana e soam a algo distante, dissonantemente harmónico, lindo.

E mal sabíamos nós que isto era só um aperitivo… Nas músicas seguintes, há uma vasta exploração de dinâmicas – os Jambinai conseguem criar as mais belas melodias vocais e instrumentais e segundos depois estarem a explodir – e das potencialidades destes instrumentos. «Geralmente tocamos para muitas menos pessoas» diz o guitarrista da banda, antes de terminarem com a beleza sui generis desta ‘Connection’. Acabando o concerto ficamos com a triste impressão que estes músicos convivem diariamente com a subvalorização. Não queres ser solidário e ir ouvir (já) estes senhores? Não te vais arrepender.

Seguiu-se um dos nomes mais fortes desta edição do festival, Chelsea Wolfe. Logo à primeira canção, ainda que esta se apoiasse numa parede de loops vocais luminosos, percebemos que a música desta californiana está coberta por um véu negro. A atmosfera sónica é fria, a bateria e o baixo são mecânicos (lembrando em alguns momentos Joy Division) e há um violino que colmata com o corpo do seu som as escalas menores usadas. A voz da cantora, essa, soa a um latido triste e ao mesmo tempo sedutor.

Ao longo do concerto deambulamos por uma fábula de sombras ao sabor desta voz que nos canta sobre dúvida, desespero, dor. É um passeio doloroso e bonito, tal como enuncia o título do álbum, “Pain Is Beauty”. Pedia-se um ambiente fechado para se ouvir a cantora com a merecida intimidade, mas a verdade é que sem darmos por ela, Chelsea Wolfe rouba-nos algum ânimo e conquista os nossos corações. Aposta ganha.

Depois do psicadelismo lento dos The Cult of Dom Keller, sobem ao palco principal os Boogarins. E se Chelsea Wolfe nos tinha presenteado com trevas, estes músicos brasileiros completavam uma antítese: eram radiantes, com as suas guitarras a emanar luz, linhas de baixo saltitantes que puxavam inevitavelmente o público para a dança, e claro, pronúncia ritmada. Mas este rock feliz era em vários casos o ponto de partida para algumas interessantes divagações psicadélicas. Com delay, coros envolventes ou nos registos agudos do baixo, estes jovens goianos patinavam no psicadélico sempre com um gostinho carioca infalível. A combinação resulta e, como tal, rima com uma caipirinha.

Enquanto os Fumaça Preta lançavam as suas boas vibrações no palco Vodafone FM, ao lado preparava-se um funeral: testando os microfones com «One, Two, One, Two, Testicles, Testicles» anunciava-se a morte derradeira, o último concerto deste quinteto lisboeta conhecido por The Vicious Five. Começando o espectáculo, ouvem-se os mesmos acordes, a mesma distorção do rock genérico. Contudo havia qualquer coisa na atitude destes alfacinhas que os fazia rejubilar. Se calhar já são saudades, mas o facto é que o vocalista desta banda de proto-punk puxava os agudos à Steven Tyler durante minutos: para finados, não estavam a esmorecer. No entanto, o frontman dava a entender à plateia que esta não estaria a merecer todo aquele empenho.

A banda queria fazer espectáculo e, com o tempo, o mosh foi se condensando e a postura da vocalista também, que até fez um crowd surf, mas não o suficiente para deixar Joaquim Albergaria satisfeito. Memorável provavelmente pelos maus motivos (‘Bad Mirror’ soou impecável, contudo), este concerto não terá sido o enterro mais digno para os The Vicious Five. Felizmente temos o resto da carreira. A última frase proferida pelo frontman foi «Mesmo morto sou muito mais punk que tu».

E embalados pela electrónica vistosa e planar (como uma manta voadora) dos Sensible Soccers fomos dormir.

 
 

Dia 26 de Julho

44

Abrimos o segundo dia do Milhões com os espanhóis The Milkyway Express. Esta banda bebia influência variadas, a começar no country e rock americano – visível tanto no banjo ou na harmónica como no estilo de cantar – mas também na distorção bem metida, com microfones a esbarrar contra amplificadores. De vez em quando a banda amansava, permitindo à guitarra eléctrica ter um solo em sequências divagantes que faziam lembrar o rock mais clássico de bandas como The Doors ou Creedance Clearwater Revival. Foi uma interessante recriação do rock americano dos 60’s, que “ia bem” com o brilho do Cávado no palco Taina.

Seguiram-se neste espaço os galegos Guerrera, que iniciaram o concerto de forma áspera, com as guitarras a berrar – se os The Milkyway Express gostavam de sobre adição de harmónicos, estes eram fãs cerrados. E logo após este início a banda vai maturando o seu som e acrescentando camadas instrumentais, com slide guitar pujante e grooves sólidos que, acompanhando o gradiente de distorção, vai explodindo, enquanto o cantor e guitarrista lead improvisa vorazmente. No final este berra à la heavy metal, numa dinâmica geral perfeita. Acaba o concerto e, provavelmente, acabamos de ouvir a melhor coisa pesada que passou até agora no Taina.

O sol descia e as bandas sucediam-se após eficazes sound checks. A que subiu a seguir a este pequeno palco foram os A Tree of Signs, um quarteto de metal. Sem serem frenéticos, iam antes buscar mais influências ao doom, principalmente no baixo que era tocado com um ataque vagaroso e muita distorção. A voz, feminina, não detinha particular personalidade. Depois de uns Guerrera demolidores, metal não seria a escolha mais sensata: pedia-se algo mais “poppish”, mais leve.

Ainda antes de A Tree of Signs acabarem, saímos do recinto para ir ver uma colaboração que se ansiava monstruosa, entre os Black Bombaim e Isaiah Mitchell, guitarrista dos Earthless. Para os vermos, dirigimo-nos a um palco que só estava aberto para este gig, a Casa Azul.

Entra-se nesta casa por uma garagem cheia de antiguidades peculiares como jogos de mesa dos 80’s ou um velhinho tabuleiro de matrecos. Chegando ao recinto deparamo-nos com um quintal mal-arranjado e com pouca relva, e com um palco assente numa espécie de arrecadação ao ar livre. O espaço é, por outras palavras, charmoso.

Os Black Bombaim começam a tocar e quase instantaneamente a trip começa. Ao seu lado estão o teclista Shela (Riding Pânico) e o saxofonista Rodrigo Amado, companheiros do costume, para além de Isaiah Mitchell. A música desenvolve-se e presente-se uma ‘África II’, que culmina com a entrada daquele ritmo “stonermente” africano. Após um primeiro pico de intensidade, começa um diálogo entre as duas guitarras, ao qual se junta posteriormente Rodrigo Amado.

Num set seguido, sem pausas, os 6 músicos em palco alimentaram este monstro stoner. As linhas de baixo de Tojó e consequentes grooves da bateria seguiam-se fluidamente, baseando o plano da viagem por onde as guitarras e o saxofone voavam. O diálogo entre estas evoluía de forma deliciosa para uma conversa improvisada completamente paralela. Isaiah foi tão desértico como os outros, tocando com a distorção no ponto.

E ao longo desta viagem, a intensidade ia gradualmente aumentando, acabando após quase 40 minutos com a visita de agentes da polícia que cortaram a amplificação. O motivo ficou por explicar, mas como disse a banda no Facebook: «A polícia não manda aqui». E, de facto, não manda. Numa casa particular, na sua cidade natal, os barcelenses levaram-nos para a mais devastadora tempestade de areia do Sahara. Em duas palavras: «Do C******». E após esta travessia do deserto, pausa para jantar.

Chega a noite. Depois do rock de atitude e riffs incendiários, sem papas na língua dos Killimanjaro, seguem-se no palco Vodafone FM os Equations. Estes meninos tocam um math rock muito apoiado em teclados: complementando as linhas de guitarra eléctrica, há uma dimensão sonora espacial provida por Korgs e demais sintetizadores. Com o desenrolar do concerto os Equations vão tomando uma abordagem mais electrónica, abusando dos sons sintetizados e sequenciais, mas também deixando espaço para surpresas, como um saxofone. O rock destes meninos é futurista e prima pela inteligência da harmonia entre todos os instrumentos.

Indo agora para o palco Milhões, acompanhamos a subida ao palco dos Flamingods. Estes londrinos enraizavam-se no ritmo, sendo a bateria acompanhada por outras percussões como cowbells, agogos e os mais diversos pratos e tambores. Basta ouvir umas poucas notas destes senhores para percebermos as suas intenções: eles não querem simplesmente tocar a sua música, querem antes interagir com o público. Ouça-se a vibe de ‘Quesso’: é festa. E a reacção das pessoas? Bem.. Festa! Nas filas da frente as pessoas dançam apaixonadamente, e um pouco por todo o lado bate-se palmas e mexe-se as pernas. Sem dar por isso, instintivamente, todo o recinto baila esta amálgama rítmica exótica. Quer em instrumentais psicadélicos (a fazer a banda sonora para o drone que paira sobre o público?) ou não, é inegável o rebuliço docinho que os Flamingods deixaram no recinto.

É 1h20 e entra no palco principal a banda maior desta segunda noite, os High On Fire. Este trio de metal habita nos riffs, especialmente nos do trash, sempre com a dissonância bem empregue. Com o bombo duplo a conduzir, as guitarras soavam a distorção selvática, mas não barulhenta. E entre solos de guitarra lascivos e gritos roucos passou-se um bom bocado. No entanto, com o passar das músicas, não se realçam diferenças particulares entre estas, acabando todas por soar ao mesmo metal gerador de concussões. As pessoas contudo parecem não ter motivos de queixa: ao mosh e crowd surf que dominam as linhas da frente soma-se o headbang em grande parte do anfiteatro.

Ainda há uma ‘Rumors of War’ portentosa mas, no geral, não é suficiente: em jeito de opinião, devia-se pedir mais a um cabeça-de-cartaz. O público, com uma aparente grande fome por distorção, pode não concordar. Aliás, no final do concerto bate sentidamente palmas em devoção. Por aqui não se percebe.

A primeira música dos Teeth Of The Sea, banda que se seguiu, soou deslocada, assente numa batida à 80’s retorcida e experimental. Mas percebe-se em pouco tempo que esse é o trabalho que esta banda gosta mais de fazer. Quer sejam sequências de quatro acordes que causavam suspense, beats catchy e dançáveis a puxar dos graves ou camadas de loops de trompete gravados no minuto, todas estas ideias se misturavam e remisturavam, numa animada tertúlia. Sonicamente aventureiros, faziam lembrar Liars, mas menos electrónicos e barulhentos. Deram um concerto agradável, especialmente para quem gosta de música menos linear.

 
 

Dia 27 de Julho

125

No terceiro e último dia, entre o refresco da piscina e a singeleza do Taina, decidimos começar no primeiro, na companhia dos The Jack Shits.

Este trio do Barreiro tocava um rock crespo, rápido e sem guitarras limpas. De acorde fugaz em acorde fugaz, o vocalista cantava sobre amor e “babes”. E esta boémia rock era finalizada por experiências noise e libertações com a guitarra fora do palco. Aproximava-se o fim do espectáculo e, na última canção, o frontman sai para o meio do público em puro êxtase, dá a guitarra a uma pessoa aleatória que toca-a com felicidade estampada na cara e acaba deitado no chão a gritar glória, para o deleite fotográfico.

Acabando, dirigimo-nos com pressa para o palco Taina para ver esses dinossauros do black metal português, os Morte Incandescente. Contudo, para grande pena nossa, o concerto foi cancelado à última-hora. A curiosidade teve que ser enterrada e esperávamos consolação no hype das Thug Unicorn, que encerravam o palco da Piscina.

Estas dj’s fazem um set do hip hop mais pimp possível. A acompanhar estão em palco três dançarinos, a personificar o «cosplay hip hop» (com alguns ácidos à mistura), que se vê tanto nas cores berrantes e roupas como no sexual innuendo da dança. Virando as páginas desta audioteca de rap comercial sob uma chuva de brilhantes, este projecto afirma-se e, por mais personalidade que parecia ter inicialmente, têm as mesmas aspirações que um Lil Wayne… O público, começando o calor a escassear e sendo servidas as últimas bebidas, integra-se neste ambiente e no final agradece. Luxúria colorida para acabar a tarde do Milhões: podíamos ter algo artisticamente mais credível, mas se calhar calha melhor esta ostentação para acabar de saborear o Verão de Barcelos.

Pelas 20h15, Norberto Lobo & Filho da Mãe sobem ao palco Milhões para conversar com as suas guitarras. Para efeitos de expressão, entre outros, a dupla usou harmónicos, reverberação artificial e arpejos, que se encruzavam num encantador contraponto. Mas em certas ocasiões não precisavam de dizer nada, deixando o vento falar, que parecia ser um loop esquecido a acompanhá-los fielmente… Lindo. Por vezes, Filho da Mãe era a consonância e Norberto Lobo a desarmonia, outras vezes o contrário, mas em suma, estes atributos incorporavam entidades próprias que se atraiam, repulsavam, dividiam, completavam.

De uma assentada como os Black Bombaim, mas num discurso fracturado, os guitarristas fizeram com os seus instrumentos um jogo de sombras, uma dança morna que tanto era delicada como espinhosa, leve como corpulenta. Dos degraus do feedback final, olhávamos para baixo e víamos as nuvens, a quilómetros do chão. Inspirador.

Depois de um atraso inaceitável de 50 minutos, os Young Magic avançam com os seus teclados repentinos e errantes. No meio deles, há uma voz feminina poderosa e chamativa, que parece estar a nos alertar para um perigo iminente. Apoiada em baixos sintetizados e outros sons da mesma natureza e vestida toda de branco, a cantora liberta-se, qual pomba a voar em escape de uma metrópole urbanizada. A música era esotérica mas também ritmicamente estimulante. O problema, contudo, é que as canções eram muito repetitivas, não evoluindo o suficiente para se tornarem refrescantes. Ficamos com uma boa primeira parte do concerto.

E – boa supresa – segue-se no palco ao lado um pedacinho de África, os Jagwa Music: 6 músicos em palco, quase todos percussionistas (havia djembes, várias congas africanas e até um banco), um casio alegre a acompanhar e um frontman que fazia as cerimónias dançando, gesticulando, cantando num dialecto próprio, levantando da terra as suas raízes. Se fechássemos os olhos, podíamos ver num abrigo rodeado por terra árida a mais tradicional dança, folia, festa africana.

Lembraram-se porventura de dançarinas? Não se preocupem, ela aparece em palco, largando a pandeireta que tocava e dando uma lição de dança da Tanzânia. O público, esse, continua a festa tal como a banda quer, dançando, vibrando, comendo África às colheradas. Momento precioso e bonito no Vodafone FM, que antes de ter sido musical foi de partilha, como o “comboinho” multicolor que percorreu o recinto.

E, acabando este alegre festim, chega a vez dos gigantes Earthless pisarem o palco Milhões. Depois de umas simpáticas palavras do vocalista, ligam o motor: começa a viagem. O baterista mantém o tempo grandemente musculado, o baixista, com groove irrepreensível, doma o baixo e cria linhas de acompanhamento com técnica e velocidade estonteantes, o guitarrista, em tudo o que faz – improvisação, bendings, uso da whammy bar, acordes secos – é ferocidade. Aliás, toda a música é especialmente feroz. E a banda junta, não nos leva somente a viajar: em propulsão máxima, rompemos a atmosfera em segundos e penetramos o espaço interestelar, fora da Terra, fazendo 100% jus ao seu nome.

Os Earthless são pesadíssimos e não são metal. Aliás, foram mais pesados que qualquer banda do género que marcou presença nesta edição do festival. São uma prova de que a distorção e a velocidade só por si não servem de quase nada: é preciso uma abordagem aos instrumentos, uma garra, uma atitude que quem dera à grande maioria dos metaleiros ter. Quando acabam, orbitamos à volta do nosso planeta, ao lado da Lua. Deram o melhor concerto dos Milhões de 2014.

Desde músicas dignas do Moulin Rouge até ao kuduro contemporâneo, os Melt Yourself Down foram talvez a banda mais ecléctica em termos sonoros do festival, tendo conseguido pôr o relvado a vibrar de tão forte que era a energia que passavam para o público. Com as melodias dos dois saxofonistas, a percussão viva, as linhas afincadas de baixo, os beats alegres do produtor de electrónica e a força imparável transmitida pelo MC, todo o festival dançou até… derreter.

 

E acabou assim mais uma edição do Milhões de Festa. Para o ano vamos lá estar todos outra vez, os festivaleiros, os voluntários, os repórteres, os músicos que, depois dos gigs, iam comer gelados para a piscina ou curtir os concertos à noite, em pura sintonia com o ambiente (perguntem aos Riding Pânico ou aos Sensible Soccers), porque temos todos noção de uma coisa: o Milhões, para quem o sabe apreciar devidamente, não é um simples festival, é um pequeno paraíso.

Fotografia: Carolina Neves
Texto: Gonçalo Tavares